sábado, 2 de novembro de 2024

O que a mídia pensa | Editoriais / Opiniões

Pente-fino no BPC é fundamental para desmascarar fraudes

O Globo

Apesar de tardia, é bem-vinda ideia de integrar programa a cadastro de benefícios sociais e ampliar exigências

Depois da descoberta de fraudes no auxílio-doença pago pelo INSS, o alvo do pente-fino que o governo tem passado sobre os gastos sociais agora é o Benefício de Prestação Continuada (BPC), que paga um salário mínimo mensal a deficientes e idosos de baixa renda. Não é preciso ter contribuído à Previdência para receber o BPC, corrigido pelas mesmas regras generosas do salário mínimo.

Apenas neste ano, o BPC representará uma despesa de R$ 111,5 bilhões, um aumento de 20,3% sobre o gasto de 2023. No primeiro semestre, ele custou R$ 44,1 bilhões, alta de 19,8% em relação ao período em 2023. Os novos benefícios somaram 1,1 milhão nos primeiros seis meses de 2024, 40% acima do verificado no ano passado. Não há fila de espera que justifique o salto.

O governo tem aproveitado a necessidade de cortar gastos, exigida pelas metas fiscais, para jogar luz sobre programas sociais. A rigor, a avaliação da qualidade da despesa pública deveria ser preocupação constante. A atenção não pode acontecer apenas em momentos de aperto financeiro, situação constante num Estado em crise fiscal crônica. Mas evidentemente é preferível investigar e punir os abusos a deixar tudo como está. Já houve estimativas de que seria possível economizar até R$ 6 bilhões anuais com o pente-fino no BPC, embora o governo depois tenha considerado o número exagerado.

Parece, de todo modo, haver uma corrida da população atrás de um dinheiro fácil. A própria ministra do Planejamento, Simone Tebet, disse em junho no Congresso que “o BPC cresceu de tal forma que tem de haver alguma coisa errada aí”. Ela deixou uma pergunta no ar: “Será que algumas pessoas estão indo para a fila do BPC e recebendo indevidamente?”. Para ter ideia da dimensão dos desvios, em agosto começou uma revisão no cadastro do programa e, em apenas uma semana, foi suspenso o pagamento a 400 mil beneficiários que não estavam no Cadastro Único (CadÚnico), que reúne os contemplados pelos programas sociais.

O BPC passará enfim a ter administração semelhante à do Bolsa Família, com o cruzamento mensal dos dados. Como ele é um programa social disfarçado de benefício previdenciário, não havia até agora checagem dos CPFs dos beneficiários com os do CadÚnico. Técnicos do Ministério do Desenvolvimento Social estimam que haja 1 milhão de CPFs no BPC, de um total de 6,1 milhões, com algum tipo de problema. Daqui para a frente, precisarão comprovar que atendem às regras para continuar a receber. Também se pretende exigir, como ocorre com os aposentados pelo INSS, prova de vida anual, além de reconhecimento facial e biometria para concessão do benefício e continuidade dos pagamentos. Nada que já não pudesse estar em vigor.

A ideia do governo é fixar as normas do programa em Projeto de Lei encaminhado ao Congresso. Talvez assim os responsáveis pelo BPC possam fazer uma gestão uniforme e técnica do programa, sob qualquer governo. O maior aumento de gastos com o BPC começou no segundo semestre de 2022, quando houve eleições para presidente. Os programas sociais precisam ser do Estado, sem influência do calendário político-eleitoral. Num país com grandes desníveis de renda e bolsões de pobreza é essencial uma gestão eficiente desses gastos, para que os desvios não deixem desassistidos quem de fato necessita dos recursos.

Amorim e Lula colhem fruto de seus próprios erros diante de Maduro

O Globo

Desde a fraude eleitoral que o mantém no poder, estava claro que o venezuelano não negociaria nada

Por ironia, é num governo de Luiz Inácio Lula da Silva que a diplomacia brasileira esboça sinais de reação ao regime ditatorial da Venezuela de Nicolás Maduro. A tensão atingiu o ápice nesta semana, quando Maduro convocou para consultas seu embaixador em Brasília, e o chavista Jorge Rodríguez, presidente da Assembleia Nacional, anunciou intenção de tornar o assessor internacional Celso Amorim, classificado como “mensageiro do imperialismo americano”, persona non grata no país. O procurador-geral Tarek William Saab acusou Lula de ser “agente da CIA”.

Nas gestões petistas, influenciado por Amorim, o Brasil se comportava até agora como se os sucessivos desvios do chavismo fossem efeitos colaterais desimportantes de um regime que empunhava bandeiras de esquerda. Ontem, pela primeira vez, o Itamaraty criticou a Venezuela. “O governo brasileiro constata com surpresa o tom ofensivo adotado por manifestações de autoridades venezuelanas em relação ao Brasil e aos seus símbolos nacionais”, afirmou em comunicado. “A opção por ataques pessoais e escaladas retóricas, em substituição aos canais políticos e diplomáticos, não corresponde à forma respeitosa com que o governo brasileiro trata a Venezuela e o seu povo.”

Por trás da ação venezuelana, está não apenas a recusa brasileira em reconhecer a legitimidade do novo governo Maduro, mas também o veto imposto por Lula à entrada da Venezuela no Brics. Foi uma decisão correta. Por mais que o bloco abrigue autocracias, não faria sentido o Brasil apoiar o ingresso de um regime ditatorial de sua área de influência que se mostra agressivo. A política externa precisa ser flexível para acomodar interesses. Não pode, porém, transigir em princípios fundamentais como a democracia.

Com as fartas evidências de fraude nas eleições de 28 de julho, a paciência de Lula parece ter enfim se esgotado. Amorim, que planejava ser o artífice de uma saída negociada para o impasse com Maduro, se tornou pivô da crise entre os dois países. Com dificuldade de chamar o regime chavista pelo nome — ditadura —, ele disse ao GLOBO que o distanciamento em relação à Venezuela “não tem nada a ver com democracia, tem a ver com quebra de confiança. A quebra de confiança foi uma coisa grave. Nos disseram uma coisa, e não foi feita”. Amorim esteve em Caracas para acompanhar as eleições e diz que Maduro prometeu divulgar os boletins de urna, ou atas eleitorais. Elas não foram nem serão divulgadas. Ainda assim, o Brasil relutou em condenar a fraude de modo duro como fizeram outros países, sempre apostando que seria possível convencer Maduro a ceder.

Desde o início, estava evidente que Maduro não quer negociar nada. Infelizmente, a proximidade e a tolerância das gestões petistas com o regime bolivariano impediram Amorim e Lula de enxergar o óbvio. O resultado da iniciativa diplomática é que hoje o Brasil não tem mais condição nenhuma de mediar qualquer coisa que seja com a Venezuela. Amorim e o Itamaraty colhem o fruto de seus próprios erros.

Centrão dá as cartas na sucessão do Congresso

Folha de S. Paulo

Acordos para as eleições na Câmara e no Senado mostram força do grupo, o que se traduz em moderação e privilégios

As eleições para presidentes da Câmara dos Deputados e do Senado Federal ocorrerão só em fevereiro, mas, dada a intensidade das negociações em andamento nas duas Casas, não restará espaço para surpresa na hora de apurar os vencedores.

O rolo compressor a cargo do presidente Arthur Lira (PP-AL) na Câmara obteve nos últimos dias a adesão de PT e PL, as duas maiores bancadas, para a candidatura de seu candidato, Hugo Motta (Republicanos-PB). As legendas representam respectivamente o atual chefe de Estado, Luiz Inácio Lula da Silva, e o seu antípoda e antecessor, Jair Bolsonaro.

Não que petistas e liberais tivessem pretensão factível de arrebatar a direção da Casa. Os rivais de Motta —Elmar Nascimento (União Brasil-BA) e Antonio Brito (PSD-BA)— correm na mesma avenida do centrão. Ambos tendem a ser asfixiados ou cooptados pela coalizão costurada por Lira, cujas siglas abrigam 324 dos 513 deputados, mais que os 257 necessários para a vitória.

No Senado, uma torrente semelhante deságua na direção de Davi Alcolumbre (União Brasil-AP), favorito para voltar a ocupar, no biênio 2025/2026, a cadeira hoje de Rodrigo Pacheco (MDB-MG).

O movimento guarda certa congruência com o ocorrido nestas eleições municipais. Acentuou-se a influência de partidos situados naquele espectro programático indistinto —ideologicamente de centro-direita, mas sem nenhum preconceito contra alianças— em detrimento dos extremos.

No Congresso, como nas prefeituras e Câmaras locais, o predomínio das agremiações moderadas dificulta a consecução das agendas radicais. O impeachment de ministros do Supremo Tribunal Federal e a tentativa de anistiar os condenados pelo vandalismo do 8 de Janeiro, bandeiras do bolsonarismo, terão baixíssimas chances de prosperar.

A nota negativa da força gravitacional exercida pelo centrão é que ela reflete um estado de coisas institucional incômodo e potencialmente disfuncional.

Encastelados em emendas obrigatórias —quase R$ 40 milhões anuais por deputado e quase R$ 70 milhões por senador— e farto financiamento público das campanhas, de R$ 5 bilhões neste ano, os parlamentares federais drenam os recursos financeiros e políticos que deveriam ajudar o presidencialismo a funcionar.

O chefe do governo, eleito pela maioria da população e responsável política e legalmente pela execução orçamentária, vê-se obstruído pela licenciosidade de que 594 congressistas dispõem para gastar em suas paróquias.

Quando o presidente da República, como é o caso de Lula, não está convencido do valor do equilíbrio das contas públicas, a associação com essa maioria legislativa transforma-se numa bomba fiscal, com as repercussões financeiras a que o Brasil assiste agora.

A eleição de novas mesas diretoras na Câmara e no Senado deveria ser uma oportunidade para rever esse desequilíbrio, embora nada indique que isso vá ocorrer.

Falta um plano para as árvores paulistanas

Folha de S. Paulo

Nunes tem verba para se redimir da omissão sobre fiação elétrica no programa de governo, inaceitável com crise do clima

Recém-reeleito, Ricardo Nunes (MDB) tem uma dívida com os munícipes de São Paulo: apresentar um plano de médio e longo prazo para o manejo das mais de 650 mil árvores que margeiam ruas e avenidas. A crise do clima deixou evidente, com dois apagões em menos de um ano, que a tarefa é inadiável.

Não se trata só de cobrar da Enel eficiência para extinguir a fila de 14,6 mil pedidos de poda. O prefeito já estava no cargo, em 2023, quando a concessionária cumpriu meros 3% das 248,6 mil podas planejadas, e não pode seguir empurrando toda a responsabilidade para a empresa.

A prefeitura da mais rica cidade do país, que iniciou 2024 com R$ 33 bilhões em caixa, precisa formular programa robusto de adaptação à mudança do clima. Não é admissível que, conhecida a inevitabilidade dos eventos extremos da atmosfera, a fiação aérea siga vulnerável às quedas de galhos e árvores inteiras.

Mostra-se imprescindível conhecer e monitorar a situação e a saúde de cada espécime. Para tanto, há que começar mapeando todas as árvores paulistanas, algo que no passado pareceria infactível, mas que hoje pode ser acelerado com câmeras a bordo de carros, drones e satélites.

O georreferenciamento seria só o ponto de partida. Cumpriria ainda mobilizar especialistas, como botânicos e engenheiros florestais, para diagnosticar o estado dos vegetais e inserir as informações numa base de dados.

Pode demorar mais anos do que os quatro adicionais conferidos a Nunes, o que exige visão de longo prazo. Não é auspicioso, assim, que o então candidato à reeleição tenha ignorado o tema em seu programa de governo.

Quem duvidar da exequibilidade do mapeamento que contemple o exemplo de Nova York. A metrópole norte-americana conta com um banco de dados contendo informações sobre cada uma das 873.635 árvores da cidade, da espécie à data da última visita de inspeção.

Ao argumento previsível de que o custo seria proibitivo deve-se contrapor o prejuízo infligido à população a cada vendaval seguido de blecaute. Só os setores de varejo e serviços tiveram perdas no valor de R$ 1,65 bilhão na tempestade de outubro —para não mencionar horas perdidas de trabalho, víveres apodrecidos nos congeladores, custo da limpeza de logradouros etc.

Uma prefeitura que despendeu R$ 4 bilhões para repavimentar vias em 2023 e mobiliza 80 carros do DSV equipados com câmeras para flagrar estacionamento irregular não pode alegar incapacidade para monitorar árvores.

Atirando a esmo

O Estado de S. Paulo

Não é preciso entulhar ainda mais a Constituição para combater a insegurança. A PEC apresentada pelo governo serve só para mostrar serviço numa área em que Lula está em desvantagem

O governo federal está perdido no trato da segurança pública. Anteontem, o presidente Lula da Silva se reuniu com um grupo de governadores, representantes do Congresso e do Supremo Tribunal Federal para apresentar uma Proposta de Emenda à Constituição (PEC) totalmente ociosa que, entre outras disposições, constitucionaliza o Sistema Único de Segurança Pública, instituído pela Lei n.º 13.675/2018. O cerne da assim chamada PEC da Segurança Pública, de autoria do Ministério da Justiça, é criar mecanismos de vinculação dos Estados para o compartilhamento de informações e dar novas atribuições às Polícias Federal (PF) e Rodoviária Federal (PRF) no combate ao crime organizado.

A rigor, nada do que consta na PEC apresentada pelo ministro Ricardo Lewandowski é necessário para que os Estados possam cumprir bem a sua atribuição constitucional de prover segurança pública em seus territórios com os instrumentos que já têm à mão. É de justiça reconhecer que o texto ainda é um esboço, portanto, sujeito a alterações – sejam elas sugeridas pelos governadores, sejam as que decerto serão feitas pelos parlamentares caso a PEC eventualmente chegue ao Congresso. De qualquer forma, a Constituição e a legislação infraconstitucional em vigor já bastam como marcos jurídicos para respaldar as ações das polícias em âmbito estadual e federal. Se estas não têm apresentado os resultados que a população delas espera, bem, o problema não é de lacuna legal, mas de mau comando.

Tome-se como exemplo o caso do Rio de Janeiro, Estado tristemente conhecido pelo poder paralelo exercido pelas milícias e pelas facções do tráfico de drogas. Na reunião com Lula, o governador Cláudio Castro propôs que os gastos em segurança pública ficassem fora, pasme o leitor, dos limites da Lei de Responsabilidade Fiscal. Talvez sem se dar conta de que estava atestando a sua própria incompetência em público, o sr. Castro lamentou o fato de que a população fluminense sofra com a insegurança malgrado o Estado gastar R$ 13 bilhões na área, segundo ele, enquanto as despesas com educação e saúde no Rio somam R$ 8 bilhões e R$ 7 bilhões, respectivamente. “O gasto com segurança toma todo meu espaço fiscal”, choramingou o chefe do Executivo de um dos entes mais perdulários da Federação. Ora, se ainda assim, com esse volume de investimentos, não há cidadão no Rio que possa cochilar num ônibus sem correr o risco de morrer com um tiro de fuzil, o problema, definitivamente, não é de ordem financeira, é de governo.

É exatamente a má administração que, entre outros problemas, impede que as Polícias Civil e Militar de um mesmo Estado compartilhem informações entre elas, que dirá com forças de segurança de outros entes federativos. Não é preciso mudar a Constituição para que isso se resolva. Bastaria um governador competente. Será que é preciso algo além do ordenamento jurídico em vigor para que os maus policiais sejam rigorosamente punidos e expulsos de suas corporações? É evidente que não. Da mesma forma, não é por falta de previsão legal para o enfrentamento do crime organizado que as fronteiras brasileiras são tão porosas a ponto de fazer armas pesadas e carregamentos de drogas chegarem com extrema facilidade aos grandes centros urbanos do País. Nesse sentido – alguns com mais estridência, como Ronaldo Caiado (GO), outros mais propositivos, como Tarcísio de Freitas (SP) –, todos os governadores têm certa razão nas críticas que fizeram à PEC. Dito isso, cabe-lhes, então, cuidar melhor de seus próprios quintais, pois a sensação de insegurança grassa em quase todo o País.

De tão ociosa, a PEC da Segurança Pública parece feita sob medida para acomodar o interesse eleitoral de Lula com vistas à sucessão presidencial de 2026. Pode-se dizer tudo sobre o petista, menos que ele seja desprovido de tino político. Lula percebeu que a aflição dos eleitores com a insegurança urbana deu o tom da campanha nas eleições municipais. O busílis é que a segurança pública é – ou deveria ser – uma questão de Estado, não de governo. Logo, não será com populismo nem entulhando a Constituição de leis inúteis que os brasileiros haverão de se sentir mais seguros.

Bolsonaro tenta dar prova de vida

O Estado de S. Paulo

Em meio às evidências de que o reacionarismo já não depende de seu nome e que o conservadorismo alçou voo próprio, o ex-presidente corre para dizer que a direita não existe sem ele

As recentes eleições municipais mostraram que o bolsonarismo parece ter ganhado vida própria, independente do político que o inspirou, o ex-presidente Jair Bolsonaro. Talvez já nem seja mais o caso de chamar de “bolsonarismo” o que é basicamente reacionarismo – que sempre existiu, mas que, justiça seja feita, só adquiriu musculatura eleitoral com Bolsonaro. O problema é que Bolsonaro, o nome próprio do reacionarismo, não estará na cédula eleitoral na próxima disputa presidencial, por obra e graça da Justiça, e isso reduz drasticamente sua importância em relação ao futuro. Como a etiqueta manda que não se considere morto quem ainda respira, a turma que surfou a onda do capitão toma o cuidado de falar dele com alguma deferência, mas o discurso ensaiado soa como panegírico. O espólio de Bolsonaro já é disputado a tapa, razão pela qual ele teve que aparecer em Brasília para lembrar aos vivos e aos vivaldinos que ele ainda não expirou.

O reacionarismo de Bolsonaro, embora ainda eleja um bocado de gente, parece ter sido engolido pelo natural processo de acomodação dos conservadores que chegaram ao poder e nele pretendem permanecer – processo em que é necessário ganhar votos fora da extrema direita. Para a direita que está hoje espalhada pelas prefeituras e governos estaduais, quanto menos radicalismo, melhor.

As incertezas que pairam sobre o futuro político de Bolsonaro, contudo, vão além da disputa para as prefeituras, que historicamente costuma dizer muito pouco sobre a eleição presidencial. É precipitado considerá-lo carta fora do baralho, afinal o ex-presidente ainda tem fichas próprias para jogar, instrumentos partidários à mão, apelo no bolsonarismo dito “raiz” e força suficiente para mobilizar milhões de eleitores e obter sucesso na distribuição de aliados (a começar pelos filhos) pelo Poder Legislativo.

Mas Bolsonaro enfrenta o avanço, em seu próprio partido, da ala pragmática comandada pelo presidente Valdemar Costa Neto. O ex-presidente foi duramente criticado por antigos aliados que se sentiram traídos por ele, e enfrenta resistência em diversos partidos que acenam para um possível apoio ao governador de São Paulo, Tarcísio de Freitas (Republicanos). Pode estar em curso o que o governador de Goiás, Ronaldo Caiado (União Brasil), definiu como cansaço do País com seu jeito de fazer política. O cansaço pode não ser tão generalizado assim, mas parece claro o esgotamento do modelo de implosão do sistema político, agressividade e ataque às instituições que marcam o bolsonarismo sem moderação.

Não é improvável que candidatos radicais, substituídos pelo peso da máquina, pelos interesses locais e pelos referendos sobre gestão, sigam com dificuldades nos próximos dois anos, ante a robustez adquirida pelo centro (seja o centro ideologicamente moderado, seja o centro fisiológico). E mesmo radicais e herdeiros do bolsonarismo clássico, como o delinquente Pablo Marçal (PRTB) ou o deputado federal lacrador Nikolas Ferreira (PL), vêm alçando voo próprio, à revelia de Bolsonaro.

A encruzilhada se completa com a ausência daquilo que na política é um ativo imprescindível para aspirações futuras: a perspectiva de poder. Bolsonaro está inelegível até 2030 e não poucos especialistas acreditam que, se for condenado em consequência da série de investigações que tramitam sobre ele no Supremo Tribunal Federal (STF), terá os direitos políticos suspensos e a inelegibilidade, estendida. Não à toa se assistiu à sua recente visita surpresa ao Senado, na qual foi reivindicar a anistia aos golpistas de janeiro de 2023, e ali ele declarou que é “utopia” imaginar a direita sem ele. Depois, em entrevista à revista Veja, declarou: “Estou vivo. Com todo o respeito, chance só tenho eu, o resto (entre possíveis candidatos de direita) não tem nome nacional. O candidato sou eu”.

Vivo, de fato, Bolsonaro está – mas, quando precisa dizer que é importante ou imprescindível, é porque já deixou de sê-lo.

Enfim, justiça

O Estado de S. Paulo

Caso da vereadora Marielle Franco deve ser um marco na abordagem de crimes contra políticos

A condenação dos assassinos confessos da vereadora do Rio de Janeiro Marielle Franco (PSOL) e do motorista Anderson Gomes não é um desfecho trivial para homicídios de políticos no País. Pode-se dizer que, neste caso específico, a vitória – parcial, pois ainda resta punir os mandantes – foi de uma sociedade traumatizada pela brutalidade do crime e que exigia justiça célere e abrangente. Foi um processo particularmente complexo, pois se confundiu com a atmosfera de polarização que tomou o País e que por isso gerou todo tipo de teoria sobre o crime, sempre com algum tipo de intenção política. A conclusão do caso num prazo relativamente aceitável, mesmo depois de tanta confusão e da óbvia vontade de parte da polícia do Rio de embaraçar as investigações, é digna de nota – e pode se converter num marco para a abordagem de casos semelhantes, que vêm ocorrendo com trágica frequência em todo o País.

O tribunal do júri condenou, como autores do crime, os ex-policiais militares (PMs) Ronnie Lessa, sentenciado a 78 anos de prisão, e Élcio Queiroz, que pegou 59 anos. Como se tratava de réus confessos, não houve surpresa. A próxima etapa do caso, contudo, tende a ser bem mais espinhosa: o julgamento dos irmãos Chiquinho Brazão, deputado federal, e Domingos Brazão, conselheiro afastado do Tribunal de Contas do Estado do Rio, considerados os mandantes do crime.

Junto com eles serão julgados os demais acusados de participação no crime: o delegado da Polícia Civil Rivaldo Barbosa, apontado como mentor do assassinato, o ex-PM Robson Calixto e o major da PM Ronald Paulo de Alves Pereira, ambos tidos como auxiliares do homicídio. Todos foram implicados por Lessa em seus depoimentos. Segundo o assassino de Marielle, a morte foi encomendada pelos irmãos Brazão por causa da atuação da vereadora contra a grilagem de terras pelas milícias na zona oeste do Rio. O caso desses réus está entregue ao Supremo Tribunal Federal, uma vez que Chiquinho Brazão tem foro privilegiado.

De acordo com o boletim Observatório da Violência Política e Eleitoral no Brasil, do Grupo de Investigação Eleitoral (Giel) da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UniRio), no primeiro semestre deste ano foram registrados 49 homicídios de políticos e seus parentes em 17 Estados da Federação. Em 2020, reportagem do jornal O Globo com base em levantamento semelhante do Giel mostrou que, de 2018 a 2020, 23 políticos foram mortos no Estado do Rio de Janeiro e em 14 dos casos a autoria dos crimes foi declarada indeterminada em processos inconclusos. Naquela amostra, ninguém foi condenado.

O julgamento do caso Marielle, portanto, presta um grande serviço à sociedade ao desafiar essa realidade. O assassinato de Marielle Franco e do motorista Anderson Gomes foi durante muito tempo tratado como símbolo da incapacidade do Estado de punir bandidos que têm conexões com o poder. Que a condenação dos assassinos seja o começo de uma mudança nessa percepção generalizada de injustiça.

Sem mudança, não haverá segurança

Correio Braziliense

A territorialização do crime organizado e a internacionalização das organizações criminosas nos mostram que estamos enxugando gelo

Segundo um velho jargão do planejamento estratégico e da boa governança, quando algo está dando errado, se as mesmas coisas forem feitas, continuará dando errado. É o que acontece com a segurança pública no nosso país, que não consegue conter o crime organizado nem a violência. A territorialização do crime organizado, com ocupação de grandes áreas urbanas das nossas cidades, e a internacionalização das organizações criminosas, principalmente as que comandam o tráfico de drogas, como o Primeiro Comando da Capital (PCC) e o Comando Vermelho (CV), nos mostram que estamos enxugando gelo.

Não existe crime organizado sem infiltração no aparelho de segurança do Estado, o que frustra as políticas de segurança pública e tornam vulneráveis as ações repressivas. Não se trata apenas de fechar os olhos às atividades criminosas, como a contravenção e o tráfico, mas de agentes públicos participarem do que acontece, como se viu no caso da vereadora Marielle Franco. O  delegado Rivaldo Barbosa, então chefe da Polícia Civil fluminense na época das investigações, é réu. Os acusados de serem os mandantes também são autoridades: os irmãos Chiquinho, deputado federal, e Domingos Brazão, conselheiro do Tribunal de Contas do Estado do Rio de Janeiro.

Na quinta-feira, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva apresentou uma proposta de reforma do sistema de segurança pública cujo objetivo central é aumentar a cooperação entre a União e os estados no combate ao crime organizado. A Proposta de Emenda Constitucional (PEC) da Segurança Pública, apresentada pelo ministro da Justiça, Ricardo Lewandowski, sugere alterações nos artigos 21, 22, 23 e 24 da Constituição Federal. Trata-se de dar status constitucional ao Sistema Único de Segurança Pública (Susp), criado durante o governo do presidente Michel Temer, por proposta do então ministro da Segurança Pública Raul Jungmann.

A proposta atribui à Polícia Federal a investigação de organizações criminosas e milícias com repercussão interestadual e internacional. A Polícia Rodoviária Federal (PRF) passaria a ser chamada de Polícia Ostensiva Federal, com competência para atuar em rodovias, ferrovias e hidrovias federais, além de prestar auxílio às forças de segurança estaduais. A emenda também propõe a unificação dos Fundo Nacional de Segurança Pública e o Fundo Penitenciário, permitindo que mais recursos sejam utilizados no sistema prisional, onde se sabe que estão os líderes das principais facções criminosas.  O governo busca, ainda, uniformizar protocolos de segurança, como boletins de ocorrência e certidões de antecedentes criminais.

Entretanto, a reforma enfrenta resistência de governadores, que sugeriram mudanças no projeto para combater a lavagem de dinheiro, por exemplo. Tarcísio de Freitas (SP) propôs a estadualização das leis penais. Elmano de Freitas (CE) argumenta que deixaria o arcabouço jurídico-legal do país ainda mais confuso. Ronaldo Caiado (GO) queixa-se da perda de autonomia. Três governadores não foram à reunião: Romeu Zema (MG), Ratinho Júnior (PR) e Jorginho Mello (SC).

Negociar com os governadores é muito importante, mais ainda com os 308 deputados federais e 49 senadores que aprovarão a emenda constitucional. A oposição teme perder controle sobre a atuação das polícias civil e militar. Alguns se queixam de vazamento de dados ao compartilhar as informações com outros estados, sobretudo os notoriamente infiltrados pelo crime organizado, como é o caso do Rio de Janeiro.

O governo Lula enfrentará desafios para convencer a oposição a apoiar a reforma, mas a medida é vista como um passo importante para combater o crime organizado e o fortalecimento da segurança pública no país. É exatamente por isso que o sistema de segurança pública deve ser reformado, pois é preciso ajuda federal àqueles que perderam o controle da situação.

 


 

 



 

 

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