Há dias, um empresário foi assassinado no aeroporto de Cumbica, em São Paulo, ao voltar com a namorada de uma a viagem a Alagoas. Fuzilado, a mando, dizem, do PCC. Pretendia fazer de sua delação premiada passaporte para continuar a viver a vida na festança. Dispensou, incrível, a cobertura do programa de “proteção à testemunha”. Arriscou-se, assim, ao fuzilamento, achando que policiais contratados para proteger seus passos lhe garantiriam plena segurança. A investigação levanta suspeitas sobre seus seguranças.
O segundo episódio é o de um motoqueiro que
fazia muito barulho com sua moto. Em um semáforo, em São Paulo, policiais o
pararam. E o castigaram de modo inusitado. Colocaram o motoqueiro com os
ouvidos na boca do escapamento da moto e baixaram o pé no acelerador. Um ronco
infernal. O rapaz não conseguia tapar os ouvidos, eis que suas mãos estavam
contidas pelos policiais. Punição que lembra tempos imemoriais.
Insensatez, loucura, banalização da
criminalidade, frieza ou simplesmente um fragmento da brutalidade infernal
desses tempos ditos de globalização? O assassinato do empresário mostra o poder
informal, as forças da violência, suplantando o poder formal do Estado.
Os dois fatos têm mais significados que a
simples fotografia do cenário de terror que estamos vendo. Expressam o estado
ilógico, antinômico e alienado de um mundo em que os princípios da eficiência
(e aí, Elon Musk?), a meta da competitividade a qualquer custo, da concorrência
e aética, estão tornando as pessoas infelizes, solitárias e menos solidárias.
Domenico de Masi, sociólogo italiano, autor
de O Futuro do Trabalho, pinça o apólogo do leão e da gazela para
mostrar a que ponto chega a esquizofrenia bárbara das ruas e dos ambientes de
trabalho, que se transformam em campos de guerras da modernidade.
A historinha é emblemática: “Toda manhã, na
África, uma gazela desperta. Sabe que deverá correr mais depressa do que o leão
para não ser devorada. Toda manhã, na África, um leão desperta. Sabe que deverá
correr mais que a gazela para não morrer de fome. Quando o sol surge, não
importa se você é um leão ou uma gazela: é melhor que comece a correr”.
Esse lembrete é exibido em ambientes de
trabalho como profissão de fé de executivos e dirigentes empresariais. À
primeira vista, parece um bom conselho para quem quer vencer na vida. Trata-se,
porém, de uma exaltação à barbárie. Basta intuir que, pelo conselho, “leões
humanos” (aspas nossas) são autorizados a agarrar “gazelas humanas” (aspas
nossas), que, apavoradas, devem se desdobrar para realizar suas tarefas ou se
esconder para fugir das intempéries das ruas e do trabalho (ou dos ataques dos
leões). É evidente o estímulo ao instinto da violência, ao cultivo dos perfis
agressivos, às lutas por espaço e poder, às táticas aéticas e aos golpes
traiçoeiros, tudo justificado pela necessidade da competitividade.
Nessa arena de “leões e gazelas”, a
alternativa que se apresenta é única: correr ou matar. Escapar ou morrer. E é
isso que se vê nos corredores da morte, nos ambientes de trabalho competitivos,
no chão das fábricas, nos palácios e nas ruas. Afinal de contas, ladrões que
surripiam calmamente celulares (roubam e se afastam da vítima andando
calmamente pela calçada), eles mesmos um “leão faminto” (dinheiro, drogas,
satisfação psicológica), são produtos de um meio cada vez mais degradado. A
estética de medo, subordinação e culto à tecnologia dos teatros de competição,
montados nos ambientes de trabalho, soma-se à estética de banalização da
violência nas ruas, cuja multiplicidade é assombrosa: as cidades têm seus
serviços deteriorados, um tormento que torna a vida massacrante; a violência da
miséria absoluta, que exclui milhões de pessoas, principalmente contingentes
marginalizados das periferias urbanas; a violência contra o menor e pelo
adolescente infrator; a violência contra mulheres (o feminicídio), muito discriminadas;
a violência étnica; a violência da falta de oportunidades e assim por diante.
Eis o paradoxo da modernidade. Esse
caldeirão, que deveria ser quente, pela alta temperatura das situações, está
transfigurando a sociedade em um ente frio, compartimentalizado em grupos e
feudos, recortado por imensos apartheids econômicos e sociais. De outro lado, a
organodemocracia, a “democracia” dos departamentos criados nos ambientes
hierarquizados do trabalho privado, está amortecendo o conceito da sociedade
convivial, sociedade voltada para os cidadãos e não para a produção. Os
burocratas não sentem o cheiro das ruas e os dirigentes empresariais só têm
olhos para a produtividade, não raro procurando fórmulas para atenuar os golpes
furiosos do tacape de impostos e tributos governamentais. Sob esse desenho, não
há tempo, interesse ou motivação para se tratar de outras questões e das coisas
do espírito.
Onde estão os valores da solidariedade, do
companheirismo, da doçura nas relações do trabalho, da amizade, da comunhão, do
jogo em equipe? Estão se despedindo da humanidade. Em seu lugar, surge uma
modelagem tétrica, um aparato desordeiro, um jogo maléfico, altamente
competitivo, que convive com golpes, morte, assassinatos, traições, desprezo à
vida. Fechando a galeria da insensatez, aparecem bandidos nas ruas usando
camisetas com Cristo, Gandhi ou santos de sua veneração.
Eis o mundo alienado. Que Deus nos proteja do
apocalipse. Antes que mísseis intercontinentais (esses que a Rússia começa a
usar na guerra contra a Ucrânia) caiam sobre nossas cabeças.
*Gaudêncio Torquato, escritor, jornalista, professor titular da USP e consultor político.
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