O que o Judiciário brasileiro fez foi simplesmente o que a Justiça americana,
fugindo ao seu dever, se esquivou de fazer quando Donald Trump, em 2021, tentou
impedir a posse de seu sucessor.
Toda essa vilania, quase uma declaração de guerra, caracterizada pelo virtual
bloqueio de nossas exportações, decorre do fato de o cabeça da intentona
frustrada, Jair Messias Bolsonaro, ser, por artes e manobras ainda a serem
desvendadas, um apadrinhado do atual locatário da Casa Branca. Sobre a
agressão, Trump — o candidato a coiteiro — acrescenta chantagem aviltante: se o
Brasil deixar em paz seu protegido, o império poderá rever a insídia da majoração
unilateral das tarifas, imposta ao arrepio de todos os procedimentos do
multilateralismo assassinado, das regras do livre comércio, das normas da OMC
e, enfim, do que se conhece como direito internacional.
Em suma, no contrapelo de tudo o que deveriam ser as normas e práticas
diplomáticas de duas nações que mantêm relações há mais de duzentos anos.
É evidente que os anunciados prejuízos à economia brasileira, com a imposição
unilateral dessas tarifas, abalarão nosso balanço de pagamentos, com a queda
inevitável da receita de exportações; atingirão o lucro e a acumulação de
capital de ponderáveis setores da economia (atingindo tanto a indústria quanto
o agronegócio), apenando de forma evidentemente distinta grandes, médios e
pequenos empresários — mas atingindo, acima de todos, os trabalhadores, que
pagarão a conta com o desemprego, que já alcança 8,5 milhões de brasileiros, ao
lado de 38 milhões de desgarrados do sistema, que tentam sobreviver na
informalidade.
Os custos econômicos — como o impacto sobre o real, a pressão inflacionária, a
falência de pequenas e médias empresas — são efeitos previsíveis e, em alguns
casos e nalguma medida, minimizáveis (a eles o ministro da Fazenda já disse
estar atento). E conhecidos são os largos recursos do capital. Insanável é o
custo social.
Mas isto ainda não é tudo, nada obstante sua gravidade, pois a grande agressão,
a ofensa inominável, é a que mira nossa dignidade, impondo uma “negociação” de
índole mafiosa, cujo preço cobra a renúncia da dignidade nacional. E esta não
tem meio-termo.
Este aspecto, fulcral, foi reconhecido pelo povo brasileiro — e mesmo pela
imprensa mainstream —, retirando o governo das cordas e
ensejando à esquerda, hoje sem palavra de ordem, a retomada da bandeira do
nacionalismo — tão viva, um pouco lá atrás, na campanha pelo monopólio estatal
do petróleo. A defesa da soberania nacional, que o envilecido Estadão reduz
a “populismo” lulista, fala às grandes massas, hoje arredias das ruas.
O bom senso, porém, não é unanimidade, pois muitos intelectuais e observadores
do cenário internacional se revelam assustados, surpresos, tanto com o grau de
violência do ataque quanto com o fato de essa violência atingir relações de
mais de dois séculos entre “duas sociedades irmãs”.
A dificuldade de ultrapassar a aparência para conhecer a essência das coisas,
porém, não para aí, pois quase toda a gente distingue o Estado norte-americano
de seu atual presidente, sagrando aquele para dedicar toda a justa desaprovação
a Trump — como no passado recente, quando, ao reduzir os crimes do nazismo a
Hitler, se procurava ignorar o papel do povo alemão nos crimes de guerra que
não podia desconhecer; como agora, quando a manipulação dos meios de
comunicação reduz o horror do genocídio dos palestinos à obsessão sionista de
Benjamin Netanyahu.
Ora, Trump é tão americano quanto a torta de maçã, o Mickey, o Pato Donald, o
macarthismo a segregação racial e os linchamentos. E é preciso lembrar que o
magnata, como seu pastiche brasileiro, não enganou ninguém — muito menos a
sociedade estadunidense. Tudo o que faz e desfaz foi anunciado na campanha
eleitoral que o consagrou, de forma inquestionável. Com este respaldo, pode
governar em nome dos menos de 1% que controlam o país; está a serviço de seus
próprios interesses empresariais e de seus sócios, dos interesses do capital
financeiro e das big techs. E conta com a cumplicidade do
Congresso, a parcialidade da Suprema Corte, a boa vontade de quase toda a
imprensa e, até, a passividade do mundo acadêmico. Não é pouco.
Sua aparente loucura está permeada de lógica. Trump choca, mas não inova. Como
afetar surpresa olhando para a história de seu país?
Não é científico desprezar o papel do indivíduo na história: ele está sempre
presente, condicionado, porém, pelas suas circunstâncias. A presença do rico
coletivo de forças econômicas e políticas atuantes no processo social supera em
muito o poder do voluntarismo.
Ao longo dos séculos XX e XXI, os EUA, governados por democratas ou
republicanos, se envolveram em um número incontável de intervenções externas,
diretas e indiretas, em mais de 80 países. Do criminoso e persistente bloqueio
a Cuba ao apoio a todas as ditaduras, a política externa dos EUA para a América
Latina se construiu sob a lógica da doutrina do big stick (“Fale
com suavidade e carregue um porrete — e irá longe”), cunhada por Theodore
Roosevelt (1901–1909).
Esta é a natureza do imperialismo, assim exposta por ele mesmo numa saga
didática de que seremos devedores. Ou já nos esquecemos da rapina de que foram
vítimas os Estados Unidos Mexicanos? Ou que, no século passado, numa guerra já
perdida pelo Japão, os EUA, presididos pelo democrata Harry Truman, lançaram
duas bombas atômicas sobre as populações civis de Hiroshima e Nagasaki, matando
cerca de 300 mil pessoas? O rol, só a partir daí, é extenso e não cabe neste
espaço sua resenha: basta lembrar que, na Guerra da Coreia, contam-se entre
mortos e desaparecidos três milhões de civis (10% da população da península);
e, na invasão do Vietnã, algo entre 1,5 e 2 milhões. E são incontáveis as
intervenções dos marines e de agentes da CIA desmontando projetos de democracia
na América Latina e no mundo, ou sustentando ditaduras, ou assassinando
adversários mundo afora, como o congolês Patrice Lumumba.
Nada diferente tem sido o relacionamento com nosso país, facetado pela
subserviência das chamadas elites do mundo econômico e do mundo político, de
que é exemplo icônico a frase cunhada pelo general Juraci Magalhães, na
condição de embaixador do Brasil em Washington: “O que é bom para os EUA é bom
para o Brasil.” Vira-latismo que apenas consagrava a política de alinhamento
automático, acentuada com a ditadura militar de 1º de abril, mas que vinha
marcando a República desde seu início, com variações apenas de nuances.
Desde, principalmente, a Segunda Guerra Mundial, os EUA orientam
doutrinariamente as Forças Armadas residentes no Brasil e decidem sobre seu
armamento. Não invadiram o território nacional por desnecessário, mas
participaram de todos os golpes de Estado desde 1945 (inclusive da conspiração
que levou ao suicídio de Getúlio Vargas, em 1954) e, por último, na implantação
da ditadura militar (1964–1985), inclusive emprestando especialistas em
tortura, como o capitão Charles Rodney Chandler, adido militar no consulado
norte-americano em São Paulo. Em 1968, foi morto pela guerrilha de esquerda.
Nada obstante a preeminência dos interesses dos EUA, as relações dos dois
países já conheceram rusgas diplomáticas, principalmente naquelas poucas
oportunidades em que ousamos a defesa de nossa soberania — desde a exploração
nativa do petróleo (contra as pressões da Standard Oil) aos projetos mais
recentes de autonomia da produção de energia nuclear e ao programa espacial. A
lista é extensa.
O Departamento de Estado e o Pentágono jamais aceitaram de bom grado a
liderança que o Brasil exerce na América do Sul. Para o imperialismo, são
intoleráveis nossos ensaios de política externa independente, esboçados
sobretudo a partir do governo Jânio Quadros, para se acentuarem no mandato de
João Goulart. Frustrados no impedimento do vice-presidente, determinaram sua
deposição — e o que a ela se seguiu. Findos os tempos de festa ensejados pelo
neoliberalismo (Collor–FHC), foram outra vez surpreendidos com a política
“ativa e altiva” dos governos de Lula e Dilma, que ressurge agora, após os
tristes anos de Temer–Bolsonaro.
No episódio atual, a carta-provocação ataca o Brasil e suas instituições para
defender os interesses das big techs (incomodadas com os
limites que o STF pretende impor a seus desmandos no Brasil) e das grandes
operadoras de crédito, que veem seus lucros diminuírem com a rápida
disseminação do pix. Isto tudo num contexto de reordenamento do poder mundial —
marcado pela ascensão da China, com quem o Brasil mais e mais estreita relações
—, em que o império declinante não se dispõe a fazer concessões. Ora, para
Biden ou para Obama é intolerável nosso papel no BRICS, como para Kennedy e
Lyndon Johson era intolerável nosso discurso em defesa da autodeterminação dos
povos.
Os EUA são um império declinante, é certo, mas ainda muito poderoso, e com
forças para infligir estragos incalculáveis. Um tigre ferido é perigoso.
Os desdobramentos do quadro ainda não podem ser desenhados, mas já é possível
ver que as nuvens de hoje não prometem bonança no curto ou médio prazos.
Estamos diante da alimentação de uma crise que a tudo pode levar, e dela não
seremos apenas atores menores, pois dificilmente deixaremos de compartilhar
suas consequências — fragilizados que estamos pelo abandono, por décadas, da
ideia de soberania.
No caso imediato — o contencioso político com viés tarifário — o primeiro
caminho é a negociação que, nada obstante nossas limitações, haverá de ser
altiva, porque não se concilia com a dignidade. O governo está correto ao
requerer sua retomada, sem, todavia, alienar a alternativa da reciprocidade
seletiva. Mas aí, à pusilanimidade do Congresso e de sua maioria sem coluna
vertebral, soma-se a sabujice do grande empresariado ao pleitear, de alto e bom
som, desde logo, antes mesmo que as partes se sentem à mesa, que o Brasil
descarte a única arma de que dispõe: a alternativa da reciprocidade na
guerrilha tarifária.
Soberania não é uma abstração cívico-poética. Reclama o direito concreto de
escolher nossas alianças, proteger nossa economia, empregar nosso povo,
cultivar nossas terras e exportar nossos produtos. É o direito de decidir, sem
medo de retaliação. Nem é muito, nem é pouco.
O sistema governante — aquele que controla o poder, independentemente de quem
esteja hospedado no Palácio da Alvorada ou ocupando as cadeiras do Congresso —
dá sinais de que já rastreou o terreno e pretende jogar ao mar a carga hoje
inconveniente, construindo uma nova maioria política, afastando-se do
neofascismo (o bolsonarismo indigesto e suas adjacências), fator de turbulência
e, portanto, de incerteza para os negócios. Essa manobra pode implicar
composição com o centro, na perspectiva de estabilidade política, à qual não
será indiferente o governo. Lula pode mesmo ser seu fiador, pode mesmo cumprir
o papel de elo aglutinador — aquele que mais fala à sua alma.
A sinuca de bico será o desafio que as circunstâncias imporão às esquerdas. Se
não podem se opor a um arranjo que desloca a extrema-direita, hoje em ascensão
no mundo e no Brasil, terão de, mais uma vez, adiar a expectativa de avanço
político.
Nenhum comentário:
Postar um comentário