Pente-fino no BPC é fundamental para desmascarar fraudes
O Globo
Apesar de tardia, é bem-vinda ideia de
integrar programa a cadastro de benefícios sociais e ampliar exigências
Depois da descoberta de fraudes no
auxílio-doença pago pelo INSS,
o alvo do pente-fino que o governo tem passado sobre os gastos sociais agora é
o Benefício de Prestação Continuada (BPC), que paga um salário mínimo mensal a
deficientes e idosos de baixa renda. Não é preciso ter contribuído à Previdência para
receber o BPC, corrigido pelas mesmas regras generosas do salário mínimo.
Apenas neste ano, o BPC representará uma despesa de R$ 111,5 bilhões, um aumento de 20,3% sobre o gasto de 2023. No primeiro semestre, ele custou R$ 44,1 bilhões, alta de 19,8% em relação ao período em 2023. Os novos benefícios somaram 1,1 milhão nos primeiros seis meses de 2024, 40% acima do verificado no ano passado. Não há fila de espera que justifique o salto.
O governo tem aproveitado a necessidade de
cortar gastos, exigida pelas metas fiscais, para jogar luz sobre programas
sociais. A rigor, a avaliação da qualidade da despesa pública deveria ser
preocupação constante. A atenção não pode acontecer apenas em momentos de
aperto financeiro, situação constante num Estado em crise fiscal crônica. Mas
evidentemente é preferível investigar e punir os abusos a deixar tudo como
está. Já houve estimativas de que seria possível economizar até R$ 6 bilhões
anuais com o pente-fino no BPC, embora o governo depois tenha considerado o
número exagerado.
Parece, de todo modo, haver uma corrida da
população atrás de um dinheiro fácil. A própria ministra do Planejamento,
Simone Tebet, disse em junho no Congresso que “o BPC cresceu de tal forma que
tem de haver alguma coisa errada aí”. Ela deixou uma pergunta no ar: “Será que
algumas pessoas estão indo para a fila do BPC e recebendo indevidamente?”. Para
ter ideia da dimensão dos desvios, em agosto começou uma revisão no cadastro do
programa e, em apenas uma semana, foi suspenso o pagamento a 400 mil beneficiários
que não estavam no Cadastro Único (CadÚnico), que reúne os contemplados pelos
programas sociais.
O BPC passará enfim a ter administração
semelhante à do Bolsa Família, com o cruzamento mensal dos dados. Como ele é um
programa social disfarçado de benefício previdenciário, não havia até agora
checagem dos CPFs dos beneficiários com os do CadÚnico. Técnicos do Ministério
do Desenvolvimento Social estimam que haja 1 milhão de CPFs no BPC, de um total
de 6,1 milhões, com algum tipo de problema. Daqui para a frente, precisarão
comprovar que atendem às regras para continuar a receber. Também se pretende exigir,
como ocorre com os aposentados pelo INSS, prova de vida anual, além de
reconhecimento facial e biometria para concessão do benefício e continuidade
dos pagamentos. Nada que já não pudesse estar em vigor.
A ideia do governo é fixar as normas do
programa em Projeto de Lei encaminhado ao Congresso. Talvez assim os
responsáveis pelo BPC possam fazer uma gestão uniforme e técnica do programa,
sob qualquer governo. O maior aumento de gastos com o BPC começou no segundo
semestre de 2022, quando houve eleições para presidente. Os programas sociais
precisam ser do Estado, sem influência do calendário político-eleitoral. Num
país com grandes desníveis de renda e bolsões de pobreza é essencial uma gestão
eficiente desses gastos, para que os desvios não deixem desassistidos quem de
fato necessita dos recursos.
Amorim e Lula colhem fruto de seus próprios
erros diante de Maduro
O Globo
Desde a fraude eleitoral que o mantém no
poder, estava claro que o venezuelano não negociaria nada
Por ironia, é num governo de Luiz Inácio Lula
da Silva que a diplomacia brasileira esboça sinais de reação ao regime
ditatorial da Venezuela de Nicolás
Maduro. A tensão atingiu o ápice nesta semana, quando Maduro
convocou para consultas seu embaixador em Brasília, e o chavista Jorge
Rodríguez, presidente da Assembleia Nacional, anunciou intenção de tornar o
assessor internacional Celso Amorim,
classificado como “mensageiro do imperialismo americano”, persona non grata no
país. O procurador-geral Tarek William Saab acusou Lula de ser “agente da CIA”.
Nas gestões petistas, influenciado por
Amorim, o Brasil se comportava até agora como se os sucessivos desvios do
chavismo fossem efeitos colaterais desimportantes de um regime que empunhava
bandeiras de esquerda. Ontem, pela primeira vez, o Itamaraty criticou a
Venezuela. “O governo brasileiro constata com surpresa o tom ofensivo adotado
por manifestações de autoridades venezuelanas em relação ao Brasil e aos seus
símbolos nacionais”, afirmou em comunicado. “A opção por ataques pessoais e
escaladas retóricas, em substituição aos canais políticos e diplomáticos, não
corresponde à forma respeitosa com que o governo brasileiro trata a Venezuela e
o seu povo.”
Por trás da ação venezuelana, está não apenas
a recusa brasileira em reconhecer a legitimidade do novo governo Maduro, mas
também o veto imposto por Lula à entrada da Venezuela no Brics.
Foi uma decisão correta. Por mais que o bloco abrigue autocracias, não faria
sentido o Brasil apoiar o ingresso de um regime ditatorial de sua área de
influência que se mostra agressivo. A política
externa precisa ser flexível para acomodar interesses. Não
pode, porém, transigir em princípios fundamentais como a democracia.
Com as fartas evidências de fraude nas
eleições de 28 de julho, a paciência de Lula parece ter enfim se esgotado.
Amorim, que planejava ser o artífice de uma saída negociada para o impasse com
Maduro, se tornou pivô da crise entre os dois países. Com dificuldade de chamar
o regime chavista pelo nome — ditadura —, ele disse ao GLOBO que o
distanciamento em relação à Venezuela “não tem nada a ver com democracia, tem a
ver com quebra de confiança. A quebra de confiança foi uma coisa grave. Nos
disseram uma coisa, e não foi feita”. Amorim esteve em Caracas para acompanhar
as eleições e diz que Maduro prometeu divulgar os boletins de urna, ou atas
eleitorais. Elas não foram nem serão divulgadas. Ainda assim, o Brasil relutou
em condenar a fraude de modo duro como fizeram outros países, sempre apostando
que seria possível convencer Maduro a ceder.
Desde o início, estava evidente que Maduro
não quer negociar nada. Infelizmente, a proximidade e a tolerância das gestões
petistas com o regime bolivariano impediram Amorim e Lula de enxergar o óbvio.
O resultado da iniciativa diplomática é que hoje o Brasil não tem mais condição
nenhuma de mediar qualquer coisa que seja com a Venezuela. Amorim e o Itamaraty
colhem o fruto de seus próprios erros.
Centrão dá as cartas na sucessão do Congresso
Folha de S. Paulo
Acordos para as eleições na Câmara e no
Senado mostram força do grupo, o que se traduz em moderação e privilégios
As eleições para presidentes da Câmara dos
Deputados e do Senado Federal
ocorrerão só em fevereiro, mas, dada a intensidade das negociações em andamento
nas duas Casas, não restará espaço para surpresa na hora de apurar os
vencedores.
O rolo compressor a cargo do presidente Arthur Lira (PP-AL) na Câmara obteve nos
últimos dias a adesão de PT e PL, as duas maiores bancadas, para a
candidatura de seu candidato, Hugo Motta (Republicanos-PB).
As legendas representam respectivamente o atual chefe de Estado, Luiz
Inácio Lula da
Silva, e o seu antípoda e antecessor, Jair
Bolsonaro.
Não que petistas e liberais tivessem
pretensão factível de arrebatar a direção da Casa. Os rivais de Motta —Elmar
Nascimento (União Brasil-BA)
e Antonio Brito (PSD-BA)—
correm na mesma avenida do centrão. Ambos tendem a ser asfixiados ou cooptados
pela coalizão costurada por Lira, cujas siglas abrigam 324 dos 513 deputados,
mais que os 257 necessários para a vitória.
No Senado, uma torrente
semelhante deságua na direção de Davi Alcolumbre (União
Brasil-AP), favorito para voltar a ocupar, no biênio 2025/2026, a cadeira hoje
de Rodrigo
Pacheco (MDB-MG).
O movimento guarda certa congruência com o
ocorrido nestas eleições municipais. Acentuou-se a influência de partidos
situados naquele espectro programático indistinto —ideologicamente de
centro-direita, mas sem nenhum preconceito contra alianças— em detrimento dos
extremos.
No Congresso, como nas prefeituras e Câmaras
locais, o predomínio das agremiações moderadas dificulta a consecução das
agendas radicais. O impeachment de ministros do Supremo Tribunal Federal e a
tentativa de anistiar os condenados pelo vandalismo do 8 de Janeiro, bandeiras
do bolsonarismo, terão baixíssimas chances de prosperar.
A nota negativa da força gravitacional
exercida pelo centrão é que ela reflete um estado de coisas institucional
incômodo e potencialmente disfuncional.
Encastelados
em emendas obrigatórias —quase R$ 40 milhões anuais por
deputado e quase R$ 70 milhões por senador— e farto financiamento público das
campanhas, de R$ 5 bilhões neste ano, os parlamentares federais drenam os
recursos financeiros e políticos que deveriam ajudar o presidencialismo a
funcionar.
O chefe do governo, eleito pela maioria da
população e responsável política e legalmente pela execução orçamentária, vê-se
obstruído pela licenciosidade de que 594 congressistas dispõem para gastar em
suas paróquias.
Quando o presidente da República, como é o
caso de Lula, não está convencido do valor do equilíbrio das contas públicas, a
associação com essa maioria legislativa transforma-se numa bomba fiscal, com as
repercussões financeiras a que o Brasil assiste agora.
A eleição de novas mesas diretoras na Câmara
e no Senado deveria ser uma oportunidade para rever esse desequilíbrio, embora
nada indique que isso vá ocorrer.
Falta um plano para as árvores paulistanas
Folha de S. Paulo
Nunes tem verba para se redimir da omissão
sobre fiação elétrica no programa de governo, inaceitável com crise do clima
Recém-reeleito, Ricardo Nunes (MDB) tem uma
dívida com os munícipes de São Paulo:
apresentar um plano de médio e longo prazo para o manejo das mais de 650 mil
árvores que margeiam ruas e avenidas. A crise do clima deixou
evidente, com dois apagões em menos de um ano, que a tarefa é inadiável.
Não se trata só de cobrar da Enel eficiência
para extinguir a fila de 14,6 mil pedidos de poda. O prefeito já estava no
cargo, em 2023, quando a concessionária cumpriu
meros 3% das 248,6 mil podas planejadas, e não pode seguir
empurrando toda a responsabilidade para a empresa.
A prefeitura da mais rica cidade do país,
que iniciou 2024
com R$ 33 bilhões em caixa, precisa formular programa robusto de
adaptação à mudança do clima. Não é admissível que, conhecida a inevitabilidade
dos eventos extremos da atmosfera, a fiação aérea siga vulnerável às quedas de
galhos e árvores inteiras.
Mostra-se imprescindível conhecer e monitorar
a situação e a saúde de cada espécime. Para tanto, há que começar mapeando
todas as árvores paulistanas, algo que no passado pareceria infactível, mas que
hoje pode ser acelerado com câmeras a bordo de carros, drones e satélites.
O georreferenciamento seria só o ponto de
partida. Cumpriria ainda mobilizar especialistas, como botânicos e engenheiros
florestais, para diagnosticar o estado dos vegetais e inserir as informações
numa base de dados.
Pode demorar mais anos do que os quatro
adicionais conferidos a Nunes, o que exige visão de longo prazo. Não é
auspicioso, assim, que o então candidato à reeleição tenha ignorado o tema em
seu programa de governo.
Quem duvidar da exequibilidade do mapeamento
que contemple o exemplo de Nova York.
A metrópole norte-americana conta com um banco de dados contendo informações
sobre cada uma das 873.635 árvores da cidade, da espécie à data da última
visita de inspeção.
Ao argumento previsível de que o custo seria
proibitivo deve-se contrapor o prejuízo infligido à população a cada
vendaval seguido de blecaute. Só os setores de varejo e serviços
tiveram perdas no valor de R$ 1,65 bilhão na tempestade de outubro —para não
mencionar horas perdidas de trabalho, víveres apodrecidos nos congeladores,
custo da limpeza de logradouros etc.
Uma prefeitura que despendeu R$ 4 bilhões
para repavimentar vias em 2023 e mobiliza 80 carros do DSV equipados com
câmeras para flagrar estacionamento irregular não pode alegar incapacidade para
monitorar árvores.
Atirando a esmo
O Estado de S. Paulo
Não é preciso entulhar ainda mais a
Constituição para combater a insegurança. A PEC apresentada pelo governo serve
só para mostrar serviço numa área em que Lula está em desvantagem
O governo federal está perdido no trato da
segurança pública. Anteontem, o presidente Lula da Silva se reuniu com um grupo
de governadores, representantes do Congresso e do Supremo Tribunal Federal para
apresentar uma Proposta de Emenda à Constituição (PEC) totalmente ociosa que,
entre outras disposições, constitucionaliza o Sistema Único de Segurança
Pública, instituído pela Lei n.º 13.675/2018. O cerne da assim chamada PEC da
Segurança Pública, de autoria do Ministério da Justiça, é criar mecanismos de
vinculação dos Estados para o compartilhamento de informações e dar novas
atribuições às Polícias Federal (PF) e Rodoviária Federal (PRF) no combate ao
crime organizado.
A rigor, nada do que consta na PEC
apresentada pelo ministro Ricardo Lewandowski é necessário para que os Estados
possam cumprir bem a sua atribuição constitucional de prover segurança pública
em seus territórios com os instrumentos que já têm à mão. É de justiça
reconhecer que o texto ainda é um esboço, portanto, sujeito a alterações –
sejam elas sugeridas pelos governadores, sejam as que decerto serão feitas
pelos parlamentares caso a PEC eventualmente chegue ao Congresso. De qualquer
forma, a Constituição e a legislação infraconstitucional em vigor já bastam
como marcos jurídicos para respaldar as ações das polícias em âmbito estadual e
federal. Se estas não têm apresentado os resultados que a população delas
espera, bem, o problema não é de lacuna legal, mas de mau comando.
Tome-se como exemplo o caso do Rio de
Janeiro, Estado tristemente conhecido pelo poder paralelo exercido pelas
milícias e pelas facções do tráfico de drogas. Na reunião com Lula, o
governador Cláudio Castro propôs que os gastos em segurança pública ficassem
fora, pasme o leitor, dos limites da Lei de Responsabilidade Fiscal. Talvez sem
se dar conta de que estava atestando a sua própria incompetência em público, o
sr. Castro lamentou o fato de que a população fluminense sofra com a
insegurança malgrado o Estado gastar R$ 13 bilhões na área, segundo ele,
enquanto as despesas com educação e saúde no Rio somam R$ 8 bilhões e R$ 7
bilhões, respectivamente. “O gasto com segurança toma todo meu espaço fiscal”,
choramingou o chefe do Executivo de um dos entes mais perdulários da Federação.
Ora, se ainda assim, com esse volume de investimentos, não há cidadão no Rio
que possa cochilar num ônibus sem correr o risco de morrer com um tiro de
fuzil, o problema, definitivamente, não é de ordem financeira, é de governo.
É exatamente a má administração que, entre
outros problemas, impede que as Polícias Civil e Militar de um mesmo Estado
compartilhem informações entre elas, que dirá com forças de segurança de outros
entes federativos. Não é preciso mudar a Constituição para que isso se resolva.
Bastaria um governador competente. Será que é preciso algo além do ordenamento
jurídico em vigor para que os maus policiais sejam rigorosamente punidos e
expulsos de suas corporações? É evidente que não. Da mesma forma, não é por falta
de previsão legal para o enfrentamento do crime organizado que as fronteiras
brasileiras são tão porosas a ponto de fazer armas pesadas e carregamentos de
drogas chegarem com extrema facilidade aos grandes centros urbanos do País.
Nesse sentido – alguns com mais estridência, como Ronaldo Caiado (GO), outros
mais propositivos, como Tarcísio de Freitas (SP) –, todos os governadores têm
certa razão nas críticas que fizeram à PEC. Dito isso, cabe-lhes, então, cuidar
melhor de seus próprios quintais, pois a sensação de insegurança grassa em
quase todo o País.
De tão ociosa, a PEC da Segurança Pública
parece feita sob medida para acomodar o interesse eleitoral de Lula com vistas
à sucessão presidencial de 2026. Pode-se dizer tudo sobre o petista, menos que
ele seja desprovido de tino político. Lula percebeu que a aflição dos eleitores
com a insegurança urbana deu o tom da campanha nas eleições municipais. O
busílis é que a segurança pública é – ou deveria ser – uma questão de Estado,
não de governo. Logo, não será com populismo nem entulhando a Constituição de
leis inúteis que os brasileiros haverão de se sentir mais seguros.
Bolsonaro tenta dar prova de vida
O Estado de S. Paulo
Em meio às evidências de que o reacionarismo
já não depende de seu nome e que o conservadorismo alçou voo próprio, o
ex-presidente corre para dizer que a direita não existe sem ele
As recentes eleições municipais mostraram que
o bolsonarismo parece ter ganhado vida própria, independente do político que o
inspirou, o ex-presidente Jair Bolsonaro. Talvez já nem seja mais o caso de
chamar de “bolsonarismo” o que é basicamente reacionarismo – que sempre
existiu, mas que, justiça seja feita, só adquiriu musculatura eleitoral com
Bolsonaro. O problema é que Bolsonaro, o nome próprio do reacionarismo, não
estará na cédula eleitoral na próxima disputa presidencial, por obra e graça da
Justiça, e isso reduz drasticamente sua importância em relação ao futuro. Como
a etiqueta manda que não se considere morto quem ainda respira, a turma que
surfou a onda do capitão toma o cuidado de falar dele com alguma deferência,
mas o discurso ensaiado soa como panegírico. O espólio de Bolsonaro já é
disputado a tapa, razão pela qual ele teve que aparecer em Brasília para
lembrar aos vivos e aos vivaldinos que ele ainda não expirou.
O reacionarismo de Bolsonaro, embora ainda
eleja um bocado de gente, parece ter sido engolido pelo natural processo de
acomodação dos conservadores que chegaram ao poder e nele pretendem permanecer
– processo em que é necessário ganhar votos fora da extrema direita. Para a
direita que está hoje espalhada pelas prefeituras e governos estaduais, quanto
menos radicalismo, melhor.
As incertezas que pairam sobre o futuro
político de Bolsonaro, contudo, vão além da disputa para as prefeituras, que
historicamente costuma dizer muito pouco sobre a eleição presidencial. É
precipitado considerá-lo carta fora do baralho, afinal o ex-presidente ainda
tem fichas próprias para jogar, instrumentos partidários à mão, apelo no
bolsonarismo dito “raiz” e força suficiente para mobilizar milhões de eleitores
e obter sucesso na distribuição de aliados (a começar pelos filhos) pelo Poder
Legislativo.
Mas Bolsonaro enfrenta o avanço, em seu
próprio partido, da ala pragmática comandada pelo presidente Valdemar Costa
Neto. O ex-presidente foi duramente criticado por antigos aliados que se
sentiram traídos por ele, e enfrenta resistência em diversos partidos que
acenam para um possível apoio ao governador de São Paulo, Tarcísio de Freitas
(Republicanos). Pode estar em curso o que o governador de Goiás, Ronaldo Caiado
(União Brasil), definiu como cansaço do País com seu jeito de fazer política. O
cansaço pode não ser tão generalizado assim, mas parece claro o esgotamento do
modelo de implosão do sistema político, agressividade e ataque às instituições
que marcam o bolsonarismo sem moderação.
Não é improvável que candidatos radicais,
substituídos pelo peso da máquina, pelos interesses locais e pelos referendos
sobre gestão, sigam com dificuldades nos próximos dois anos, ante a robustez
adquirida pelo centro (seja o centro ideologicamente moderado, seja o centro
fisiológico). E mesmo radicais e herdeiros do bolsonarismo clássico, como o
delinquente Pablo Marçal (PRTB) ou o deputado federal lacrador Nikolas Ferreira
(PL), vêm alçando voo próprio, à revelia de Bolsonaro.
A encruzilhada se completa com a ausência
daquilo que na política é um ativo imprescindível para aspirações futuras: a
perspectiva de poder. Bolsonaro está inelegível até 2030 e não poucos
especialistas acreditam que, se for condenado em consequência da série de
investigações que tramitam sobre ele no Supremo Tribunal Federal (STF), terá os
direitos políticos suspensos e a inelegibilidade, estendida. Não à toa se
assistiu à sua recente visita surpresa ao Senado, na qual foi reivindicar a
anistia aos golpistas de janeiro de 2023, e ali ele declarou que é “utopia”
imaginar a direita sem ele. Depois, em entrevista à revista Veja,
declarou: “Estou vivo. Com todo o respeito, chance só tenho eu, o resto (entre
possíveis candidatos de direita) não tem nome nacional. O candidato sou eu”.
Vivo, de fato, Bolsonaro está – mas, quando
precisa dizer que é importante ou imprescindível, é porque já deixou de sê-lo.
Enfim, justiça
O Estado de S. Paulo
Caso da vereadora Marielle Franco deve ser um
marco na abordagem de crimes contra políticos
A condenação dos assassinos confessos da
vereadora do Rio de Janeiro Marielle Franco (PSOL) e do motorista Anderson
Gomes não é um desfecho trivial para homicídios de políticos no País. Pode-se
dizer que, neste caso específico, a vitória – parcial, pois ainda resta punir
os mandantes – foi de uma sociedade traumatizada pela brutalidade do crime e
que exigia justiça célere e abrangente. Foi um processo particularmente
complexo, pois se confundiu com a atmosfera de polarização que tomou o País e
que por isso gerou todo tipo de teoria sobre o crime, sempre com algum tipo de
intenção política. A conclusão do caso num prazo relativamente aceitável, mesmo
depois de tanta confusão e da óbvia vontade de parte da polícia do Rio de
embaraçar as investigações, é digna de nota – e pode se converter num marco
para a abordagem de casos semelhantes, que vêm ocorrendo com trágica frequência
em todo o País.
O tribunal do júri condenou, como autores do
crime, os ex-policiais militares (PMs) Ronnie Lessa, sentenciado a 78 anos de
prisão, e Élcio Queiroz, que pegou 59 anos. Como se tratava de réus confessos,
não houve surpresa. A próxima etapa do caso, contudo, tende a ser bem mais
espinhosa: o julgamento dos irmãos Chiquinho Brazão, deputado federal, e
Domingos Brazão, conselheiro afastado do Tribunal de Contas do Estado do Rio,
considerados os mandantes do crime.
Junto com eles serão julgados os demais
acusados de participação no crime: o delegado da Polícia Civil Rivaldo Barbosa,
apontado como mentor do assassinato, o ex-PM Robson Calixto e o major da PM
Ronald Paulo de Alves Pereira, ambos tidos como auxiliares do homicídio. Todos
foram implicados por Lessa em seus depoimentos. Segundo o assassino de
Marielle, a morte foi encomendada pelos irmãos Brazão por causa da atuação da
vereadora contra a grilagem de terras pelas milícias na zona oeste do Rio. O
caso desses réus está entregue ao Supremo Tribunal Federal, uma vez que
Chiquinho Brazão tem foro privilegiado.
De acordo com o boletim Observatório da
Violência Política e Eleitoral no Brasil, do Grupo de Investigação Eleitoral
(Giel) da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UniRio), no
primeiro semestre deste ano foram registrados 49 homicídios de políticos e seus
parentes em 17 Estados da Federação. Em 2020, reportagem do jornal O Globo com
base em levantamento semelhante do Giel mostrou que, de 2018 a 2020, 23
políticos foram mortos no Estado do Rio de Janeiro e em 14 dos casos a autoria
dos crimes foi declarada indeterminada em processos inconclusos. Naquela
amostra, ninguém foi condenado.
O julgamento do caso Marielle, portanto,
presta um grande serviço à sociedade ao desafiar essa realidade. O assassinato
de Marielle Franco e do motorista Anderson Gomes foi durante muito tempo
tratado como símbolo da incapacidade do Estado de punir bandidos que têm
conexões com o poder. Que a condenação dos assassinos seja o começo de uma
mudança nessa percepção generalizada de injustiça.
Sem mudança, não haverá segurança
Correio Braziliense
A territorialização do crime organizado e a internacionalização das organizações criminosas nos mostram que estamos enxugando gelo
Segundo um velho jargão do planejamento
estratégico e da boa governança, quando algo está dando errado, se as mesmas
coisas forem feitas, continuará dando errado. É o que acontece com a segurança
pública no nosso país, que não consegue conter o crime organizado nem a
violência. A territorialização do crime organizado, com ocupação de grandes
áreas urbanas das nossas cidades, e a internacionalização das organizações
criminosas, principalmente as que comandam o tráfico de drogas, como o Primeiro
Comando da Capital (PCC) e o Comando Vermelho (CV), nos mostram que estamos
enxugando gelo.
Não existe crime organizado sem infiltração
no aparelho de segurança do Estado, o que frustra as políticas de segurança
pública e tornam vulneráveis as ações repressivas. Não se trata apenas de
fechar os olhos às atividades criminosas, como a contravenção e o tráfico, mas
de agentes públicos participarem do que acontece, como se viu no caso da
vereadora Marielle Franco. O delegado Rivaldo Barbosa, então chefe da
Polícia Civil fluminense na época das investigações, é réu. Os acusados de
serem os mandantes também são autoridades: os irmãos Chiquinho, deputado
federal, e Domingos Brazão, conselheiro do Tribunal de Contas do Estado do Rio
de Janeiro.
Na quinta-feira, o presidente Luiz Inácio
Lula da Silva apresentou uma proposta de reforma do sistema de segurança
pública cujo objetivo central é aumentar a cooperação entre a União e os
estados no combate ao crime organizado. A Proposta de Emenda Constitucional
(PEC) da Segurança Pública, apresentada pelo ministro da Justiça, Ricardo
Lewandowski, sugere alterações nos artigos 21, 22, 23 e 24 da Constituição
Federal. Trata-se de dar status constitucional ao Sistema Único de Segurança
Pública (Susp), criado durante o governo do presidente Michel Temer, por
proposta do então ministro da Segurança Pública Raul Jungmann.
A proposta atribui à Polícia Federal a
investigação de organizações criminosas e milícias com repercussão
interestadual e internacional. A Polícia Rodoviária Federal (PRF) passaria a
ser chamada de Polícia Ostensiva Federal, com competência para atuar em
rodovias, ferrovias e hidrovias federais, além de prestar auxílio às forças de
segurança estaduais. A emenda também propõe a unificação dos Fundo Nacional de
Segurança Pública e o Fundo Penitenciário, permitindo que mais recursos sejam
utilizados no sistema prisional, onde se sabe que estão os líderes das
principais facções criminosas. O governo busca, ainda, uniformizar
protocolos de segurança, como boletins de ocorrência e certidões de
antecedentes criminais.
Entretanto, a reforma enfrenta resistência de
governadores, que sugeriram mudanças no projeto para combater a lavagem de
dinheiro, por exemplo. Tarcísio de Freitas (SP) propôs a estadualização das
leis penais. Elmano de Freitas (CE) argumenta que deixaria o arcabouço
jurídico-legal do país ainda mais confuso. Ronaldo Caiado (GO) queixa-se da
perda de autonomia. Três governadores não foram à reunião: Romeu Zema (MG),
Ratinho Júnior (PR) e Jorginho Mello (SC).
Negociar com os governadores é muito
importante, mais ainda com os 308 deputados federais e 49 senadores que
aprovarão a emenda constitucional. A oposição teme perder controle sobre a
atuação das polícias civil e militar. Alguns se queixam de vazamento de dados
ao compartilhar as informações com outros estados, sobretudo os notoriamente
infiltrados pelo crime organizado, como é o caso do Rio de Janeiro.
O governo Lula enfrentará desafios para
convencer a oposição a apoiar a reforma, mas a medida é vista como um passo
importante para combater o crime organizado e o fortalecimento da segurança
pública no país. É exatamente por isso que o sistema de segurança pública deve
ser reformado, pois é preciso ajuda federal àqueles que perderam o controle da
situação.
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