segunda-feira, 9 de dezembro de 2024

Bancadas burlam decisão do STF sobre emendas - Raphael Di Cunto

Valor Econômico

Legislativo aprova ações genéricas para dividir verba que seria para obra estruturante

Ao mesmo tempo em que pressiona o Supremo Tribunal Federal (STF) a rever a decisão de obrigar a divulgação do nome dos padrinhos políticos das emendas de bancada estadual e de comissão ao Orçamento, com o argumento de que se tratam de recursos coletivos, o Congresso Nacional burlou a ordem da Corte e a lei aprovada há poucos dias pelos próprios congressistas para não individualizar as emendas de bancada, que somarão R$ 14 bilhões.

Os deputados e senadores de cada Estado se reuniram esta semana - alguns, em reuniões “secretas”, restritas aos próprios parlamentares - e aprovaram a alocação de dinheiro em rubricas genéricas nos governos estaduais ou ministérios, como “fomento ao setor agropecuário”, “promoção de turismo” e “apoio a projetos de desenvolvimento sustentável”.

O objetivo dessa descrição genérica, conforme relatos dos parlamentares ao Valor, discussões acompanhadas pela reportagem e documentos das bancadas, foi apenas um: dividir os R$ 528 milhões destinados ao Estado de forma individual para cada deputado e senador, de modo a amplificar o ganho político, o que não ocorreria se a verba fosse para grandes obras.

A lei aprovada pelo próprio Congresso há duas semanas e sancionada pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), contudo, é clara: “as emendas de bancada somente poderão destinar recursos a projetos e ações estruturantes [...], vedada a individualização de ações e de projetos para atender a demandas ou a indicações de cada membro”.

E segue: “É vedada a apresentação de emendas cuja programação possa resultar, na execução, em transferências voluntárias, convênios ou similares para mais de 1 (um) ente federativo ou entidade privada, ressalvadas as transferências para os fundos municipais de saúde.” Para evitar isso, uma regra foi criada, e cada emenda não pode ser dividida em mais de dez ações.

Os parlamentares, no entanto, encontraram rapidamente uma forma de burlar a lei que eles próprios aprovaram e a maioria das bancadas decidiu indicar os recursos para ações genéricas do governo local ou de um ministério. Com isso, o órgão executor será um só, mas o valor poderá ser repartido entre inúmeros prefeitos escolhidos pelo parlamentar.

Na bancada da Bahia, a primeira reunião contou com a participação do governador Jerônimo Rodrigues (PT) para discutir as prioridades do Estado. Um direcionamento foi aprovado na ocasião, mas contestado por deputados de oposição sobre a falta de quórum no dia, e a bancada fez um segundo encontro em que ficou decidido que parte da verba iria para a Companhia de Desenvolvimento dos Vales do São Francisco e do Parnaíba (Codevasf).

A estatal que é comandada pelo União Brasil, sigla de oposição ao governador petista. Assim, os dois grupos estariam contemplados. Os da base poderiam direcionar recursos para o governo estadual executar e os de oposição poderiam contar com a instituição federal.

Nesta segunda reunião, acompanhada pelo Valor, os deputados receberam um papel com os valores combinados por todos. R$ 40 milhões para as quatro universidades federais da Bahia, R$ 20 milhões para os dois institutos federais e R$ 25 milhões para segurança pública. Além disso, uma única obra mais objetiva, R$ 20 milhões para obras nas encostas de Salvador, após um jovem morrer soterrado em novembro por um deslizamento de terra há três semanas.

O resto das rubricas estava com valores vazios e a indicação “saldo da bancada R$ 361.200.000,00”. A planilha apontava ainda a quantidade de deputados federais e senadores da Bahia, 42, o que resultava em R$ 8,6 milhões para “proposta para indicação parlamentar”.

O dinheiro foi distribuído em ações da Codevasf para compra de equipamentos, da secretaria estadual de turismo para realização de eventos nos municípios e para a Secretaria Estadual de Saúde repassar a prefeitos para custeio. Segundo um deputado baiano, na hora em que o órgão público for executar a verba, deverá seguir a orientação do parlamentar sobre o local.

A ata entregue à Comissão Mista de Orçamento (CMO), para inclusão no projeto de Lei Orçamentária Anual (LOA) de 2025, não faz essa distinção nem informa quem indicou o quê.

“Aos 04 dias do mês de dezembro do ano de dois mil e vinte e quatro, às 16 horas, reuniu-se a Bancada de Congressistas da Bahia, sob a coordenação da Deputada Lídice da Mata para escolher as emendas que, nos termos dos artigos 46 a 48, da Resolução nº 01/2006-CN, serão apresentadas ao Projeto de Lei nº Projeto de Lei nº 26, de 2024-CN (Ploa para 2025)”, diz a ata.

Como a emenda é coletiva, quem aparecerá nos portais de transparências federais e estadual será a bancada da Bahia e não o deputado ou senador. Com isso, segundo especialistas em transparência, fica mais difícil perceber direcionamento nos recursos e desvios. E a emenda é impositiva, de execução obrigatória pelo governo federal, desde 2019.

A promotora de Justiça Maria Clara Mendonça e o professor Sérgio Praça alertaram, em artigo, sobre os motivos de preocupação com essa falta de transparência. “As emendas de bancada estadual visavam dificultar a corrupção, [...] mas a solução não funcionou a contento, como mostrou a CPI das Ambulâncias em 2006. Parlamentares, prefeitos e empresários superfaturavam a venda de ambulâncias e outros equipamentos médicos, aproveitando-se da falta de especificidade nas emendas de bancada estadual”, afirmam.

O ministro Flávio Dino, do STF, determinou na segunda-feira que o padrinho político de cada indicação seja divulgado para as emendas de bancada e de comissão. A decisão foi apoiada de forma unânime pelos outros dez ministros. Ele também ordenou que as emendas coletivas antigas só sejam pagas pelo Executivo se o real autor for identificado pelo Congresso.

A cúpula do Congresso, no entanto, pressionou o governo para que recorresse dessa decisão e fizesse valer o que consta da lei aprovada, que trata a emenda como coletiva e não faz a individualização do nome do parlamentar. Se Dino não recuar, afirmam, não haverá “clima” para aprovar os projetos do pacote de ajuste fiscal apresentados pelo governo.

Mesmo sem o recuo, o Legislativo já optou por ignorar a decisão.

O coordenador da bancada do Rio de Janeiro, deputado Áureo Ribeiro (Solidariedade-RJ), propôs uma divisão proporcional das oito emendas a que a bancada tem direito, com cada área recebendo uma porcentagem do total. O deputado Luiz Lima (PL-RJ) protestou e sugeriu a divisão dos recursos em 46 partes (43 deputados e três senadores). A ideia foi a voto e venceu.

Autor de uma emenda parlamentar no ano passado para que o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) faça um estudo sobre a eficiência, retorno econômico e social das emendas parlamentares, o deputado Bandeira de Mello (PSB-RJ) diz que votou contra essa proposta. “Respeito os vencedores, mas acho que deveria ser para projetos estruturantes”, opina.

Luiz Lima defende que fez a sugestão seguindo o que a lei permite e que o nome de cada um deveria ser divulgado. “Foi a proposta eleita pela ampla maioria, 90% dos deputados. A escolha é individual, mas a soma é coletiva. As oito emendas [áreas] foram escolhidas pela bancada”, disse. “A outra proposta era dividir num percentual fixo para cada área, mas sugeri que cada deputado tivesse liberdade para dividir entre as oito emendas como quisesse. Tem determinados deputados que querem ajudar seu nicho eleitoral com o dinheiro dos outros.”

A solução encontrada pelo coordenador foi fazer constar, na ata, o nome de cada parlamentar que direcionou recursos para aquela ação específica. É possível saber, por exemplo, que sete deputados decidiram encaminhar sua parte dos R$ 11,5 milhões para compra de máquinas de agricultura. Mas não há como identificar o valor individual e nem relacionar o autor com quem será beneficiado com o recurso quando a verba for liberada em 2025.

Outra estratégia para manter o ganho político individual, mas sem descumprir a lei aprovada e a decisão do STF, foi adotada pela bancada de São Paulo. O governador Tarcísio de Freitas (Republicanos) receberá os R$ 528 milhões para duas ações: incremento dos recursos para assistência hospitalar e ações de segurança pública, para compra de câmeras de vigilância.

Em troca dos recursos, ele prometeu R$ 10 milhões para cada deputado e senador, da base ou da oposição, direcionar de ações do próprio governo estadual. Isso rendeu para a bancada mais dinheiro (R$ 730 milhões) e ganhos políticos para Tarcísio, já que o governo estadual figurará como responsável pelo repasse, e para os congressistas, que poderão executar ações nos municípios de suas bases eleitorais e atraírem o apoio dos prefeitos para suas reeleições.

No caso de São Paulo, há transparência sobre esses recursos e o portal do governo estadual mostra quem foram os responsáveis por cada indicação, o objeto, quem recebeu, o dia e o valor. O modelo já foi adotado para o Orçamento de 2024, quando a vedação à individualização só existia em uma resolução do Congresso, e replicado de novo para 2025.

Em nota, o governo de São Paulo afirmou que pactuou com os parlamentares federais a destinação da emenda de bancada aos projetos que considera prioritários. “Isso permitirá maior avanço, com mais celeridade, dessas iniciativas”, disse. “As indicações devem ser realizadas de acordo com o portfólio do Governo do Estado, ou seja, em ações que já fazem parte dos projetos estaduais, com a priorização dada pelos parlamentares. Vale destacar que desses R$ 10 milhões, 50% devem ser destinados à Saúde”, declarou.

A reunião que selou o destino dos recursos pela bancada paulista, contudo, foi fechada. Apenas os deputados e senadores do Estado puderam participar. Assessores, representantes de entidades e a imprensa foram proibidos de entrar para acompanhar as discussões.

O mesmo ocorreu com o encontro da bancada do Rio Grande do Sul. Policiais legislativos foram colocados nas duas portas que davam acesso à comissão onde era debatido como serão usados os R$ 528 milhões para impedir que outras pessoas pudessem assistir à deliberação. Apenas um assessor de cada parlamentar pode acompanhar a reunião.

Coordenador do grupo, o deputado Dionilso Marcon (PT-RS) disse que a reunião a portas fechadas é praxe na bancada para que seja mais objetiva e que outras audiências, abertas à população, foram realizadas antes. “Só com os deputados a sessão já fica difícil, imagina liberar a porta. Todo mundo ia querer opinar e fazer discurso para as bases”, afirmou.

O petista defende que é preciso aprimorar o mecanismo. “Para mim, deveria ir só para obra estruturante, investimento”, comenta. Mas ressalta que, este ano, não houve como fugir da compra de máquinas. “As prefeituras estão precisando para recuperar os municípios das enchentes”, disse. R$ 150 milhões foram direcionados para esta finalidade, e cada parlamentar poderá indicar as cidades que receberão os equipamentos.

 

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