O Estado de S. Paulo
No meio de tantas atrocidades, o lance do jovem ejetado como se fosse uma cusparada se converteu numa síntese imagética, virou o símbolo da insegurança pública
O governador de São Paulo, Tarcísio de
Freitas, mudou de ideia sobre a segurança pública. De uma hora para outra,
passou a apoiar o uso da câmera dita “corporal” pela Polícia Militar (PM). Foi
um cavalo de pau na postura do Palácio dos Bandeirantes.
Mas, fora a mise-en-scène, isso fará alguma
diferença? Em parte, sim. Se o governador cumprir sua (nova) palavra, a tropa
terá de lidar com mais fiscalização. No fundamental, porém, a resposta é não. A
vida e a morte seguirão como dantes no quartel de Abrantes, e fora do quartel
também. A polícia não vai acordar boazinha na segunda-feira só porque traz um
aparelho ótico na indumentária.
As coisas mudam, mas não mudam. Parece contraditório? Nem tanto. O discurso político tem esta prerrogativa curiosíssima: pode desdizer espetacularmente o que dizia ontem e não modificar patavinas, num paradoxo já bastante conhecido. “Para que as coisas permaneçam iguais, é preciso que tudo mude”, lemos no romance O Leopardo, de Giuseppe Tomasi di Lampedusa. Trata-se de ceder os anéis para não ter que ceder os dedos, ou, voltando à perspectiva do governo, trata-se de ceder sobre as câmeras para não ter que ceder sobre as armas.
Na quinta-feira passada, o chefe do Poder
Executivo paulista declarou que estava “totalmente errado” quando resistiu ao
uso do equipamento. Estava errado mesmo. A câmera virá para o bem. Instalada
mais ou menos na altura do bolso da camisa, registrará tudo o que se passar
diante do agente, e isso vai beneficiar a sociedade. É bem verdade que, se o
soldado estiver de folga e assassinar um homem com 11 tiros pelas costas, nada
será documentado, pois também a câmera estará de folga. Mas, ao menos durante o
turno oficial, a lente presa ao lugar que cabe às medalhas ajudará a diminuir,
como se diz tecnicamente, a “letalidade” policial.
Fora isso, uma polícia estatisticamente menos
homicida não é uma polícia melhor. Se você pendurar um apetrecho desses no
pescoço de um pitbull, ele não vai se comportar como se fosse um chihuahua. O
que teremos nas ruas será a mesma polícia pior de sempre, mas com um novo fator
de constrangimento na lapela. A inovação se limita ao plano das aparências.
Aliás, o que motivou a guinada nas convicções
do chefe do Poder Executivo estadual não foi uma questão de princípio, mas um
tropeço de imagem. A metamorfose da opinião do mandatário foi uma resposta às
cenas de um soldado jogando do alto de uma ponte um jovem trabalhador. Era
domingo à noite, dia primeiro de dezembro. O vídeo, gravado anonimamente, foi
destaque nas redes sociais, nos sites jornalísticos e nos noticiários de maior
audiência da televisão, com direito a incontáveis replays. O militar pega sua
vítima pelas canelas e, num puxão desleixado, faz com que ela role por cima do
guarda-corpo e despenque de três metros de altura. O algoz se desfaz do moço
como quem descarta um entulho, sem nem olhar para ver como o sujeito caiu lá
embaixo. O que aparece no vídeo é o grau máximo da indiferença pela vida
humana: o retrato de um governo.
Não que seja surpreendente. Todos os dias a
gente tem assistido a monstruosidades múltiplas nesse quesito. Anteontem mesmo
faz sucesso na praça um flagrante de três PMs esmurrando uma mulher desarmada
que ia pela calçada. Ontem foi notícia no jornal um assassinato de um rapaz em
São Vicente, tendo a mãe por testemunha. A farda e a imundície se mesclam. No
meio de tantas atrocidades, o lance do jovem ejetado como se fosse uma
cusparada se converteu numa síntese imagética. Mesmo não tendo causado morte ou
ferimentos graves, virou o símbolo da insegurança pública.
Premido pelo escândalo, Tarcísio de Freitas
se saiu com essa de se confessar “totalmente errado”. Talvez pretenda ser visto
agora como “totalmente certo”. Em sua autocrítica relâmpago, reconheceu a
possibilidade de ser um dos responsáveis por incentivar as condutas
desmesuradas na soldadesca. Suas palavras soaram como ato falho: “O discurso de
segurança jurídica que a gente precisa dar para os profissionais de segurança
para combater de forma firme o crime não pode ser confundido com salvo-conduto
para fazer qualquer coisa”. Ao final, arrematou: “Isso a gente não vai
tolerar”.
Não vai tolerar mesmo? Então o governo
passará a defender os direitos humanos? Não aposte nisso. Mesmo que demitam o
secretário de Segurança, não aposte. Tudo se resume a uma operação de marketing
para maquiar uma escalada de terror que compromete o capital eleitoral do
incumbente.
No mais, a extrema direita vem se mostrando
hábil em mudar para continuar idêntica. Na Alemanha, a AfD, a Alternativa para
a Alemanha, que aglutina forças antidemocráticas, tem agora uma nova líder. Seu
nome é Alice Weidel. Ela tem 45 anos e é lésbica (renovação no figurino), mas é
também xenófoba (fiel à tradição). Fascismo camaleônico. Ainda veremos
latifundiários bolsonaristas (protegidos por jagunços com ou sem câmeras no
colete) abraçando a causa ecológica para salvar sua reputação e seus negócios.
Terão se convertido à democracia? Por favor, sem piadas nesta hora.
Um comentário:
Tarcísio desdisse o que tinha dito, e assumiu seu erro. Um deles, o de apoiar a letalidade policial, mas não o de ter nomeado Derrite pra Secretaria de Segurança. Mas nem todos os bolsonaristas são tão "civilizados"...
O senador Jorge Seif (PL-SC) DEFENDEU o policial que atirou o cidadão da ponte, e disse que deveria ter atirado DUM PENHASCO!! Veja o nível a que chega o bolsonarismo... Não surpreende, dado o histórico do próprio Jair, terrorista miliciano defensor de tortura e torturadores, apoiador de policiais assassinos e militares golpistas.
https://www.correiodopovo.com.br/notícias/política/senador-catarinense-diz-que-pm-deveria-ter-jogado-homem-do-penhasco-e-apaga-post-1.1558832
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