sábado, 2 de novembro de 2024

O desequilíbrio perfeito - Luiz Gonzaga Belluzzo e Manfred Back

CartaCapital

Se os modelos fazem previsões precisas e o mercado futuro teima em não acreditar, há algo de podre no reino da teoria econômica

Os preços teimam em ser desobedientes, irrequietos, inconformados. Flutuam impiedosamente a toda hora. Teimam muitas vezes em subir e cair. Flutuam. Provocam neuroses e cardiopatias nos economistas, que teimam em controlar a realidade, mas são desmentidos todo dia. Viva a incerteza de não saber para onde vão no futuro!

Derivativos são instrumentos financeiros que permitem a transferência do risco entre os participantes do mercado. Refere-se ao risco de mercado, ou seja, aquele que envolve oscilações de preços.

Nos modelos Dinâmicos Estocásticos de Equilíbrio Geral a moeda é neutra, apenas unidade de conta e meio de troca. Os mercados financeiros, avaliadores da riqueza e definidores de sua distribuição entre as várias “oportunidades” da economia monetária, estão submetidos às amarras da Eficiência invocada por ­Eugene Fama.

Um derivativo, ou contrato futuro, permite a qualquer um ter o direito de comprar e vender qualquer coisa hoje num futuro determinado. Qualquer coisa, de mercadoria a vento. Se você falar para um louco no hospício que ele pode comprar e vender uma taxa de juro ou um índice de ações, ele pede camisa de força.

Ao contrário do pensamento econômico mainstream, o mercado financeiro e, principalmente, o mercado futuro chegam a transacionar trilhões de dólares por dia, uma capacidade de produzir vento infinitamente maior do que produzir coisas. E se esquecem ou fingem não perceber que um contrato futuro é capaz de transformar vento em dinheiro em apenas 24 horas.

Estima-se que o mercado de derivativos é parrudo. As avaliações mais certeiras garantem que é dez vezes maior que o PIB global. Seriam neutros, sem importância?

Ao comprar ou vender um contrato futuro, é criado um fluxo de pagamentos e recebimentos diários, o chamado ajuste de margem de garantia. Esse ajuste pode ser positivo, um fluxo de caixa positivo em dinheiro, ou pode ser negativo. Se negativo, há necessidade de depositar dinheiro. A cada 24 horas esse fluxo pode mudar de positivo para negativo e vice-versa, dependendo do valor do ativo subjacente no dia.

“Em 2004, o preço do petróleo atingiu níveis recordes. À medida que o preço do petróleo WTI ultrapassou 50 dólares o barril, tornou-se evidente que os interesses não petrolíferos – leia-se os especuladores – detinham mais de 60% das posições nos mercados de derivativos de petróleo. O que esses investidores e traders estavam fazendo com o petróleo? Eles não pretendiam comprar ou vender o óleo físico. Investidores e traders compraram petróleo usando estruturas de derivativos para especular com as variações de preço. O preço do petróleo deixou de refletir a dinâmica subjacente da oferta/demanda do mercado”.

Hoje, o volume de contratos a futuro de petróleo negociados na Bolsa de Futuros é 30 vezes maior do que o mercado à vista.

Outro fenômeno constitutivo dos contratos futuros é a alavancagem financeira, tanto de um especulador quanto de um produtor. Vejam:

“Digamos que você queira arriscar mil dólares. Você pode comprar 10 toneladas usando trigo para a frente, não a mísera tonelada se você realmente comprar o material real. Você usa seu dinheiro como depósito. Se o preço do trigo subir para 1,5 mil (aumento de 50%), você ganha 5 mil (cinco vezes o seu investimento). Há um problema. O que acontece se o preço do trigo não subir? Se o preço cair, você estará em apuros. Se o preço cair apenas 10% (para 900 dólares a tonelada), você terá eliminado todo o seu investimento. Se o preço cair para 500 dólares a tonelada (queda de 50%), você eliminará 5 mil dólares (cinco vezes o seu investimento original). Nero colocou de forma diferente: ‘Você acabou de limpar sua bunda com 5 mil dólares’. A alavancagem aumentou muito sua sensibilidade às flutuações de preços”.

Usam um véu para encobrir que tudo é precificado desde a taxa de juros e de câmbio. É bom lembrar que a taxa de juros é o preço do dinheiro e a taxa de câmbio é o preço da moeda nacional em relação à moeda estrangeira, e vice-versa. Flutuam, que desgraça! Todo santo dia. Quiçá minuto a minuto…

Os maiores volumes de operações no mercado futuro são de arbitragens entre moedas e taxa de juros, chegam a trilhões de dólares diários nos mercados organizados, as Bolsas de Futuros. O que é uma arbitragem? É apostar na diferença entre preços em duas praças diferentes. Onde o desvio abre, ou seja, é maior que a média histórica, abre oportunidade de ganho-alavancagem, e acredita-se que volte para a média.

Apostar nos dois preços mais importantes e incertos da economia, o juro e o câmbio, com derivativos é uma tentativa de ludibriar a incerteza quanto aos preços no futuro. Pergunto: se os modelos estocásticos de equilíbrio geral ­preveem o futuro com grau de certeza na casa dos decimais, por que o mercado futuro teima em não acreditar? Há algo de podre no reino da teoria econômica! Não?

O mercado de derivativos é dez vezes maior que o PIB global. Seriam neutros, sem importância?

Posso comprar e vender boi, soja, milho, arroz, petróleo etc. sem produzir nada!

“A diferença entre os contratos “a termo” e “à vista”, relativos a um bem como o trigo, que tem cotação no mercado, mantém uma relação definida com a taxa de juros do trigo, mas, desde que o contrato a termo seja cotado em moeda para entrega futura, não em trigo para entrega imediata…” (Keynes, Teoria Geral, capítulo 17).

Posso apostar no juro americano, os treasuries, aqui na B3, sem ir ao Tio Sam, ou comprar qualquer título em ­reais. Como posso apostar na taxa de juros do mercado interbancário, DI, na B3, sem comprar qualquer CDB e CDI. Porque títulos de renda fixa têm preço e oscilam todo santo dia, para cima e para baixo! Posso trocar juros por câmbio, através de um swap, onde duas partes definem prazo e valor do contrato, o perdedor paga ao ganhador, no vencimento, o diferencial de preço de cada ativo.

Os derivativos foram criados como proteção às oscilações de preços no futuro para commodities e mercadorias. Mas viraram um fim em si mesmo. Esta é a forma da riqueza que realiza a supremacia do “capital fictício. Decisões de investimentos são mais rápidas que a velocidade da luz, guiadas pelas mudanças diárias dos preços futuros.

No último dia 25 de outubro de 2024, foram negociados, em apenas um dia, em taxa de juros futura de DI, 28 bilhões de dólares e de dólar futuro, 35 bilhões.

“A usura centraliza a riqueza monetária”, elaborou Marx. “Não altera o modo de produção, mas se liga a ele como um parasita e o torna miserável. Ele suga seu sangue, mata seu nervo e obriga a reprodução a prosseguir em condições ainda mais desanimadoras. O capital do usurário não confronta o trabalhador como capital industrial, mas ‘empobrece esse modo de produção, paralisa as forças produtivas em vez de desenvolvê-las’.”

Os derivativos não têm importância?

É o desequilíbrio perfeito. Porque ninguém sabe o futuro. Só os economistas. 

Publicado na edição n° 1335 de CartaCapital, em 06 de novembro de 2024.

 

2 comentários:

Daniel disse...

Excelente! Os especialistas do mercado compram e vendem soja, boi, petróleo, sem nada produzir. Especulação é a norma! E os colunistas econômicos são os PETs desse pessoal.

Mais um amador disse...

Sugiro a leitura de Fernando Nogueira da Costa, professor titular de Economia na Unicamp, " Equívocos da crítica à financeirização ", no site A Terra é Redonda.