quarta-feira, 27 de novembro de 2024

Um grande pequeno vizinho - Zeina Latif

O Globo

Com instituições mais frágeis, o Brasil depende mais da sorte do que o Uruguai para ter lideranças políticas capacitadas para avançar

O Uruguai destoa positivamente dos demais países da América Latina, em muitas frentes. Tem o segundo maior PIB per capita da região, depois do Panamá, e o melhor balanço entre grau de desigualdade e renda per capita – afinal, nada adianta todos serem igualmente muito pobres, como o Haiti.

O índice de Gini (quanto mais baixo o valor, menor a desigualdade) estava em 40,6 em 2022 para um PIB per capita de US$32,7 mil, ante as cifras do Brasil de 52,0 e US$19,9 mil, respectivamente.

Na educação, as notas no PISA (programa internacional de avaliação da educação fundamental) estão atrás apenas das do Chile. A nota em matemática, por exemplo, foi 466 em 2022 ante 379 no Brasil. Igual retrato é observado no índice de desenvolvimento humano.

A qualidade de sua democracia também se destaca. Os indicadores calculados pelo V-Dem – referência em estudos da democracia, o instituto avalia os princípios eleitorais, liberais, participativos, deliberativos e igualitários dos países – colocam o Uruguai em posição comparável a de nações ricas. Isso apesar da ditadura militar entre 1973-1985.

Um elemento crucial é o menor grau de polarização política, diferentemente da situação em boa parte do mundo democrático. A recente eleição presidencial foi marcada pela normalidade e amadurecimento democrático, com candidatos de perfil moderado concorrendo no segundo turno.

Venceu o candidato da esquerda, apesar de seu opositor ser apoiado pelo presidente Lacalle Pou, que conta com taxa de aprovação em torno de 50%.

O discurso de vitória de Yamandú Orsi foi de tranquilização da classe empresarial e de respeito às divergências. Ele afirmou que seu governo precisará também daqueles com visão diferente para “construir um país melhor”. Para ele, “não há futuro se não podemos divergir.” Do lado do derrotado, o presidente Pou se colocou “sob seu comando para iniciar a transição”.

O amadurecimento democrático do país resulta em uma certa blindagem da agenda econômica ao ciclo político. Com a política econômica mais estável e a menor desigualdade social, o mal-estar com a democracia é baixo, inibindo o apelo de políticos populistas e a polarização extrema.

O fato de ser um país pequeno e com população coesa provavelmente ajuda na construção de soluções majoritárias para os problemas socioeconômicos, conforme indicado pela literatura econômica sobre o tema.

Em que pese a complexidade do Brasil ser um fator a dificultar essa construção, não seria suficiente para explicar nossas falhas institucionais e a apropriação indevida do orçamento público por grupos organizados, bem como sua influência na definição dos marcos jurídicos do país.

Uns poucos se beneficiam de ganhos proporcionados pelo Estado que estão dissociados da geração de renda de sua atividade econômica, isso em detrimento dos demais. No jargão técnico, é o “rent-seeking” ou o patrimonialismo, de Raymundo Faoro; na linguagem coloquial, é a “economia da meia-entrada” cunhada por Marcos Lisboa.

Devido à proliferação das proteções e benefícios estatais, cada um de nós é beneficiado, em diferentes graus, o que em seu conjunto resulta em uma economia disfuncional e de baixo crescimento. Pior, cada grupo reage à tentativa de revisão das políticas públicas, como visto agora.

Nesse aspecto, vale citar a pesquisa de Cesar Calderón e Alberto Chong que identifica a relação negativa entre democracia e “rent-seeking” no Uruguai.

O Uruguai, diferentemente do Brasil e de muitos outros países, inclusive desenvolvidos, não passou no passado recente por recessões e crises decorrentes de falhas de suas instituições. Já no Brasil, a recessão entre meados de 2014 e 2016, que encolheu o PIB em 8%, é exemplo da fraqueza dos freios e contrapesos democráticos. A insatisfação da sociedade com um país que muito prometeu é anterior, mas a grave crise foi decisiva para a polarização política.

Com instituições mais frágeis, o Brasil depende mais da sorte do que o Uruguai. Sorte para ter lideranças políticas pouco permeáveis a pressão de grupos organizados e capacitadas para avançar com reformas estruturais, por meio de diálogo e, também, do enfrentamento de interesses não republicanos. E sorte para contar com o saudável funcionamento dos poderes da República.

Preferia não precisar contar tanto com a sorte.

Um comentário:

ADEMAR AMANCIO disse...

Eu fiquei com inveja dos uruguaios.