Folha de S. Paulo
Tom Jobim, Millôr e Cony já não levavam muita
fé no Brasil e não viveram para ver Bolsonaro
A realidade não para de desmoralizar a ficção. A ficção científica, então, nem se fala —longe vão os tempos em que, para nosso deleite e admiração, seus romancistas viajavam a planetas impossíveis, aboliam o espaço/tempo e bolavam as piores formas de destruir a Humanidade. Hoje, Isaac Asimov, Arthur C. Clarke e Robert Heinlein não seriam admitidos nem como estagiários na Altair, filial da sueca Morbius dedicada à substituição dos neurônios no cérebro humano por impulsos algorítmicos pela inteligência artificial.
Philip K. Dick morreu sem ver que seus androides que
sonhavam com carneiros elétricos se transformariam num sistema operacional
inacessível até à sua compreensão. Aliás, nenhum daqueles ases da ficção
científica viveu para comparar suas antecipações futuristas com o que aconteceu
nos últimos 15 anos. Tivessem chegado até nós, talvez se maravilhassem —ou, bem
mais provável, se apavorassem com o que vem por aí.
Às vezes pode ser um conforto não viver para
ver algo que, embora não se soubesse, estava na iminência de acontecer e seria
insuportável. O escritor austríaco Stefan Zweig (1881-1942) viu a guerra destruir a Europa e
estreitar o mundo para os judeus como ele e para todas as pessoas sensíveis.
Refugiou-se no Rio em 1940 e, quando constatou que a guerra chegara também
aqui, matou-se. Se o destino de uma única pessoa já o comovia, como reagiria à
Solução Final de Hitler, que mataria seis milhões de judeus?
E quem diria que, 2.500 anos depois de o
grego Pitágoras ter estabelecido que a Terra era redonda; 2.200 anos que outro
grego, Eratóstenes, calculasse sua circunferência; e 500 anos depois que o
navegador português Fernão de Magalhães demonstrasse isso dando a volta a ela;
enfim, quem diria que, justamente em nossa era, milhões de energúmenos jurariam que a Terra é plana?
Copérnico, Eratóstenes e Magalhães não viveram para ver isso, claro. Ainda bem
—iriam preferir a morte.
Mas nada supera a boa sorte de Tom Jobim,
Millôr Fernandes e Carlos Heitor Cony. Eles já não levavam muita fé no Brasil.
E nenhum deles viveu para ver Bolsonaro.
Um comentário:
Estão descobrindo coisas do arco da velha!
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