O Estado de S. Paulo
O (futuro) pacote fiscal soa quase tão enigmático quanto o insondável personagem de Beckett. Mas há diferenças essenciais
Na peça Esperando Godot, de Samuel Beckett,
uma dupla espera Godot num esforço quase descomunal, além de confuso. O pacote
de cortes de gastos do ministro Fernando Haddad não é Godot, tampouco o mercado
financeiro deveria exasperar-se e confundir-se tanto. Cabe ao governo
apresentar medidas concretas para reequilibrar as contas públicas.
O compromisso político em torno de uma regra
fiscal bastante razoável, o chamado novo arcabouço fiscal, veio no ano passado
com a aprovação e promulgação da Lei Complementar n.º 200/2023. O desafio,
agora, é providenciar as ações necessárias para que as receitas e as despesas
se comportem de acordo com a lei.
Do lado das receitas públicas, o Ministério
da Fazenda conseguiu aprovar uma série de ações, no Congresso, incluindo a
revisão de um iníquo benefício fiscal baseado no ICMS, antes abatido pelas
empresas na hora de apurar o lucro.
Para ter claro, aquele regime erodia a arrecadação de tributos federais com incidência sobre o resultado das empresas. Formadores de opinião que costumam criticar os chamados gastos tributários exibiram um silêncio ensurdecedor ao não elogiar essa ação. Curioso.
O fato é que a arrecadação está crescendo,
nitidamente, bem acima do PIB, quando tomamos o total acumulado de janeiro a
outubro e comparamos esse volume de receitas ao observado no mesmo período de
2023. Há receitas, de fato, atípicas, que não se repetirão, mas parte delas tem
caráter permanente.
Do lado dos gastos, as tarefas são múltiplas
e o cardápio, extenso. O governo terá de escolher, no rol de medidas possíveis
e com impacto fiscal relevante, as mais palatáveis. O tempo é curto, no
Congresso, até o fim do ano, considerando-se o rito próprio de tramitação de
propostas de emenda constitucional ou mesmo de projetos de lei complementar.
O pacote de cortes de gastos deveria
contemplar ajustes em programas como o abono salarial e o seguro-desemprego,
mudanças nas regras de indexação e vinculação dos orçamentos da Saúde e da
Educação, além de tocar na ferida aberta das emendas parlamentares.
A saber, as emendas parlamentares saíram de
controle, definitivamente, processo este coroado pela aprovação de um novo
regramento no Congresso Nacional nesses últimos dias.
O Supremo Tribunal Federal (STF) acertou ao
bloquear a execução
desses gastos, dados os descalabros vistos
nessa matéria. Vejamos os próximos capítulos da história. Não custa lembrar que
quase 25% das despesas discricionárias (não obrigatórias), hoje, constituem-se
de emendas parlamentares.
Outra frente importante para restabelecer
padrões minimamente responsáveis e justos, no Orçamento geral, é atacar os
chamados gastos tributários. Eles precisam ser urgentemente limados. Há mais de
R$ 540 bilhões em renúncias tributárias estimadas na proposta orçamentária para
2025, ainda em tramitação no Congresso Nacional.
Neles, estão dependurados auxílios setoriais,
transferências, subsídios, regimes especiais e toda sorte de programas quase
nunca avaliados ou monitorados. Sem mudar tudo isso, vai pelos ares a
legitimidade para avançar nas medidas necessárias sobre a parcela ineficiente
do gasto social.
Não sejamos ingênuos a ponto de supor espaço
para cortes volumosos de renúncias tributárias da noite para o dia. Por outro
lado, é possível aproveitar o comando constitucional da Emenda n.º 109/2021,
que já estipulara a obrigatoriedade de um plano de revisão dessas renúncias
fiscais, para retomar o assunto.
Não é razoável propalar um programa de
contenção do crescimento de gastos sociais, muitos deles de fato ineficientes e
insustentáveis, sem, ao mesmo tempo, promover uma mudança nas benesses
orçamentárias do “andar de cima”. Há muito por fazer nesse quesito. Somente com
abatimentos de despesas médicas no imposto de renda abocanham-se quase três
dezenas de bilhões de reais.
A gestão da política fiscal requer escrutínio
minucioso de medidas, programas e rubricas orçamentárias.
É importante que se mantenha uma regra geral
de resultado primário (receitas menos despesas sem contar os juros da dívida) e
outra para o comportamento dos gastos agregados. Mas é igualmente necessária a
definição de caminhos específicos para controlar o crescimento do gasto.
Não adianta estabelecer que a taxa de
variação real das despesas será sempre inferior à da arrecadação. É preciso
mostrar como os gastos que evoluem acima desse padrão serão ajustados. Isso
requer um debate aprofundado de cada regra, legislação, fator condicionante e
prática operacional observados nas mais diversas despesas obrigatórias.
O (futuro) pacote fiscal soa quase tão
enigmático quanto o insondável Godot. Mas há diferenças essenciais: não há
escapatória e a composição do pacote não deveria ser propriamente uma surpresa.
Os detalhes, sim, mas não o rumo.
O novo plano de gastos poderá ajudar a
amainar os excessos no dólar, nos juros e nas expectativas. Para isso, o
governo terá de convencer a si próprio sobre a importância de um programa de
ajuste fiscal. Em seguida, batalhar por sua aprovação junto a um Congresso cada
vez mais gastador.
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