Caso Carrefour expõe limites do protecionismo
O Globo
Como bom varejista, empresa deveria oferecer
a melhor carne pelo menor preço, de qualquer procedência
O recrudescimento do protecionismo ganhou
novo capítulo com a declaração do presidente global do varejista Carrefour,
Alexandre Bompard, de “não comercializar nenhuma carne do Mercosul”
nas lojas francesas “em solidariedade” a pecuaristas locais. Bompard questionou
a qualidade do produto sul-americano. Mais que fazer demagogia com o público
francês, ele deixou claríssimas as limitações do discurso protecionista que tem
se disseminado mundo afora.
União
Europeia e Mercosul estão perto de anunciar a conclusão do
esperado acordo de livre-comércio. Agricultores franceses estão entre seus
maiores opositores no continente e têm feito de tudo para tentar impedi-lo.
Revoltados com a declaração de Bompard, produtores brasileiros passaram a boicotar as lojas do Carrefour por aqui. Com o risco de desabastecimento na operação que responde por um quarto do faturamento global do grupo, o Carrefour publicou nota para se retratar. O texto ignora o principal. Como bom varejista, o Carrefour deveria declarar que ofereceria a melhor carne pelo preço mais baixo, independentemente da procedência. Em vez disso, afirma que continuará a comprar “quase exclusivamente” o produto francês na França e o brasileiro no Brasil. Não houve mudança prática.
A verdade é que, enquanto o agronegócio
brasileiro conquistou nas últimas décadas sucessivos ganhos de produtividade à
custa de investimento em tecnologia — sobretudo para atender aos rigorosos
padrões fitossanitários dos países para onde exporta —, o setor agrícola
francês segue com baixa competitividade, dependente dos subsídios da Política
Agrícola Comum da União Europeia. O nacionalismo comercial desincentiva a busca
por inovação e aumenta os preços dos produtos. A conta fica toda com os
consumidores.
Infelizmente, os danos do protecionismo não
estão restritos à França. Donald Trump declarou que, de volta à Casa Branca,
imporá tarifa de 25% sobre produtos importados do México e do Canadá, parceiros
dos Estados Unidos em acordo de livre-comércio. Disse que manterá a alíquota
alta até os dois países acabarem com a “invasão” de drogas e imigrantes
ilegais. Também ameaçou tarifa adicional de 10% sobre produtos da China e
acusou o país de enviar drogas aos americanos.
Trump parece ignorar que seus eleitores
pagarão um preço alto por tais barreiras comerciais. Juntos, México, Canadá e
China somam mais de um terço de tudo o que os Estados Unidos importam e
exportam. São responsáveis por milhões de empregos em distintos setores, da
agricultura ao automobilístico. O encarecimento das importações fará os demais
preços subirem, alimentando a inflação. A eventual retaliação dos países
afetados pelas barreiras dificultará o acesso de exportadores americanos a
outros mercados.
Tudo somado, o mundo inteiro perde.
Produtores sem competitividade ganham mercado cativo, e os produtivos deixam de
ter incentivo para inovar. No ano passado, o fluxo global de trocas caiu 1,2%,
segundo a Organização Mundial do Comércio. A previsão é de recuperação, mas
para isso a onda mercantilista precisa perder força. Um bom começo seria a
conclusão do acordo Mercosul-UE. Uma vez implementado, se o Carrefour insistir
em rejeitar a carne brasileira, é certo que outros varejistas saberão oferecer
aos consumidores franceses o produto melhor e mais barato.
Não tem cabimento STF intervir no preço
cobrado por cemitérios
O Globo
Decisão do ministro Flávio Dino ordenou
retorno a valores cobrados antes da privatização em São Paulo
O ministro Flávio Dino,
do Supremo Tribunal Federal (STF),
determinou que a Prefeitura de São Paulo volte a cobrar por serviços funerários
valores iguais aos anteriores à concessão dos cemitérios, em 2023, corrigidos
pela inflação. A liminar atendeu parcialmente a pedido do PCdoB numa ação que
questiona a privatização dos cemitérios na cidade. O plenário deveria rever a
decisão.
Dino argumenta que ela visa a evitar danos
“em face de um serviço público aparentemente em desacordo com direitos
fundamentais e com valores morais básicos”. Nas palavras dele, apesar de a
privatização dos serviços objetivar a modernização, “o caminho trilhado até
agora possui fortes indícios de geração sistêmica de graves violações a
diversos preceitos fundamentais”. Cita a dignidade humana e a manutenção de
serviço público adequado e acessível.
Ainda que provisória, a decisão causa
estranheza. A bem-sucedida concessão dos serviços funerários foi feita dentro
das regras estabelecidas pela lei aprovada democraticamente na Câmara de
Vereadores. E a prefeitura tem autonomia para conceder os serviços que bem
entender, com o objetivo de dar mais eficiência a um setor abandonado,
melhorando as condições dos cemitérios e o atendimento à população. É verdade
que existem queixas, mas os preços seguem a lei. Tais questões não exigem
interferência do Judiciário.
A despeito da intenção, a decisão pode ter
efeito contrário para a população de baixa renda. Segundo a prefeitura
paulistana, ela elimina o desconto de 25% garantido pelas novas regras a
funerais sociais. Famílias em situação de pobreza já usufruem gratuidade. “A
medida é um retrocesso às ações adotadas pela administração para atender os
mais pobres”, afirma a prefeitura.
Não é a primeira vez que uma decisão de Dino
gera controvérsia. No fim de outubro, ele mandou retirar de circulação e
destruir o estoque de quatro livros jurídicos que continham passagens com
conteúdo homofóbico e preconceituoso. Alguns trechos eram repugnantes, mas a
decisão deveria caber às instituições pedagógicas. Não é tarefa do STF editar
conteúdo de livros.
A concessão de cemitérios tem sido uma
tendência no país. No Rio, eles foram transferidos em 2013, resultando em mais
vagas e melhorias na conservação. Em Belo Horizonte e Manaus, convivem modelos
públicos e privados. Salvador iniciou estudos no ano passado para
privatizá-los. A Prefeitura de São Paulo agiu corretamente ao concedê-los. “A
gente percebeu que houve melhoria na zeladoria e até na segurança”, disse ao
GLOBO a historiadora Viviane Comunale, que atua num projeto de visitas a
cemitérios.
Entende-se que, dadas suas atribuições
constitucionais, o Supremo seja demandado a dirimir toda sorte de conflito. Mas
não é razoável que se ocupe de quanto cobram os cemitérios de São Paulo ou de
qualquer outra cidade. Queixas contra preços hão de existir numa infinidade de
serviços. Devem ser resolvidas de acordo com as normas estabelecidas nos
contratos. Não faz sentido o STF agir como agência reguladora de cemitérios.
Inadimplência coloca em alerta mercado de
crédito
Valor Econômico
A expectativa é que a demanda de crédito
continue forte no fim de ano, mas também se espera a piora na inadimplência, na
tolerância ao risco, condições de funding e, em especial, no crédito
habitacional
Um amplo diagnóstico sobre o crédito
divulgado pelo Banco Central (BC) no Relatório de Estabilidade Financeira
emitiu um sinal de alerta - após ligeira melhora no terceiro trimestre,
acumulam-se as indicações de cautela sobre o nível de inadimplência. A virada
de cenário começou com a elevação dos juros básicos, com a alta da inflação. Em
seguida, com a preocupação sobre o ajuste das contas públicas e, na sequência,
com as incertezas com o dólar, após a eleição de Donald Trump para presidente
dos EUA. Todos esses fatores podem piorar o cenário para a inadimplência, que
nunca chegou a recuar significativamente nos bancos, apesar da melhora do
mercado de trabalho, do aumento da renda e dos programas de renegociação de
dívidas.
O novo quadro começou a se desenhar depois
que o Copom parou de cortar a taxa básica de juros e passou a aumentá-la. A
Selic subiu de 10,5% para os atuais 11,25%. O IPCA de outubro atingiu 0,56% e o
acumulado em 12 meses foi a 4,76%, acima do teto da meta da inflação.
No mercado, os juros sobem ainda mais,
encarecendo os títulos públicos. Para este ano, o Relatório de Avaliação de
Receitas e Despesas Primárias do 5º Bimestre acaba de mostrar ampliação do
bloqueio de despesas discricionárias em R$ 6 bilhões, para R$ 19,3 bilhões,
para cumprir o limite de despesas primárias de R$ 28,7 bilhões, raspando no
limite inferior da meta.
Todos esses fatores repercutem mal no
crédito. Segundo o relatório do BC, a capacidade de pagamento das famílias e
das micro, pequenas e médias empresas (MPMEs) continua “desafiadora”. No caso
das empresas, o BC ressalta o “crescente” número de pedidos de recuperação
judicial, a alta do dólar e a percepção de alavancagem elevada, “apesar do
dinamismo recente do comércio, dos serviços e da indústria”.
Do lado das famílias, há motivo de
preocupação mesmo com a melhora do mercado de trabalho. A taxa de desemprego
caiu para 6,4% no terceiro trimestre do ano, o menor patamar para o período
desde o início da série histórica da Pnad Contínua do IBGE, em 2012. A massa de
rendimento médio real da população ocupada aumentou pouco mais de 7% em 12
meses.
Mas, como apontou o BC, o endividamento e o
comprometimento de renda das famílias “persistem elevados”. Após ligeiro recuo
no primeiro semestre, esses índices voltaram aos picos de 2023. Os dados mais
recentes do relatório de crédito do BC mostram que o endividamento das famílias
equivalia a 47,9% da renda acumulada em 12 meses em agosto, o maior percentual
desde dezembro de 2023. O comprometimento da renda ficava em 26,8%, o maior
percentual desde outubro de 2023.
O mercado de trabalho favorável contém a
inadimplência, mas sem sinais de alívio. A taxa registrada pelos bancos para
atrasos acima de 90 dias se mantém entre 3,2% e 3,3% desde o início do ano. A
situação é mais delicada no crédito para as famílias, cujo calote está
estabilizado em 3,8%, chegando a 5,6% no crédito com recursos livres. Já no
crédito para as empresas, a inadimplência média é de 2,4, e atinge 2,9% nas
operações com recursos livres.
O equilíbrio depende também da disposição dos
bancos em manter abertas as torneiras do crédito. O BC constatou que as
instituições financeiras aumentaram “levemente” o apetite a risco no início do
segundo semestre, como mostram os dados de setembro, quando a carteira de
crédito com recursos livres aumentou 1,4% no mês e 9,1% em 12 meses. No caso
dos empréstimos a empresas, o aumento foi de 2,4% no mês e de 7,2% em 12 meses,
com a expansão sazonal de operações de desconto de duplicata e outros
recebíveis e capital de giro de curto prazo. Já as operações com pessoas
físicas cresceram 0,7% no mês e 10,5% em 12 meses, com destaque para um mix de
produtos com garantias como o financiamento para aquisição de veículos e
crédito consignado para funcionários públicos.
No entanto, há sinais de mudança de humor
após o aumento dos custos de captação e da percepção de aumento do risco, que
já estão sendo repassados para as taxas de crédito. A isso se soma a
necessidade dos bancos de reforçar provisões para enfrentar mudanças
regulatórias em curso na virada de ano. Levantamento do Valor (21/11) listou uma
dúzia de alterações em elaboração. Somente uma delas exigirá significativo
aumento das provisões: as novas regras contábeis para mensuração e registro de
instrumentos financeiros e reconhecimento de “hedge”, que entram em vigor em 1
de janeiro. Bancos responsáveis por cerca de 84% das exposições de crédito do
mercado estimam elevação de R$ 37,8 bilhões nas suas provisões, ou 10,7% das
provisões atuais, segundo o BC.
A expectativa é que a demanda de crédito
continue forte no fim de ano, como costuma ocorrer nas festas da época e das
férias. Mas também se espera a piora na inadimplência, na tolerância ao risco,
condições de funding e, em especial, no crédito habitacional. O custo e a
disponibilidade de recursos devem ser um fator mais restritivo neste fim de
ano, o que pode pressionar a inadimplência.
Suspeitas de corrupção se agravam no custoso
Judiciário
Folha de S. Paulo
Mais uma investigação da PF sobre venda de
sentenças põe em xeque argumento para justificar salários de magistrados
Nesta terça (26), a Polícia
Federal deflagrou operação que investiga novas suspeitas
relativas à venda de sentenças judiciais, desta vez concentradas no Tribunal de
Justiça de Mato Grosso, mas com ramificações que chegam de modo alarmante a
altos servidores do Superior Tribunal de Justiça, a segunda corte mais elevada
do país.
Os 23
mandados de busca e apreensão expedidos atingem advogados,
lobistas, empresários, assessores, chefes de gabinete e magistrados. Além de
desembargadores do TJ-MT, foram alvo da Operação Sisamnes chefes dos gabinetes
de dois ministros do STJ e um
assessor que atuou com diversos ministros da corte.
Também foi cumprida ordem de prisão contra
Andreson de Oliveira Gonçalves, apontado como lobista responsável por
intermediar a venda de decisões judiciais.
As medidas autorizadas pelo ministro Cristiano
Zanin, do Supremo Tribunal Federal, foram executadas em Mato Grosso,
Pernambuco e no Distrito Federal.
É obviamente cedo para prejulgamentos —a
eventual atribuição de culpas caberá ao devido processo legal, se este vier a
ser instalado. Entretanto salta aos olhos que apurações do gênero vão se
espalhando pelo país.
No final de outubro, a PF já havia cumprido
medidas dentro da Operação Ultima Ratio mirando ao menos seis
desembargadores do TJ de Mato Grosso do Sul, incluindo a apreensão de cerca de
R$ 3 milhões em dinheiro na residência de um deles. No período, mensagens de
celulares levaram as suspeitas de corrupção até
membros do STJ, o que fez com que o caso chegasse ao Supremo.
Só neste ano, há também investigações em
curso sobre venda de sentenças judiciais em tribunais de São Paulo,
Bahia, Maranhão e Tocantins.
Tal proliferação de casos, somada a suspeitas
que chegam a um tribunal superior, é decerto desastrosa para a reputação do
Judiciário —ainda mais tratando-se de um Poder que custa em demasia aos
brasileiros.
Levantamento conduzido pelo Tesouro Nacional
apontou que o gasto com as cortes em 2022 foi o maior entre 53 países
analisados. Foram R$ 159,7 bilhões, equivalentes
a 1,6% do Produto Interno Bruto, uma proporção da renda nacional sem
paralelo nas principais economias do mundo.
Essa anomalia se deve basicamente a
remunerações fora da realidade brasileira, a começar pelas dos magistrados
—cada um custa em média R$ 68,1 mil mensais aos contribuintes, segundo os dados
mais atualizados do Conselho Nacional de Justiça.
Abonos e auxílios variados abrem o caminho
para ganhos muito superiores ao teto salarial do serviço público, hoje de R$ 44
mil. Um argumento frequente para justificar os privilégios é justamente
prevenir a corrupção, o que as investigações de venda de sentenças colocam em
xeque.
Em vez de associar uma coisa à outra, o
Judiciário faria melhor em depurar distorções em seus custos e suas condutas.
Política, ambiente e protecionismo no caso
Carrefour
Folha de S. Paulo
Empresa recua após fala contra carne do
Mercosul gerar reação de frigoríficos no Brasil, mas tensão com a UE
prosseguirá
O Carrefour,
percebe-se hoje, deu um passo maior que as pernas quando o presidente mundial
da rede francesa, Alexandre Bompard, anunciou na semana passada que não venderia
mais carne originária de nações do Mercosul.
A comunicação se deu na forma de uma carta
dirigida a uma entidade representativa dos agricultores de seu país, que
protestam contra a perspectiva de aumento da competição com o avanço do acordo
de livre-comércio entre o Mercosul e
a União
Europeia.
Bompard jogou para a plateia local repetindo
argumentos sanitários ambientais, invocando o "risco de inundar o mercado
francês com uma produção de carne que
não respeita suas exigências e normas".
A declaração de hostilidade despertou
veemente reação empresarial e política no Brasil, principal economia do
Mercosul, grande exportador de carne e maior fonte de faturamento do Carrefour
fora do país-sede.
Grandes frigoríficos brasileiros iniciaram
um boicote no
fornecimento aos supermercados da rede aqui, de imediato apoiado
pela poderosa bancada ruralista do Congresso
Nacional. Tampouco o ministro da Agricultura, Carlos Fávaro, perdeu
a oportunidade de se associar à causa.
Nesta terça (26), a empresa publicou uma
pouco convincente carta de retratação em que reconhece a "alta qualidade e
sabor" da carne brasileira. É improvável que os impactos da trapalhada
tenham cessado, e é certo que se mantém o contexto que a gerou.
Na França há
ruidosa oposição ao acordo comercial UE-Mercosul, que chegou a ser assinado em
2019, mas teve
negociações reabertas no ano passado. O fragilizado governo de Emmanuel
Macron não pode se dar ao luxo de enfrentar maiores protestos
populares, e o Brasil sob Luiz Inácio Lula da
Silva (PT)
também tem cacoetes protecionistas.
Normas ambientais são muitas vezes usadas
como mero pretexto por europeus incapazes de competir na agropecuária, mas isso
não significa que sejam irrelevantes ou incorretas.
Para alívio parcial de produtores
brasileiros, o Parlamento
Europeu adiou por um ano a legislação que restringe importações
oriundas de áreas desmatadas, que agora vigorará a partir de 2026. Aqui, por
causa de deficiências do Estado e resistências de setores retrógrados do agronegócio,
estamos muito atrasados no controle de crimes ambientais.
As tensões de lado a lado prosseguirão, sem
solução simples à vista. O caso Carrefour tem algo de caricato, mas
fragilidades dos envolvidos resultam em sequelas.
Regular as redes é atribuição do Congresso
O Estado de S. Paulo
A internet não é ‘terra sem lei’. Há uma lei:
o Marco Civil da Internet. Quem deve julgar a sua conveniência é o povo. E quem
tem mandato para alterá-lo são seus representantes eleitos
Está marcado para hoje no Supremo Tribunal
Federal (STF) o início de um julgamento crucial para os destinos do Estado
Democrático de Direito nacional, tanto pelas implicações relacionadas ao seu
conteúdo – a regulação das redes sociais – quanto à sua forma – quem tem
competência para regular.
O julgamento envolve dois temas de
repercussão geral (533 e 987) nos quais se versará sobre a responsabilidade das
plataformas digitais. O artigo 19 do Marco Civil da Internet estabelece que a
responsabilidade pelos conteúdos é de seu criador e as redes só podem ser
responsabilizadas se, após uma decisão judicial, deixarem de tomar as devidas
providências. O Marco estabelece duas exceções: infrações a direitos autorais e
divulgação de cenas de nudez ou sexo não autorizadas. A Corte versará sobre a
constitucionalidade do artigo 19.
A conveniência do Marco Civil para regular o
ambiente digital tem sido amplamente debatida. É natural. O Marco foi gestado
em 2007 e sancionado em 2014, quando as redes já existiam, mas sua massificação
através de smartphones apenas começava. A eventual inconveniência ou
insuficiência de uma lei, contudo, não equivale à inconstitucionalidade. Quem
decide se as regras para as redes digitais devem ou não ser alteradas é o povo,
e quem tem mandato para alterá-las são os seus representantes eleitos.
O legislador foi didático ao justificar a
redação do artigo 19 “com o intuito de assegurar a liberdade de expressão e
impedir a censura”. A primazia da liberdade de expressão está em linha com a
Constituição e com a jurisprudência da própria Corte. Isso não significa que
essa primazia seja absoluta. As próprias redes podem estabelecer suas regras de
uso e remover conteúdos de acordo com elas, desde que o faça com isonomia. De
fato, milhões de publicações são removidas todos os dias. Pessoas que se julgam
vítimas de crime (como calúnia e difamação) podem recorrer à Justiça, a quem
cabe definir, em cada caso, o que é lícito ou ilícito. Não há no artigo 19,
portanto, violação da proteção do consumidor ou dos direitos à honra e
dignidade da pessoa humana que justifiquem uma declaração de
inconstitucionalidade.
Mas a julgar pelas manifestações de alguns
ministros, essas regras são insuficientes e seria preciso responsabilizar as
plataformas com base em notificações extrajudiciais ou exigir delas o
monitoramento ativo das redes. Na prática, isso significaria terceirizar a
censura. O resultado seria um efeito inibitório em que as redes, por precaução,
removeriam massivamente quaisquer conteúdos minimamente controversos para
evitar os riscos de punição. Mas como a decisão sobre o que deve ou não ser
censurado é prerrogativa do Estado, as redes ainda seriam passíveis de punição,
via recursos judiciais, por censurar conteúdos que não deveriam ser censurados.
Uma confusão completa, que minaria a pluralidade e liberdade do ambiente
digital.
A preferência por essas regras é um direito
dos ministros, enquanto cidadãos. Muitos pensam de modo parecido. O Congresso
promoveu vários debates sobre dispositivos como esses no âmbito do chamado PL
das “Fake News”, mas sua tramitação parou por falta de consenso.
O histórico do STF justifica o temor de que
os ministros buscarão estabelecer regras como essas sob o pretexto de “omissão”
do Parlamento. Mas não cabe ao Judiciário definir os tempos do Legislativo,
muito menos substituí-lo. O Congresso também se manifesta politicamente por
meio de seus adiamentos. Não decidir é já uma decisão, e legítima. Transformar
o controle de constitucionalidade num juízo de conveniência política é
atropelar a democracia representativa.
A credibilidade do STF está em processo
visível de degradação. Há críticas injustas de ativismo judicial
instrumentalizadas por oportunistas políticos, mas muitas críticas são justas.
O presidente da Corte, Luís Roberto Barroso, falou recentemente no papel
“civilizador” da Corte. Ela tem agora uma oportunidade de ouro de cumprir essa
missão, reafirmando a separação dos Poderes. Basta restringir-se às suas
atribuições constitucionais e deixar que o Legislativo cumpra as dele.
Chega de paliativos fiscais
O Estado de S. Paulo
Bloqueios bilionários no Orçamento não
resolvem problema estrutural do País, que deve promover um ajuste rigoroso dos
gastos públicos, como fez a agora superavitária Argentina
O crescimento das despesas obrigatórias da
União acima do esperado, em especial os gastos com benefícios previdenciários,
levou a mais um bloqueio no Orçamento, desta vez de R$ 6 bilhões – e não R$ 5
bilhões, como havia estimado o ministro da Fazenda, Fernando Haddad. Com isso,
o total bloqueado para tentar conter o rombo das contas públicas em 2023 no
limite de R$ 28,7 bilhões chega a R$ 19,3 bilhões, numa ginástica contábil que
evidencia a cada dia a fragilidade do arcabouço sem uma reestruturação total das
despesas que Lula da Silva reluta em promover.
Pelos sinais emitidos de forma recorrente
pelo Planalto, o mercado aposta em um fôlego curto para o pacote de corte de
gastos que o governo está prestes a anunciar, após mais de um mês de
expectativas. Algo que trará, no máximo, alívio transitório a um problema que
exige solução duradoura e não simples retoques na pintura para apresentar um
quadro de déficits tolerados. Como disse em entrevista ao Estadão a
professora do Insper Laura Muller Machado, o planejamento deveria envolver
menos quais serão os alvos dos cortes e mais qual política pública funciona ou
não.
O governo sabe disso e os modelos em
discussão no Ministério do Planejamento comprovaram, ao abordar a indexação
excessiva dos benefícios sociais, a conta previdenciária impagável e programas
ineficientes. Mas, ciente da dificuldade de levar à frente o “corte estrutural”
que defende, a ministra Simone Tebet – que, aliás, não participou da reunião
ministerial com Lula para apresentar formalmente o pacote – adiantou, no mês
passado, que a proposta virá parcelada, com um primeiro conjunto de medidas
seguido por “pelo menos outros dois” que ainda serão elaborados.
Parece mais um eufemismo para descrever o
acanhamento do governo Lula da Silva quando o assunto é reduzir gastos
públicos. Também em entrevista a este jornal, o CEO da Verde Asset, Luis
Stuhlberger, definiu com uma conta simples o ceticismo do mercado em relação à
possibilidade de o governo limitar o crescimento das despesas a 2,5% ao ano: “O
gasto com Previdência está perto de R$ 1 trilhão. Se ele cresce 4% ao ano, como
vai caber nos 2,5%?”.
Nesse sentido, a pontaria de Javier Milei na
Argentina tem se mostrado bem mais certeira, com um ajuste fiscal duríssimo,
que inclui cortes de subsídios e enxugamento da máquina pública, para reduzir
de imediato 35% dos gastos do Estado em relação a 2023. Nos primeiros dez meses
do ano, as contas argentinas acumularam superávit primário de 10,3 trilhões de
pesos (R$ 59,4 bilhões), um feito em relação ao déficit de 2,9 trilhões de
pesos (R$ 16,7 bilhões) no mesmo período de 2023.
Em que pesem todas as ressalvas feitas a “El
Loco” – e o também duro custo social do ajuste –, ele tem mostrado consistência
na busca pelo cumprimento da meta de déficit zero, em contraste com a débil
política fiscal do Brasil. Outras medidas que marcaram sua controversa
campanha, como o fechamento do Banco Central argentino e a dolarização da
economia, ficaram apenas como bravatas e nada indica que ainda têm chance de
serem concretizadas.
Por aqui, Lula da Silva insiste no discurso
que baseia o desenvolvimento econômico no Estado gastador, centrado em medidas
contra a pobreza e a fome. Decerto políticas de combate à desigualdade social
devem figurar entre as prioridades de qualquer governo, mas dentro do limite
que a economia é capaz de suportar sem criar inflação, que reduz o poder de
compra justamente dos mais pobres.
A pobreza não vai se reduzir pela vontade de
Lula. Aliás, o PT de Lula esteve no poder em 15 dos últimos 21 anos e, malgrado
alguma melhora superficial, os pobres continuam no mesmo lugar, sem
perspectivas e dependentes do Estado em várias regiões do País. Ou seja, só o
desejo de justiça social não é capaz de mudar a realidade. É preciso coragem
para enfrentar as questões estruturais que emperram o desenvolvimento do País –
e isso, já vimos, Lula não tem.
O medo tem rosto de mulher
O Estado de S. Paulo
É inaceitável, numa sociedade civilizada, que
a maioria das mulheres tema andar a pé na rua
Pesquisa realizada pelo Instituto Locomotiva
a pedido da 99 expôs, em números, um medo familiar à maioria das mulheres. Com
base em entrevistas presenciais com 2.750 mulheres das classes C, D e E,
moradoras das periferias das capitais e regiões metropolitanas de São Paulo e
do Rio de Janeiro, o levantamento, divulgado pelo Estadão, revelou que
nada menos que 97% delas temem andar a pé.
Receio de ser assaltada ou furtada (93%),
estuprada (89%), assediada (85%) ou perturbada por olhares insistentes ou
abordagens inconvenientes (78%) figuram entre os principais motivos dessa
apreensão. Ao todo, 61% já cancelaram compromissos devido à insegurança e 63%
delas já se atrasaram ou desviaram o caminho pelo temor de serem importunadas.
É simplesmente estarrecedor.
Homens, por óbvio, também estão expostos ao
risco de assalto ou furto em trajetos a pé, mas a diferença, nem um pouco
trivial, é que tornar-se vítima de uma agressão sexual passa longe de suas
preocupações. E quem diz isso é o presidente do Instituto Locomotiva, Renato
Meirelles. “Não conheço nenhum homem que sente medo ao sair de casa, de ser
estuprado ao ir ao trabalho ou que altere suas rotina ou escolhas de vida por
causa do medo”, afirmou.
O pavor traz impactos relevantes para a
rotina, compromissos e oportunidades de trabalho e de formação para muitas
mulheres, e eles são ainda maiores entre as de baixa renda e que moram em
periferias. Para elas, qualquer deslocamento implica longos trajetos a serem
percorridos em transporte público. Para isso, no entanto, é preciso caminhar
até o terminal ou ponto de ônibus mais próximo antes mesmo de o dia raiar e, de
preferência, voltar para casa antes de o sol se pôr. Um trajeto de cinco
minutos de caminhada, para elas, pode se assemelhar a um “filme de terror”,
comparou Meirelles.
Um levantamento anterior feito pelo Instituto
Locomotiva, este realizado em parceria com a Uber, mostrou que 71% das mulheres
já sofreram algum tipo de violência durante seus deslocamentos. A maioria
estava a pé (73%) ou dentro de um ônibus (45%); mais de dois terços delas não
reagiram nem prestaram queixa nem junto ao transporte nem à polícia.
Na expectativa de se proteger, de acordo com
as pesquisas, elas evitam sair à noite e transitar por lugares escuros ou
desertos, escolhem exatamente onde sentar-se no transporte público e não usam
certas roupas e acessórios, entre outros cuidados.
Não é apenas prevenção, mas praticamente uma
defesa prévia. Afinal, caso algo de ruim venha a lhes ocorrer, elas sabem que
serão questionadas sobre onde estavam e o que vestiam no momento em que foram
atacadas, como se tivessem voluntariamente se colocado em situação de risco.
Não sendo individual, mas um relato da
maioria das entrevistadas, tamanha sensação de insegurança não é aceitável e
requer resposta à altura das autoridades públicas. Aprimorar a iluminação
pública e ampliar o policiamento ostensivo são ações que costumam gerar
resultados, mas não basta. É preciso ir além do imediatismo e adotar ações que
realmente possam fazer diferença na qualidade de vida dessas mulheres.
Internet: STF entre os riscos e o dever
Correio Braziliense
O STF deve olhar para regramentos exitosos de
outros países e se concentrar em documentos consagrados para definir aquilo que
é válido e o que só traz prejuízos à democracia brasileira
O Supremo Tribunal Federal (STF) deve iniciar
hoje o julgamento de três ações judiciais que podem trazer profundas mudanças à
democracia brasileira. Em suma, elas tratam do Marco Civil da Internet,
regulação que completou 10 anos em abril de 2024. O texto requer atualizações
ou, no mínimo, a criação de mecanismos que o circundem com objetivo de abarcar
as profundas mudanças pelas quais a relação da sociedade com a web passou nos
últimos anos.
A discussão do tema vem em boa e necessária
hora, até mesmo com um importante atraso. A operação recente da Polícia Federal
que terminou com o indiciamento do ex-presidente Jair Bolsonaro e outras 36
pessoas informou à sociedade que uma das frentes de atuação da trama era
voltada a ataques virtuais a opositores. Outros dois núcleos do grupo — a
deslegitimação da vacina contra a covid-19 e as ofensas às instituições —
também passavam diretamente pela divulgação de conteúdo fraudulento e de ódio
nas redes sociais.
Na prática, o STF vai discutir o aumento da
responsabilidade das chamadas big techs para frear conteúdos danosos à
democracia, hoje compartilhados em massa. Uma das peças centrais desse
quebra-cabeça é o artigo 19 do Marco Civil da Internet. Hoje, o trecho só
responsabiliza os sites quando há descumprimento de uma decisão judicial — com
exceção do compartilhamento de fotos e vídeos sexuais sem consentimento da
vítima, no qual a simples notificação da Justiça basta para a exclusão da
postagem.
Acerta o STF ao chamar para si essa
discussão, diante da total inércia do Congresso Nacional para avançar sobre o
tema. O Projeto de Lei 2.630/2020, conhecido como PL das Fake News, morreu na
Câmara após ser aprovado no Senado, diante da divergência ideológica acerca do
texto. O presidente Artur Lira chegou a criar um grupo de trabalho para
discutir, mas, na realidade, o ato se caracterizou como um engavetamento da
proposta — o que dá ao Supremo a obrigação de julgar as ações mencionadas.
Publicamente, parte dos ministros do STF tem
ressaltado a necessidade de frear os discursos de ódio e a antidemocracia
propagada nas redes sociais. Se a necessidade de melhoria está pacificada, o
STF tem "cascas de banana" a serem superadas nos julgamentos. Afinal,
uma Corte judicial tratar sobre a questão é inédito no mundo democrático, já
que outros países sempre fizeram essa discussão por meio de seus
legislativos.
A principal preocupação diz respeito aos
critérios a serem adotados. O aumento da responsabilidade das gigantes da
tecnologia é necessário, mas há uma linha tênue entre o que deve ou não ser
filtrado — ante os perigos de censurar conteúdos que, na verdade, nada têm de
antidemocráticos ou de ódio. Para reduzir os riscos, a nova regulação precisa
se inspirar nos "times que estão ganhando".
O Supremo deve olhar para regramentos
exitosos de outros países e se concentrar em documentos consagrados, como o
Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos da ONU, para definir
aquilo que é válido e o que só traz prejuízos à democracia brasileira. Até
porque, a eventual criação de uma zona cinzenta, de indefinição, aprofundaria
ainda mais os problemas. Em caso de incerteza sobre o que vale ou não, quem sai
perdendo sempre é o usuário, o que resultaria em exclusão em massa de posts nas
redes.
Assim como aconteceu com os escândalos com as empresas de apostas esportivas — que, ante uma legislação ruim, deitaram e rolaram por anos no Brasil às custas de trabalhadores e trabalhadoras dependentes —, a regulação das redes merece uma discussão séria, madura e com participação popular, sem ignorar toda complexidade que envolve qualquer tema sobre a tecnologia e o mundo contemporâneo.
Um comentário:
Hmmm...
Pauta diversificada.
Ok
😎
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