segunda-feira, 9 de dezembro de 2024

O que a mídia pensa | Editoriais / Opiniões

Incêndios florestais devem ser tratados como prioridade

O Globo

Neste ano, as chamas destruíram uma área da Amazônia mais de dez vezes maior que o desmatamento

As chamas têm sido mais devastadoras para a Amazônia que as motosserras. Dados do Monitor do Fogo do MapBiomas, baseados em informações de satélites, revelam que, de janeiro a outubro, incêndios destruíram uma área da floresta mais de dez vezes superior ao desmatamento registrado entre agosto de 2023 e julho de 2024 — 6,7 milhões de hectares ante 650 mil hectares. Com uma agravante: o Brasil sabe como combater o desmatamento — e a redução recente na área desmatada na Amazônia e no Cerrado é prova disso —, mas tem se revelado incapaz de deter o fogo.

A combustão tem se alastrado pelo país. Somente em outubro, arderam 5,2 milhões de hectares, 18,8% do total do ano, área equivalente à do Rio Grande do Norte. Incêndios florestais costumam decorrer de ação humana — geralmente agricultores acostumados a pôr fogo na terra para o plantio perdem controle das chamas. É comum as queimadas se alastrarem, destruindo vegetações nativas e florestas, sobretudo durante a seca.

De janeiro a outubro, mais da metade dos incêndios foi registrada na Amazônia — 55%, ou 15,1 milhões de hectares. No ano passado, o bioma contribuíra com 21% das queimadas. Em outubro, com 73%. Não apenas a Amazônia preocupa. No período, 9,4 milhões de hectares do Cerrado foram queimados, 8 milhões em terras de vegetação nativa, aumento de 97% em relação aos mesmos dez meses do ano passado. No Pantanal, 1,6 milhão de hectares viraram cinzas, crescimento de 1.017%. Na Mata Atlântica foram 993 mil hectares, 71% deles em pastos. No Pampa e na Caatinga, as queimadas retrocederam. Mesmo assim, 85% das áreas atingidas foram de vegetação nativa.

O poder público precisa tratar os incêndios florestais como prioridade. Não bastam campanhas de esclarecimento e vigilância contra as queimadas. Para combater as chamas, também não adianta depender de bombeiros treinados para apagar fogo urbano. Equipamentos — como aviões — e pessoal necessários são distintos. Há no Brasil capacidade e conhecimento suficientes para implementar os programas necessários. No Consórcio Amazônia Legal (CAL), foi apresentado há quase quatro anos um projeto de R$ 250 milhões voltado a prevenção e combate de incêndios. Parou na burocracia do Banco Mundial. Outro projeto foi apresentado ao Fundo Amazônia, até agora sem resultado. “Sabemos o que temos de fazer, mas a falta de capacidade institucional proíbe avançar na velocidade necessária”, diz Marcello Brito, secretário executivo do CAL.

O governo se queixa da falta de colaboração entre entes federativos, mas só lançou um pacote nacional contra incêndios em setembro, com o fogo ardendo. É necessário agir antes. Eventos climáticos extremos, como secas, têm se tornado mais frequentes e mais intensos. O consórcio World Weather Attribution (WWA), que usa modelos estatísticos para avaliar a influência do aquecimento global nesses eventos, comprovou o papel do aquecimento global na seca que atingiu a Amazônia em 2023 e se agravou neste ano.

“Queimadas não respeitam lei, fiscalização ou pactos políticos; não existe refúgio ambiental a salvo do fogo”, escreveu o ex-prefeito de Paragominas (PA) Adnan Demachki. “A nova realidade dos incêndios florestais representa, na atualidade, a maior ameaça ao futuro da Amazônia.” O Brasil não pode se dar ao luxo de ignorar o alerta.

Autoridades pedagógicas precisam gerar estímulos para criar leitores

O Globo

Pesquisa constata que, pela primeira vez, aqueles que não leem livros superam os que leem

É frustrante a diminuição de leitores no país, constatada pela 6ª edição da pesquisa Retratos da Leitura no Brasil, feita pelo Ipec com 5.504 entrevistados em 208 municípios. Pela primeira vez desde o início da série histórica, em 2007, há mais não leitores (53%) que leitores (47%). A queda ocorreu em praticamente todas as faixas etárias, classes sociais e níveis de escolaridade. Os que afirmam não gostar de ler (29%) também superam os que dizem gostar muito (26%). Nos últimos cinco anos, 6,7 milhões de brasileiros abandonaram os livros, de acordo com o levantamento.

O não leitor é definido como quem não leu nem parte de um livro, físico ou digital, de qualquer gênero nos três meses anteriores ao levantamento. Apenas 27% disseram ter lido uma obra inteira no período. A média de publicações lidas no ano caiu, de 2,6 para 2,4. A maioria (85%) apontou a própria casa como lugar de leitura. Salas de aula foram citadas por apenas 19%, menor índice já registrado, queda de 4 pontos percentuais em relação ao último levantamento, em 2019.

Diversos fatores respondem pela diminuição dos leitores. Um deles é a pandemia. As quarentenas diminuíram a alfabetização, afetaram o aprendizado dos mais jovens e a distribuição de livros. Outro fator é o aumento do tempo de tela. Entre não leitores, 70% disseram usar a internet nos momentos livres. “As telas estão roubando o tempo do livro”, diz a socióloga Zoara Failla, coordenadora da pesquisa.

É conhecida a atração exercida por redes sociais e aplicativos de mensagens. Mas a leitura pode conviver com tudo isso, como convive com o cinema e a TV. Livros ainda têm seu apelo, como demonstra o sucesso de feiras, festivais literários e bienais do livro. A 27ª Bienal de São Paulo, em setembro, atraiu mais de 700 mil visitantes, com editoras festejando recordes de vendas. A Flip, em Paraty, reuniu quase 30 mil frequentadores em outubro.

Chama a atenção na pesquisa a baixa influência das escolas no incentivo à leitura. Apenas 4% disseram que liam por recomendação escolar, parcela que já foi de 25% em 2011. Autoridades pedagógicas deveriam se debruçar sobre tais resultados e buscar estratégias para reverter a queda. A escola tem papel fundamental no estímulo aos livros, ao abrir portas para o mundo da literatura. Além de ampliar o vocabulário, o conhecimento e melhorar a convivência com o idioma, a leitura desenvolve o pensamento crítico, expande fronteiras para os estudantes. A proibição de celulares em salas de aula é momento oportuno para trocá-los pelos livros.

Em vez de aliado na formação e no desenvolvimento do cidadão, o livro lamentavelmente passou a ser visto como vilão. Nos últimos anos, em diferentes estados, sob variados pretextos, secretarias de Educação e escolas se dedicaram a proibir publicações — em alguns casos, obras consagradas da literatura — em nome de convicções políticas, preconceitos ou exageros na doutrinação do “politicamente correto”. Governos e educadores em especial deveriam incentivar livros, não proibi-los. O Brasil só teria a ganhar.

UE e Brasil reagem à onda protecionista e fecham acordo

Valor Econômico

Com o acordo, o Brasil reafirma sua posição de comerciante global, a mais vantajosa em um mundo que ensaia nova divisão em blocos cercados por muralhas protecionistas

Mercosul e União Europeia chegaram a um acordo final para concluir a maior aliança comercial de suas histórias. Depois de um longo e acidentado percurso de quase 25 anos, a presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen, deslocou-se até a cúpula do Mercosul em Montevidéu para encerrar a negociação que une 32 países, envolve um PIB conjunto de US$ 22,37 trilhões e 731 milhões de pessoas. O cisma entre EUA e China, os novos capítulos de uma guerra tarifária anunciada pelo presidente eleito dos EUA, Donald Trump, e o avanço rápido da China na América Latina foram determinantes para que a UE decidisse passar por cima de grandes dissensões internas e fechar um entendimento de grande alcance.

Para o Brasil, um dos países mais fechados ao comércio do mundo, o desfecho representa uma brisa de competição em mercados ultraprotegidos por tarifas altas. As exportações brasileiras poderão penetrar em novos segmentos do mercado europeu, especialmente protecionista nas importações agropecuárias, que beneficia uma produção altamente subsidiada. A França, um ícone europeu de subsídios e defesa de mercado, é o país que mais se opõe ao entendimento com o Mercosul e poderá interromper a execução do acordo se, no Conselho Europeu, reunir mais três países que concordem com ela e somem 35% da população da UE.

Com o acordo, o Brasil reafirma sua posição de comerciante global, a mais vantajosa em um mundo que ensaia nova divisão em blocos cercados por muralhas protecionistas. Há bom entendimento com o principal parceiro comercial, a China, com a qual o Brasil mantém também laços políticos no Brics, haverá uma relação mais estreita com o segundo maior parceiro, a UE, e o país tem relações amistosas (até agora) com o terceiro maior, os EUA.

A União Europeia buscou romper sua posição de isolamento diante do conflito predominante entre China e Estados Unidos. O salto para frente do acordo com o Mercosul lhe dará perspectivas melhores do que a de vítima passiva dos aumentos de tarifas de Trump e de se antepor à ofensiva de investimentos e de mercadorias baratas provenientes da China em seu território. Von der Leyen deixou claro que, política e economicamente, fez o que a UE deveria fazer: “Em um mundo cada vez mais conflituoso, demonstramos que as democracias podem confiar umas nas outras. Esse acordo não é apenas uma oportunidade econômica, é uma necessidade política”. Foi uma resposta, disse, aos “fortes ventos estão soprando na direção oposta, em direção ao isolamento e à fragmentação”.

A liberação comercial trazida pelo acordo é conhecida - o Mercosul reduzirá tarifas em 91% das linhas tarifárias para produtos comprados da UE e esta, por sua vez, 95% das linhas tarifárias, em um prazo variável de 4 a 15 anos, com exceção da indústria automotiva. Ainda que com cotas, há vantagens para o Brasil na exportação de carnes, frutas, milho, sorgo, etanol, queijos etc. Os europeus podem almejar ingresso mais fácil no Mercosul para produtos farmacêuticos e químicos, por exemplo.

O acordo foi anunciado pelo governo Bolsonaro em 2019, mas não estava concluído. O problema era o próprio Bolsonaro, cuja política ambiental horrorizou o mundo e a UE, que passou a exigir mais garantias ambientais. Ao assumir, Lula exigiu mudanças no item de compras públicas, parte da política industrial que começou a implantar. Os diplomatas entraram em campo e costuraram um meio termo em que os dois blocos cedem. Haverá um mecanismo de solução de controvérsias e arbitragem no caso de decisões unilaterais de Bruxelas, que adiou uma lei antidesmatamento polêmica.

A UE exigiu que o Acordo de Paris seja respeitado e sua violação, motivo para suspensão do acordo. Mercosul e UE concordaram em reforçar compromissos ambientais, rechaçando barreiras “desnecessárias” ao comércio. Por outro lado, a UE se comprometeu a utilizar dados do Mercosul na avaliação de conformidade das exportações com a legislação europeia. Igualmente importante: as medidas ambientais futuras deverão ser consistentes com as regras da Organização Mundial do Comércio e baseada em informações científicas.

Na questão das compras governamentais, o Brasil excluiu participação externa nas aquisições do SUS e preservou margem de preferência para produtos e serviços nacionais. O Brasil também se reservou o direito de restringir exportação de minerais críticos e abriu possibilidade de taxar essas vendas para a UE em 25%, o que não existia no trato anterior.

Por desejo do governo Lula, criou-se proteção especial ao setor automotivo em detrimento da agenda ambiental. Ele ficará protegido por tarifas até 18 anos, no caso de importação de carros elétricos e híbridos, de até 25 anos em carros a hidrogênio e nos de novas tecnologias, 30 anos, em um retrocesso inexplicável. Foi criada inédita salvaguarda, para prevenir danos à indústria doméstica advindo de importações. O Brasil poderá suspender então a desgravação tarifária por até 5 anos. As montadoras europeias instaladas no Brasil detêm a maior parte do mercado nacional, onde não há indústria brasileira no setor. O governo Lula criou uma reserva de mercado para protegê-las de concorrentes chineses e asiáticos.

Sacrifícios da Argentina sob Milei não podem ser em vão

Folha de S. Paulo

Mandatário faz ajuste que gera recessão, mas resultados começam a aparecer com queda da inflação e retomada da atividade

É inevitável que o desempenho de Javier Milei, prestes a completar um ano à frente do governo argentino, seja avaliado primordialmente à luz dos resultados da economia. Foi a ruína produzida pelo peronismo, afinal, que o levou à Casa Rosada com a promessa de ajustes liberais duríssimos —e sem dúvida necessários, embora se possam questionar alcance e dosagem.

A esta altura, parece sólida a posição política de Milei. Cortes draconianos nos gastos públicos causaram recessão e aumento da pobreza, como o próprio mandatário anunciara, mas os avanços no controle da inflação têm sustentado sua popularidade.

Ficam em segundo plano, ao menos até aqui, aspectos controversos como o alinhamento a Donald Trump e Jair Bolsonaro (PL), a intolerância contra adversários, o conservadorismo retrógrado na pauta de costumes e o negacionismo climático.

Milei promoveu um ajuste orçamentário inaudito, a ponto de ter levado as contas do governo a um superávit antes impensável. Para tanto, congelou aposentadorias, demitiu servidores e eliminou programas. Contou, é verdade, com ajuda inicial da inflação, que corroeu o valor real das despesas públicas.

O resultado imediato foi a contração da economia, concentrada no primeiro semestre. O PIB deve recuar cerca de 3% em 2024, e a pobreza atingiu 52,9% da população, alta de 11,2 pontos percentuais —ressalve-se que os critérios para tal medição são muito mais rigorosos lá do que no Brasil.

A desvalorização do peso de 54% no início do mandato e a liberação de tarifas de serviços públicos impulsionaram a inflação já exorbitante herdada do antecessor. Depois do choque, entretanto, a variação mensal dos preços vem caindo mês a mês.

Em outubro, a alta ficou em 2,7%, e especialistas esperam menos de 35% em 2025, ante 120% neste ano. Acabou, ademais, o financiamento do governo por meio de emissão de moeda.

A economia recebeu a ajuda do aumento da colheita de grãos, que deve trazer divisas e, com isso, a atividade começou a se expandir —espera-se avanço do PIB de 3,5% no próximo ano.

O maior desafio pela frente diz respeito às contas com o exterior, dada a falta de reservas em dólar no país vizinho. As cotações do dólar ainda são controladas, bem como transações externas. Liberalizar o fluxo cambial poderá desvalorizar a moeda e elevar novamente a inflação. Mas o governo deve contar com boa vontade e recursos do Fundo Monetário Internacional (FMI).

Não se sabe, porém, se Milei dará esse passo polêmico antes das eleições legislativas de outubro de 2025, quando tentará ampliar o peso de seu partido para aprofundar os ajustes.

Mais importante é que se consolide na Argentina um consenso mínimo em torno de bons princípios de gestão do Orçamento e da economia, para que os avanços sejam duradouros —e os sacrifícios de agora não sejam em vão.

Colocar a política de desarmamento em prática

Folha de S. Paulo

Apesar de mudanças na retórica e nas regras, governo adia transferência de controle para PF e cede a lobby no Congresso

O Brasil ainda caminha a passos lentos para reverter o obscurantismo armamentista que prevaleceu sob Jair Bolsonaro (PL).

Em 2023, o governo Lula Inácio Lula da Silva (PT) instituiu regras para conter a escalada pró-armas que se deu por normas infralegais adotadas na gestão anterior. As medidas visam principalmente os CACs (caçadores, atiradores e colecionadores), grupo no qual o acesso a armas e munições aumentou exponencialmente.

O desafio agora é, de um lado, tirar as novas normas do papel e, de outro, conter o lobby armamentista no Legislativo. A administração petista, contudo, tem falhado nas duas frentes.

Na quinta (5), Ricardo Lewandowski, ministro da Justiça, revelou que o governo descumprirá o que previu em 2023, ao atrasar a transferência da fiscalização dos CACs do Exército para a Polícia Federal, que começaria em 2025.

Alegando falta de recursos para efetivo e equipamentos, o ministro adicionou mais seis meses para que a PF assuma a tarefa.

Não se trata de questão burocrático menor. A demora sinaliza desorganização do governo Lula e diminuição da importância da agenda de controle de armas no país. Se de fato considerasse o tema prioritário, os recursos necessários teriam sido alocados para que a transferência respeitasse o prazo previamente delimitado.

Os números mostram como é crucial concluir a mudança da fiscalização para Polícia Federal.
O Exército falhou de maneira retumbante em sua função de controlar os CACs. Relatório do Tribunal de Contas da União deste ano revelou que a instituição liberou ou renovou acesso a armas a mais de 5.000 condenados na Justiça por crimes como roubo e tráfico de drogas.

Outro sinal de fragilidade da política desarmamentista do Planalto fica evidente com as idas e vindas do decreto sobre clubes de tiro. No último dia 3, Lewandowski admitiu que o novo decreto, que enfrentou forte resistência no Congresso Nacionalliberará clubes de tiro já instalados em locais próximos a escolas.

Inábil para lidar com esses percalços, o governo não tem conseguido nem mesmo pautar outros pontos relevantes sobre o tema, como a recompra de armas longas, que entraram em circulação no país com a flexibilização das regras por Bolsonaro.

Urge retomar a conquista civilizatória representada pelo Estatuto do Desarmamento, que limita posse e porte de armas e munições no Brasil desde 2003. O governo Lula ainda precisa provar que leva a sério esse desafio e colocar em prática sua retórica.

A encruzilhada histórica da Síria

O Estado de S. Paulo

Ninguém cioso dos direitos humanos deixará de se alegrar com a queda de um dos maiores criminosos da nossa era. Mas o novo capítulo pode ser mais brutal e dilacerar a Síria por gerações

Na manhã de ontem, enquanto o ditador sírio Bashar al-Assad voava de Damasco para Moscou, os extremos se tocaram no coração dos sírios: por um lado, alívio com a derrocada de uma tirania sanguinária de mais de 50 anos; por outro, angústia com um futuro absolutamente imprevisível.

Entre muitos protagonistas internacionais envolvidos no conflito, a Turquia, que apoia grupos rebeldes no norte da Síria, foi o mais óbvio vencedor. Os sustentáculos do regime de Assad – Rússia e Irã (e o Hezbollah, a milícia xiita libanesa apoiada por Teerã) – foram os maiores derrotados. Israel e os EUA podem celebrar a queda da dinastia alauita ante a maioria sunita. Mas a perspectiva de um governo jihadista em Damasco não permite otimismo, nem para eles, nem para as minorias curdas ou cristãs na Síria, nem para os Estados árabes sunitas do Golfo.

A dinastia Assad foi responsável por assassinar mais de 500 mil sírios. Desde o início da guerra civil, após a brutal repressão de protestos na onda da Primavera Árabe, 600 mil sírios morreram, 13 milhões foram deslocados, 6,8 milhões fugiram do país e, dos 15 milhões remanescentes, 90% vivem na miséria.

O regime já estava em frangalhos em 2012, quando uma coalizão heteróclita – que envolve desde fanáticos islâmicos ligados à Al-Qaeda, o Estado Islâmico, paramilitares apoiados pela Turquia até milícias curdas apoiadas por Estados ocidentais esperançosos de estabelecer uma democracia – se rebelou. Mas os Assads eram aliados próximos da Rússia desde a guerra fria, e Vladimir Putin não abandonaria suas bases navais na costa mediterrânea síria. Assad tornou-se o mais importante aliado da teocracia iraniana na região. Juntos eles perpetraram os maiores massacres no Oriente Médio nos tempos modernos, sob a leniência da comunidade internacional, marcadamente dos EUA sob Barack Obama, que viu suas “linhas vermelhas” serem rompidas uma após a outra, sem reação.

Uma Rússia distraída pela guerra na Ucrânia e o “Eixo de Resistência” liderado por um Irã debilitado pelos golpes de Israel nos últimos meses foram de longe o fator decisivo para o fim de Assad. Em duas semanas, suas forças fugiram em debandada ante os avanços fulminantes dos rebeldes. Sua queda marca uma mudança sísmica no equilíbrio de poder na região.

Uma prioridade para a comunidade internacional é garantir que os estoques de armas químicas na Síria não caiam nas mãos dos jihadistas. A Força Aérea israelense já bombardeou uma delas ontem.

Muito do que acontecerá na sequência dependerá do Hayat al-Sham (HTS), o grupo que liderou a recente ofensiva. Ele vem governando com alguma competência, dadas as circunstâncias, a província de Idlib, pediu moderação aos seus correligionários e prometeu tratar com dignidade as minorias cristãs e curdas e até os alauitas. Mas até 2017 o HTS era filiado à Al-Qaeda, e suas relações com outros rebeldes são convolutas. Ele tem rusgas ideológicas com o Exército Nacional Sírio apoiado pela Turquia, tem um histórico de hostilidade aos curdos e é classificado como uma organização terrorista tanto por Estados árabes quanto ocidentais, o que complica quaisquer negociações. A Turquia é agora um protagonista-chave, e todos os olhos e esforços diplomáticos devem se voltar a Ancara.

É certo que a partir de agora se abriu um novo capítulo para a história da Síria e do Oriente Médio, mas qualquer previsão é temerária. A queda de Assad e a humilhação de Teerã e do Hezbollah podem levar a uma Síria e a um Líbano mais tolerantes? Não é impossível, mas o caminho é tortuoso, e a porta para a paz é estreita. E ela pode ser facilmente trancada pelas disputas intestinas dos rebeldes. O próximo capítulo pode ser muito mais brutal e a Síria pode ser dilacerada e sangrar por gerações.

Qualquer pessoa ciosa dos direitos humanos não pode deixar de sentir uma ponta de alegria com a derrocada de um dos maiores criminosos de nossa era. Mas as palavras de Henry Kissinger a propósito da Guerra Irã-Iraque nos anos 1980 repercutem com extraordinária atualidade: é uma pena que ambos os lados não possam perder.

A chantagem dos privilegiados

O Estado de S. Paulo

Judiciário e MP viram as costas para o País ao gritar em uníssono contra pacote fiscal que dá fim aos penduricalhos que fazem seus salários extrapolarem em muito o teto constitucional

O pacote fiscal anunciado pelo ministro da Fazenda, Fernando Haddad, é tíbio por não conter medidas que representem um corte de gastos à altura do que o País precisa para reequilibrar o Orçamento. Seria uma estrepitosa surpresa se o presidente Lula da Silva, que dorme e acorda em modo eleição, autorizasse uma expressiva redução dos gastos públicos. Dito isso, é de justiça reconhecer que o governo acertou em cheio ao mexer em um vespeiro: os privilégios da elite do funcionalismo, em particular dos servidores do Poder Judiciário e do Ministério Público.

Prova maior disso foi a gritaria em uníssono dessas castas pouco após o anúncio do pacote, um sinal inequívoco de que seus privilégios foram ameaçados como poucas vezes em tempos recentes. No dia 4 passado, várias associações que representam os interesses classistas de magistrados, promotores e procuradores vieram a público condenar, em termos vergonhosos à luz da realidade econômica do País, o plano do governo para acabar com a farra das “verbas indenizatórias” pagas sem o abatimento pelo teto constitucional.

A Proposta de Emenda à Constituição (PEC) enviada pelo governo ao Congresso põe limite ao pagamento da miríade de penduricalhos que abarrotam os holerites de Suas Excelências com muitos milhares de reais a mais do que a Constituição autoriza. De acordo com a PEC, só deverão ser pagas fora do teto “as parcelas de caráter indenizatório expressamente previstas em lei complementar de caráter nacional aplicada a todos os Poderes e órgãos constitucionalmente autônomos”.

Como se sabe, o teto do funcionalismo, como determina a Constituição, é o salário de ministro do Supremo Tribunal Federal, hoje fixado em R$ 44.008,52 – valor que será reajustado para R$ 46.366,19 em 1.º de fevereiro de 2025. Com os penduricalhos, porém, não é incomum que juízes, desembargadores, promotores e procuradores cheguem a receber vencimentos que superam em muitas vezes esses valores em um único mês. É uma vergonha, tanto pela natureza exótica de alguns desses mimos como, principalmente, pelo abastardamento da República, que não admite privilégios de qualquer natureza entre os cidadãos.

Nenhuma manifestação contrária ao pacote, porém, foi tão descabida como a do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo (TJ-SP), o maior do País. Em nota, o TJ-SP classificou o plano de corte de gastos do governo como um “retrocesso”, além de representar uma ameaça, pasme o leitor, aos “direitos consagrados da magistratura nacional”. Sim, para a Justiça paulista, cujos servidores, como tantos outros do Poder Judiciário, já são muitíssimo privilegiados, receber salários acima do limite imposto pela Constituição e, como se isso não bastasse, por meio de benefícios financeiros não raro autoconcedidos e isentos de Imposto de Renda é tratado como um “direito consagrado”.

Em tom apocalíptico, o TJ-SP ainda chantageou o governo e o Congresso afirmando que, se o pacote for aprovado, haverá um “êxodo de magistrados” em Tribunais de Justiça de todo o País. Se já é difícil encontrar cabeça de bacalhau até nesta época natalina, que dirá um juiz que tenha eventualmente abandonado a carreira por insatisfação salarial.

De costas viradas para o País e para o enorme desafio de reequilibrar as finanças públicas, o Poder Judiciário, não satisfeito, ainda aprovou para os seus a volta do Adicional por Tempo de Serviço, o chamado quinquênio, em desabrida afronta ao Congresso, que ora delibera sobre o tema. O quinquênio, como se sabe, é o aumento automático de 5% nos vencimentos dos magistrados a cada cinco anos de trabalho. Um levantamento do Estadão mostrou que 19 dos 33 Tribunais de Justiça e Regionais Federais do País pagaram esse benefício infame aos seus juízes entre 2023 e 2024.

Fosse o Poder Judiciário brasileiro o mais eficiente do mundo, ainda assim a pletora de privilégios que seus membros recebem não se justificaria, ao menos não em uma República digna desse nome.

Ode imprópria

O Estado de S. Paulo

Com vídeo em que se compara a civis, Marinha escolheu hora e tom inadequados para defender a carreira

Foi inconveniente, para dizer o mínimo, o vídeo divulgado pela Marinha do Brasil nas redes sociais – uma peça publicitária lançada a pretexto do Dia do Marinheiro e convertida em crítica velada ao pacote de revisão dos gastos públicos, anunciado recentemente pelo ministro da Fazenda, Fernando Haddad. Uma crítica, aliás, nem tão velada assim: em 1 minuto e 16 segundos, o vídeo, cuja música de fundo é Cisne Branco, hino da Marinha, alterna cenas de civis em atividades cotidianas, como momentos de família, esportes, lazer e viagens, com imagens de militares da Marinha em tarefas grandiosas, treinamentos intensos e operações oficiais. A mensagem, implícita ou explícita, sugere que militares dão duro na defesa do Brasil, com uma rotina repleta de sacrifícios e responsabilidades, enquanto civis flanam na vida boa dos privilégios.

“Privilégios? Vem para a Marinha”, pede uma jovem militar. A comparação, por si, já seria constrangedora em circunstâncias normais, já que, no geral, se pode dizer que milhões de brasileiros enfrentam jornadas de trabalho muito mais exaustivas do que a de militares e dispõem de escassa ou nenhuma proteção social, ao contrário dos soldados. Mas o episódio ganhou ares de polêmica, primeiro, pelo fato de a alta cúpula da Marinha ter avalizado o filme, já que foi publicado nas redes sociais oficiais – e lá ficou; segundo, porque o vídeo foi lançado poucos dias depois do anúncio do pacote. O requinte da provocação foi além: não passou despercebido o fato de no vídeo aparecer um soldado muito parecido com Haddad, que passou os últimos dias tentando convencer o País de que o conjunto de medidas não é de todo ruim. Pois não só é ruim, como sacramentou a convicção de que apenas com muita boa vontade é possível acreditar que o governo produzirá alguma iniciativa efetiva para reequilibrar as contas públicas.

Com medidas insuficientes e um anúncio desastrado, o pacote prevê, por exemplo, a adoção da idade mínima de 55 anos para que militares possam ir para a reserva, a extinção da chamada “morte ficta” – que permite a concessão de pensões a dependentes de militares expulsos – e limitações na transferência de pensões para herdeiros. O mal-estar se concentra na proposta da nova idade mínima, que interfere na regra dos sete anos de permanência em cada patente da carreira militar. No plano negociado entre a Fazenda e o Ministério da Defesa, a transição para que a regra da idade mínima passe a valer será até 2032. É muito provável que a cúpula da Marinha tenha usado o vídeo para afagar a tropa incomodada. Não raro militares argumentam que a carreira já tem baixa atratividade – o que muitos veem como privilégios eles enxergam, não sem alguma razão, como singularidades e compensações próprias da carreira.

São inquestionáveis as peculiaridades e privações a que são submetidos integrantes das Forças Armadas, assim como é legítimo o debate sobre se as medidas que os atingem são adequadas e justas ante tais singularidades. Mas a Marinha do Brasil não poderia ter escolhido momento, lugar e tom mais inconvenientes e menos úteis à causa que deseja defender. Ao contrário, o vídeo produziu o impensável: fez parecer que o pacote de Haddad mexe, de fato, em gastos, desperdícios e privilégios.

IA na automação de negócios

Correio Braziliense

No Brasil, a rede de apoio aos empreendedores precisa ser ampliada para que todo o potencial seja alcançado

Em ritmo acelerado, a inteligência artificial (IA) se consolida como uma força transformadora no mercado de trabalho global. Estudos diversos mostram que os avanços contínuos da tecnologia estão redefinindo as formas e as relações no desempenho das mais variadas funções. Além do processo produtivo, a automação vem modificando os modelos mundiais de atendimento ao cliente, especialmente das pequenas e médias empresas. Mas, no Brasil, a rede de apoio a esses empreendedores precisa ser ampliada para que todo o potencial seja alcançado.

Na atualidade, a qualidade na prestação de serviços e a eficiência nas respostas aos consumidores são determinantes para o desenvolvimento dos negócios. Com a aplicação da IA, os profissionais podem melhorar o rendimento das tarefas e ter à sua frente novas oportunidades de crescimento. Porém, esse cenário exige investimento financeiro e uma requalificação constante do quadro de pessoal, o que, no país, ainda não acontece.

Estudo publicado pela Harvard Business Review aponta que organizações que se comunicam rapidamente com o público têm probabilidade significativamente maior de conquistá-lo. Porém, a realidade brasileira mostra que muitos empresários ainda estão patinando nesse universo de possibilidades e tendo de se posicionar diante do grande capital sem ter as mesmas facilidades. Esses desafios, decorrentes de recursos limitados e processos manuais ineficientes, precisam ser superados para que a engrenagem da economia no Brasil não seja comprometida.

Consultorias especializadas e personalizadas para identificar falhas nas respostas, além de acesso a financiamentos, são fundamentais para democratizar a automação do processo de comunicação entre quem oferece e quem procura o serviço. A transformação digital aplicada diretamente nas relações de contato pode aumentar o faturamento e, principalmente, significar a sobrevivência no mercado. Além disso, a clareza e a assertividade no contato evitam retrabalhos e confusões na entrega do serviço.

Mas gerenciar e dar suporte a múltiplos canais não são atividades simples. No país, é comum que muitos prestadores de serviço lidem com dificuldades de atendimento por meio até do WhatsApp, uma ferramenta já difundida e com entrada amplamente facilitada.

Em um mundo que não para, a IA é uma estratégia competitiva essencial para identificar lacunas e soluções no atendimento ao cliente. Porém, conseguir se adaptar à era digital de maneira prática e acessível é uma questão que se coloca no dia a dia dos empreendedores. No Brasil, os governos e as instituições precisam intensificar o apoio nessa área para que as pequenas e médias empresas possam prosperar no atual mundo dos negócios, atendendo as demandas de um consumidor cada vez mais exigente em diversos quesitos.

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