domingo, 30 de junho de 2019

Luiz Carlos Azedo: A nova abertura comercial

Nas entrelinhas / Correio Braziliense

“O acordo entre o Mercosul e a União Europeia é uma derrota da retórica antiglobalista e a reafirmação do velho pragmatismo do Itamaraty”

A assinatura do acordo comercial entre o Mercosul e a União Europeia é um novo marco na abertura comercial do Brasil, depois de 20 anos de negociações. Para que finalmente fosse fechado, foi fundamental a permanência do Brasil no Acordo de Paris — nossa saída chegou a ser aventada pelo presidente Jair Bolsonaro — e o desatrelamento do governo Bolsonaro da política climática do presidente dos Estados Unidos, Donald Trump. No G20, os EUA são o único país a não endossar o Acordo de Paris.

A negociação do acordo foi uma longa e tortuosa construção diplomática do Itamaraty, cujo desfecho foram as conversas positivas de Bolsonaro com a primeira-ministra da Alemanha, Ângela Merkel, e o presidente da França, Emmanuel Mácron, durante a reunião do G20 em Osaka, no Japão. O presidente brasileiro chegou ao encontro como uma espécie de patinho feio, amargando notícias ruins, como a prisão, na Espanha, de um sargento da Aeronáutica que integrava a equipe de apoio da comitiva presidencial com 39kg cocaína. Desembarcou trocando farpas com os dois chefes de Estado, que questionavam a política ambiental de seu governo. Voltou para o Brasil com um grande troféu diplomático nas mãos.

As declarações de Merkel não impediram a conversa com Bolsonaro nem o encontro com Macron, cujo cancelamento chegou a ser anunciado, mas resultou num convite de Bolsonaro a dois colegas para sobrevoarem a Amazônia. Não houve o anunciado encontro com o presidente da China, Xi Jinping, por incompatibilidades de agendas, mas nem por isso a ida de Bolsonaro à reunião do G20 deixou de ser um pleno êxito. As conversas entre o líder chinês e Trump sobre as relações comerciais entre os dois países também contribuíram para desanuviar um pouco o ambiente comercial mundial, o que é bom para o Brasil.

Estima-se que o acordo para a área de livre comércio entre os países do Mercosul e da União Europeia (UE) representará um aumento do PIB brasileiro de US$ 87,5 bilhões em 15 anos, podendo chegar a US$ 125 bilhões, com as reduções tarifárias. O aumento de investimentos no Brasil, nesse mesmo período, será da ordem de US$ 113 bilhões por conta do acordo comercial. Segundo o Itamaraty, as exportações brasileiras para a UE apresentarão quase US$ 100 bilhões de ganhos até 2035.

Vera Magalhães: Os frutos do acordo

- O Estado de S.Paulo

Para além das vantagens comerciais, negociação ajuda a dissipar bobajada ideológica

A semana terminou com uma grande notícia, com o fechamento do acordo comercial entre União Europeia e Mercosul. Além das vantagens da abertura econômica e comercial, o acordo serve como um banho de pragmatismo na política externa brasileira, por evidenciar que a crítica ao tal globalismo como um bicho-papão que tragaria o mundo ocidental e seus valores nada mais era do que delírio ideológico que, na hora do vamos ver, foi deixado de lado.

O acordo é uma construção de 20 anos e muitas mãos. Começou a ser costurado no governo Fernando Henrique Cardoso, em 1999. A primeira oferta foi feita no governo Lula, em 2004. Em 2007, no governo Lula 2, o Brasil assinou uma parceria estratégica com a Europa, dando mais um passo para o acordo. Ele ficou dormitando ao longo de quase todo o governo Dilma Rousseff, mas, ironicamente, foi no último dia da petista, 11 de maio de 2016, que houve a apresentação das ofertas de parte a parte. O desenho do acordo que foi finalmente fechado se deve em muito ao trabalho do ex-chanceler Aloysio Nunes Ferreira, no governo de Michel Temer.

E, finalmente, graças a uma ação bem coordenada do Ministério da Economia de Paulo Guedes, na pessoa do secretário de comércio exterior Marcos Troyjo, da ministra da Agricultura, Teresa Cristina, e do Itamaraty de Ernesto Araújo, foram alinhavados, ainda nas reuniões de Buenos Aires, os termos finais da proposta finalmente assinada em Bruxelas.

Portanto, ainda que haja aspectos que possam desagradar esse ou aquele setor, que possam existir críticas quanto ao fato de o Mercosul ter sido levado a ceder mais que os parceiros europeus – o que é óbvio, uma vez que os países do lado de cá são mais fechados e atrasados que os de lá –, trata-se de uma rara convergência de propósitos e de continuidade de ação entre governos. Um bálsamo diante de tantos solavancos políticos e econômicos que o Brasil vem enfrentando nos últimos anos.

É claro que Jair Bolsonaro vai querer faturar em cima do acordo, a despeito de seu discurso, dos filhos, do próprio Araújo e do entorno mais ideológico do governo sempre ter sido avesso ao multilateralismo e de ceticismo em relação à própria existência da União Europeia. É do jogo que o governo exagere os próprios méritos num acordo que já estava bem adiantado, ao qual também foi impelido pelos parceiros do Mercosul, que estavam mais dispostos a fechá-lo que o Brasil, e para o qual contribuiu, também, a necessidade da Europa de dar a volta por cima num cenário internacional que hoje é dominado pelo duelo de titãs entre Estados Unidos e China. Os ganhos advindos da abertura são maiores que qualquer reparo que se tenha a fazer à bateção de bumbo exagerada.

Eliane Cantanhêde: Hora e vez de Bolsonaro

- O Estado de S.Paulo

G-20 e acordo com a UE abrem nova fase, mas presidente tem de acabar com o ‘show de besteiras’

Não há exagero nem do governo, nem da agricultura, nem da indústria quando todos classificam o acordo do Mercosul com a União Europeia como o mais importante já fechado em toda a história do Brasil e do Mercosul. Afinal, envolve um mercado de 750 milhões de consumidores e um PIB de US$ 19 trilhões, com capacidade de alavancar, aos poucos, a retomada do crescimento econômico e os empregos, abrindo novos tempos para o Brasil.

Então, por que demorou tanto, longuíssimos 20 anos? Primeiro, porque as negociações são setor a setor e em três camadas: com a União Europeia, que reúne 28 países, com o Mercosul, com quatro sócios desiguais, e com os vários setores exportadores do próprio Brasil. O interesse dos produtores de etanol, por exemplo, é diferente do das montadoras de automóveis.

Mas não foi só isso. Além das dificuldades inerentes a negociações internacionais de grande porte, houve percalços políticos, com a danada da ideologia no meio. O processo começou em 1999, no segundo governo Fernando Henrique, mas perdeu força com Lula e Dilma Rousseff, que apostaram tudo no mercado interno e nas negociações multilaterais, relevando as bilaterais ou entre blocos – além de terem empurrado a Venezuela para o Mercosul, o que afugentou os líderes europeus.

As trocas de Dilma por Michel Temer e de Cristina Kirchner por Maurício Macri, na Argentina, imprimiram a guinada liberal no Cone Sul e abriram espaço para o acordo com a Europa. O Paraguai também aderiu à onda liberal e o Uruguai manteve-se à esquerda, mas eles contam menos. E, para alívio de todos e felicidade geral das nações, a Venezuela está suspensa do Mercosul.

*José Roberto Mendonça de Barros: Estagnação e assimetria

- O Estado de S. Paulo

A paralisia está saindo muito cara e isso está evidente na nova onda de recuperações judiciais

A estagnação da economia brasileira ampliou-se em 2019. Cresceremos menos que em 2017 e 2018, anos que sucederam a mais longa recessão da nossa história moderna.

Essa situação é, antes de tudo, um desastre para a cidadania. Entre desempregados, subempregados e desalentados, estamos falando de mais de 25 milhões de pessoas!

Isso sem falar naqueles que só conseguem trabalhar em posições menos relevantes e remuneradas do que aquelas que já ocuparam. Ou naqueles que fizeram força para pagar os estudos e não conseguem vagas ou estágios que lhes permitam prosseguir na carreira.

Os impactos na autoestima das pessoas e nas famílias são seguramente muito grandes.

A mim impressiona o aparente conformismo do governo com essa cena. Nada acontecerá em qualquer área antes da reforma da Previdência, o que, no melhor cenário, nos levará até meados do segundo semestre.

Pior: o Banco Central revela a mesma atitude, mesmo com a inflação ancorada, abaixo da meta, e a fraca atividade. Qual será o custo disso?

A paralisia está saindo muito cara e isso está evidente na nova onda de recuperações judiciais (RJs) de grandes companhias, como sinalizaram os pedidos de RJ das empresas do grupo Odebrecht, as últimas de uma longa série de empreiteiras.

A onda não é casual. Afinal, na vida empresarial, o que não vai adiante, normalmente, volta para trás: empresas muito endividadas apenas têm chance de sair das dificuldades com seus mercados crescendo vigorosamente, pois só assim os bancos estarão dispostos a rolar e alongar seus empréstimos. Quando a estagnação entra em campo, é questão de tempo para algum credor decidir executar a dívida e precipitar uma RJ ou até uma falência.

*Sérgio Abranches: Presidencialismo sob Bolsonaro é disfuncional

- Folha de S. Paulo /Ilustríssima

Ao ferir a divisão constitucional entre os Poderes e extrapolar suas atribuições legislativas, Bolsonaro incentiva um protagonismo retaliatório do Parlamento e a reiterada judicialização de suas decisões. Em confronto com instituições e práticas que garantiram a governabilidade na redemocratização, presidente segue arriscado caminho limítrofe ao autoritarismo.

Jair Bolsonaro escolheu uma Presidência de confrontação desde a posse. Não foi surpresa. Ele anunciou sua disposição de enfrentamento já na campanha. Recusando o enquadramento institucional do presidencialismo de coalizão, tem tido sucessivas derrotas para um governo nos seus primeiros seis meses. Este é o período em que, normalmente, o presidente tem mais força de atração e convencimento.

Basta examinar um dia para ter uma boa ideia desse confronto permanente e suas consequências. Na última terça-feira (25), o presidente viu-se forçado a cancelar os decretos que afrouxavam a regulação sobre posse e porte de armas, para evitar um decreto legislativo retirando-lhes validade. Mas editou novos decretos, com teor similar, e enviou projeto de lei ao Legislativo, pelo qual seria autorizado a legislar sobre uso, posse e porte de armas sem autorização parlamentar.

No mesmo dia, o presidente do Senado devolveu a medida provisóriapela qual Bolsonaro pretendia reestabelecer a transferência da Funai e da demarcação de terras indígenas para o Ministério da Agricultura, medidas rejeitadas pelo Congresso em maio. A MP afrontava, numa canetada, o Legislativo e a Constituição. A lei proíbe a reedição de medida provisória sobre matéria rejeitada pelo Congresso na mesma sessão legislativa.

Não bastassem os atritos com o Parlamento, o presidente ainda entrou em controvérsia com o governador de São Paulo, João Doria (PSDB), seu aliado na campanha, acerca de um hipotético autódromo para hipotéticos Grandes Prêmios de Fórmula 1 no Rio de Janeiro, retirando-os de Interlagos.

Esses atropelos resultam do mal entendimento do modelo político brasileiro. As regras atuais foram pensadas para que ele fosse mais durável e mais eficaz do que o da Constituição de 1946. Tiveram sucesso. O presidente ficou relativamente mais forte, e o Congresso, relativamente mais fraco.

O Senado conquistou o poder de iniciar legislação, equiparando-se à Câmara em vários aspectos. Aumentou-se também a dependência do presidente em relação à coalizão no Legislativo —o presidente, porém, é dotado de mais recursos para formar e coordenar essa coalizão.

Como a representação partidária nas duas Casas não tem a mesma composição, o presidente, no limite, precisa organizar e gerenciar uma coalizão bifronte, estabelecendo convergência e sincronia entre suas duas cabeças. Não é tarefa fácil, em um sistema multipartidário heterogêneo e fragmentado.

A coalizão se tornou um imperativo da governabilidade porque é improvável que o partido do presidente alcance a maioria nas duas Casas do Legislativo —e praticamente impossível que faça sozinho a maioria necessária para emendar a Constituição (60%). O eleitorado brasileiro é muito heterogêneo, social e regionalmente. A correlação eleitoral de forças entre os partidos varia muito ao longo da federação.

As características sociológicas do eleitorado, a lógica da representação proporcional com lista aberta e as regras para organização partidária propiciam e incentivam a fragmentação partidária.

Essa combinação dificulta ainda mais a conquista da maioria parlamentar por um só partido, além de gerar bancadas com agendas mais diferenciadas, carregadas de demandas locais, corporativistas e setoriais. Um presidente minoritário fica refém de maiorias muito ocasionais. Elas se formam, em geral, apenas em temas da agenda que refletem verdadeira emergência nacional ou interesses de forças socioeconômicas poderosas o suficiente para pressionar o Congresso.

*António Guterres: As chamas do discurso do ódio

- Folha de S. Paulo

Retórica inflamada é usada para benefício político

Em todo o mundo, o ódio avança. Uma ameaçadora onda de intolerância e violência baseada no ódio está atingindo seguidores de muitas religiões em todo o planeta.

Tristemente —e perturbadoramente— estes incidentes cruéis estão se tornando comuns. Nos últimos meses, temos visto judeus assassinados em sinagogas e seus túmulos desfigurados com suásticas; muçulmanos executados dentro de mesquitas e seus locais religiosos vandalizados; cristãos assassinados em oração e suas igrejas destruídas.

Para além destes ataques horríveis, cada vez mais uma retórica abominável está sendo usada não apenas contra grupos religiosos, mas também contra minorias, migrantes, refugiados, mulheres e os também chamados “outros”.

Na medida em que as labaredas do ódio se espalham, as mídias sociais são exploradas pela intolerância. Movimentos neonazistas e de supremacia branca estão crescendo. E a retórica inflamada está sendo usada para benefício político.

O ódio está se movendo tanto na corrente das democracias liberais como nos regimes autoritários —e colocando uma sombra sobre a nossa humanidade em comum.

As Nações Unidas têm um longo histórico de mobilizar o mundo contra o ódio de qualquer tipo através de ações abrangentes de defesa dos direitos humanos e no avanço do Estado de Direito. De fato, a real identidade e o estabelecimento da ONU têm raízes no pesadelo que se segue quando ódio virulento é deixado sem oposição por muito tempo.

Nós reconhecemos o discurso do ódio como um ataque contra a tolerância, a inclusão, a diversidade e a essência de nossas normas e princípios de direitos humanos.

Hélio Schwartsman: Fracasso do liberalismo?

- Folha de S. Paulo

Para autor, ideologia liberal produziu desigualdade e homogeneidade cultural

O liberalismo fracassou e precisamos admitir isso, buscando uma nova forma de organização social e econômica. Essa é, grosso modo, a tese que o cientista político Patrick J. Deneen defende em seu “Why Liberalism Failed”. O livro ganhou agora uma edição lusitana, “Porque Está a Falhar o Liberalismo?”.

Eu não poderia discordar mais da conclusão de Deneen, que é a de que devemos retornar a um mundo comunitário, no qual família, religião e tradição tenham muito mais peso, mas ele levanta questões importantes, que ajudam a explicar o mal-estar democrático que o mundo atravessa.

Para Deneen, o fracasso do liberalismo é consequência de seu sucesso. Sua lógica foi levada a tal extremo que acabou revelando todas as suas contradições. Concebida para trazer mais equidade, pluralismo e liberdade individual, a ideologia liberal produziu na prática desigualdade e homogeneidade cultural.

Os sinais de que algo deu errado estão por toda parte, da política à economia, passando pela educação e pela ciência. Deneen pensa que o sistema não tem conserto. Só o que podemos fazer é resgatar culturas tradicionais, que serviriam como contraponto à lógica do individualismo.

Julio Wiziack: Um projeto para chamar de seu

- Folha de S. Paulo

Acordo do Mercosul com UE é a última herança relevante de governos anteriores

Em seis meses de governo, Jair Bolsonaro só colheu bons frutos quando sentou no banco do carona. Pilotando o país, com projetos próprios, foi barrado pelo Congresso, pelo Supremo Tribunal Federal e viu sua popularidade cair.

O acordo entre a União Europeia e o Mercosul é o exemplo mais recente. Sua equipe amarrou as pontas das negociações conduzidas pelo ex-presidente Michel Temer e venceu uma corrida que durou 20 anos.

O presidente também encampou o PPI (Programa de Parcerias de Investimentos), responsável pelas concessões. Os leilões bilionários só ocorreram porque os projetos estavam previamente estruturados.

Na economia, o Congresso aprovou o projeto de lei que criou o cadastro positivo, outra medida de Temer. E o presidente do Banco Central, Roberto Campos Neto, abraçou e ampliou a agenda pró-competição de Ilan Goldfajn.

Houve balbúrdia na educação e na saúde, áreas em que preceitos ideológicos causaram prejuízos. Não há um plano concreto para melhorar o ensino e faltam médicos para atender áreas carentes antes cobertas por estrangeiros, especialmente cubanos.

Janio de Freitas: A lei e a palavra

- Folha de S. Paulo

A prática de Sergio Moro é a do subterfúgio, da conspiração

A velha Operação Abafa já está reativada, como passo inicial para proteger Sergio Moro e Deltan Dallagnol de consequências legais pela trama contra réus da Lava Jato. De sua parte, o governo mergulha no compra-e-vende da corrupção política. O desemprego cresceu mais, o tal PIB desfalece. A Presidência deslanchou o esbanjamento de dinheiro público com publicidade de Bolsonaro. O cinismo se impõe, portanto, para que tudo fique menos confuso. E mais repulsivo.

Discreto como convém, o Conselho Nacional do Ministério Público arquivou a representação pelo necessário exame da conduta do procurador Dallagnol revelada pelo site The Intercept Brasil. Na argumentação engavetadora, o corregedor Orlando Rochadel Moreira sustenta que a veracidade das gravações não pode ser comprovada, e Moro e Dallagnol “não reconhecem os diálogos utilizados”.

Só se feitas e infrutíferas as tentativas de verificar a autenticidade caberia dizê-la impossível. O apressado arquivamento é contra a tentativa devida. Há outra via, porém. Cinco dias depois da primeira exposição de combinações entre juiz e procurador, Moro ainda dizia sobre sua indicação, a Dallagnol, de mais acusadores de Lula: “Eu recebi aquela informação e aí foi até um descuido meu, apenas passei pelo aplicativo”. É o reconhecimento inequívoco, e a um só tempo, da autenticidade da gravação, das frases registradas e, ainda, da participação ilegal do juiz nas investigações contra um réu.

Desde sua primeira entrevista sobre as gravações, no dia seguinte à divulgação pelo Intercept, Moro as autentica:

“Quanto ao conteúdo, eu não vi nada de mais”. Nenhum reparo, nenhuma suspeita. Era aquilo mesmo: “nada de mais”, nem no que disse nem no material jornalístico.

A “normalidade” da participação e do “conteúdo” se sustentaria em dois artigos da Lei de Ação Civil. Citados por Moro, autorizam o juiz a “comunicar ao Ministério Público” o “conhecimento de fatos que podem constituir crime ou improbidade administrativa”. Pois sim.

Foi mais uma saída de má-fé a juntar-se ao histórico de Moro nesse gênero. Ele omite que essa comunicação, por exigência da mesma lei, seja feita formalmente nos autos. Assim o juiz agirá às claras, para conhecimento da acusação e da defesa, preservada a imparcialidade judicial. A prática de Moro, ao contrário, é a do subterfúgio, da conspiração, da perseguição sub-reptícia ao réu.

Ao desconsiderar essas evidências, além de muitas outras da trama de juiz e procurador, o corregedor Rochadel também não saiu da normalidade. O lugar dado a Moro e à Lava Jato é acima da lei, dos tribunais, dos conselhos, da ética, de nós outros. Continuaram lá.

Vinicius Torres Freire: Caranguejo Brasil troca de casca

- Folha de S. Paulo

PIB anda de lado e na lama, mas começam mudanças nas profundezas da economia

É preciso notar que a economia brasileira muda, mesmo submersa na lama. O caranguejo, que anda de lado como o PIB do Brasil, troca de casca desde 2016.

Duas notícias desta semana são mais do que simbólicas desta transição tentativa: o acordo comercial entre Mercosul e União Europeia e o plano de abrir o mercado de gás.

Quando, se e como mudanças desse tipo vão ter influência positiva no crescimento são perguntas de R$ 1 trilhão, medida tão ao gosto deste governo. Se o eventual crescimento será distribuído de modo igualitário, é questão ainda mais especulativa. Mas o caranguejo perde sua carapaça estatal e muda de cor. Ignorar a mudança é um erro político, econômico e financeiro.

Do que se trata? Alguns exemplos:

1. Deve haver agora investimento pesado no pré-sal, com aumento grande da produção. Mudanças nesse setor e noutros devem alterar a paisagem empresarial e industrial;

2. Há planos avançados de abrir setores dominados pelo Estado, como refinarias, gás e saneamento. Governos e suas empresas ora não têm como colocar dinheiro nessas pontas de lança do investimento;

3. As taxas de juros estão nos níveis mais baixos desde que se tem notícia, graças ao efeito combinado de depressão econômica e gastos contidos do governo e de seus braços de crédito. Sim, trata-se dos juros do atacadão de dinheiro. Mas o cidadão remediado vai ver seu fundo DI, seu CDB ou seu Tesouro Direto renderem pouquinho. Vai reclamar, procurar retorno em outra parte, empreendimentos em que possa investir. Pois bem. Os donos do dinheiro grosso agem do mesmo modo. Ou vai tudo virar inflação da Bolsa?

4. Por décadas o gasto do governo cresceu mais do que o PIB; cresceu ainda a 6,5% além da inflação nos 20 anos até 2016. Desde então, ficou estagnado;

5. Deve ser aprovada alguma reforma da Previdência;

6. Bancos em geral perdem espaço na concessão de crédito (entram outras fontes de financiamento);

7. Depois de quase 20 anos de paralisia, pode haver alguma abertura no comércio exterior, vide o acordo com a União Europeia;

8. Há planos de conceder serviços públicos e infraestrutura para empresas privadas, ainda que atrasados;

9. Para o bem ou para o mal, há uma nova lei trabalhista.

Juan Arias: Radiografia do fanático “que só sabe contar até um”

- El País

Ninguém pode ser diferente dele

A questão do extremismo e da identidade do fanático, seja no âmbito político, cultural ou psicológico, agita todo o mundo e é de forte atualidade para a sociedade brasileira que se debate entre extremos difíceis de conciliar. Entre as definições que existem do fanático, nenhuma me parece mais aguda do que a do recentemente falecido escritor israelense Amós Oz, considerado um dos maiores e mais livres pensadores do nosso tempo. Em sua obra Mais de Uma Luz(Companhia das Letras, 2017), define o fanático como “aquele que só sabe contar até um”. Sua realidade termina nele. Sua matemática se esgotada aí. Não cabem nem dois, porque, segundo ele, “uma das realidades contundentes que identificam um fanático é sua ardente aspiração de mudar o outro para que seja como ele”.

O fanático abraça toda a realidade para que não possa haver ninguém diferente dele. Não existem em suas contas a soma nem a multiplicação. Segundo o escritor, “ele não quer cortinas no mundo, nem sombra de vida privada ou diferente da sua”. O verdadeiro fanático “se acredita enviado por Deus para purificar o mundo e torná-lo todo igual, sem diferenças”.

Nesta linha de raciocínio, para o fanático, “a justiça é mais importante do que a vida”, e o “ódio cego faz que quem se encontre do outro lado da barricada seja idêntico a ele”. Uma vez mais, o fanático só consegue contar até um. O dois não existe para ele, ou deve ser assimilado ou destruído.

Alon Feuerwerker: 2022 está longe e está aqui. E isso é absolutamente normal

- Blog do Noblat / Veja

Jair Bolsonaro está na estrada reeleitoral

A eleição de 2022 já começou? A pergunta só tem significado se a premissa é que os políticos alguma hora, como se diz, descem do palanque. Aliás isso de “descer do palanque” tem um componente de estelionato. Dizer uma coisa na eleição e executar outra no governo. Apresentar ideias róseas ao povão e depois “fazer o que tem de ser feito”. Costuma acabar mal.

Já começaram os debates entre os pré-candidatos democratas à Casa Branca, e o republicano Donald Trump também se lançou à reeleição. A urna só chega no fim de 2020. Ninguém reclamou. Criminalizar “campanha antecipada” é subdesenvolvimento. Idem o veto ao financiamento empresarial, troféu vistoso do proibicionismo burocrático.

Jair Bolsonaro está na estrada reeleitoral desde sua eleição, e isso não chega a ser um problema para ninguém. Aliás é um kit de sobrevivência, para ele. Mantém mobilizada sua base fiel enquanto resiste a dividir poder com o Congresso e arreganha os dentes para os empoderados Judiciário e Ministério Público, concorrentes dele na vida real.

Só uma coisa é razoável prever. O segundo turno em 2022, se houver, será entre um bolsonarista e alguém da esquerda. Daí a movimentação por um “bolsonarismo sem Bolsonaro”, por enquanto com João Doria e Luciano Huck, e a luta feroz de Ciro Gomes contra Lula e o PT. São só os primeiros episódios da série, já programada para quatro anos.

A missão de Bolsonaro é reter pelo menos uns 25-30% do eleitorado, para ser o líder eleitoral da direita. E se mantiver o tônus do antipetismo terá um trunfo contra o PT, ou alguém apoiado pelo partido, que continua bastante majoritário na esquerda. E se a economia não engrenar, mesmo com a reforma da previdência? Troca-se a política econômica.

Então qual é o problema? É que os adversários também sabem disso, e vão buscar toda brecha para lipoaspirar a popularidade e a força política presidenciais. A dificuldade para os concorrentes na direita é que o possível flanco frágil de Bolsonaro no povão, exatamente a política econômica de Paulo Guedes, também é 100% apoiada por eles. Complicado.

*Gaudêncio Torquato: A festa do estado-espetáculo

- Blog do Noblat / Veja

A liturgia do evangelismo cria animação social

Há, na sociologia política, uma hipótese que pode explicar certos fenômenos sobre o estado d’alma da população. A sobrecarga das demandas sociais aumenta as frustrações com o poder público, levando grupos a procurar uma recompensa psicológica. Imensos contingentes nacionais são atraídos por eventos diversionistas, que funcionam como compensação em momentos de crise.

É jogar na loto, ir aos estádios de futebol ou mesmo rir com programas populares na TV. Os olimpianos, perfis que o sociólogo Edgar Morin descreve como figurantes do topo da cultura de massas, chamam a atenção, abrem portas da esperança, “inventam milagres” em templos suntuosos, acenam para a plateia, encarnam o perfil de xerifes contra a corrupção e capricham na imagem de heróis “salvadores da Pátria”.

Quanto menos grana no bolso, maior o sucesso desses personagens: artistas de novelas, bispos reunindo multidões, jogadores (as) de futebol, juízes, ex-juízes, procuradores e até políticos de visibilidade midiática etc.

À fragilidade do Estado contrapõe-se o Estado das Estrelas Individuais, com seu teatro, promessas e elementos ficcionais. E o que está por trás disso? Entre outros fatores, instituições frágeis, conteúdos sociais amorfos, banalização da violência, descrença na política e na justiça, carência de cidadania, um conjunto festejado pela mídia. São visíveis os sintomas da crise, da deterioração de programas sociais nos capítulos da segurança, educação, saúde e habitação. A polícia não cumpre seu papel de preservar a ordem. Exércitos privados se multiplicam. A marginália cresce e o medo se espraia.

Merval Pereira: Já visto

- O Globo

O livro “Corrupção: Lava Jato e Mãos Limpas”, de Maria Cristina Pinotti, faz uma correlação entre as duas operações e mostra as várias tentativas de cercear a Lava-Jato que já houve, como o projeto de abuso de autoridade

O que está acontecendo hoje no Brasil, com a campanha contra a Operação Lava Jato e o ex-juiz Sérgio Moro, aconteceu na Itália contra a Operação Mãos Limpa (Mani Pulite), que combateu um sistema político corrupto e acabou ao final perdendo a parada.

O livro “Corrupção: Lava Jato e Mãos Limpas”, coordenado pela economista Maria Cristina Pinotti, uma estudiosa da correlação entre as duas operações, mostra bem o que ocorreu na Itália e está acontecendo entre nós.

Logo na apresentação, a economista ressalta que “só a pressão da sociedade poderia impedir que os políticos no Brasil tivessem sucesso em por fim à Lava Jato”.

Ela cita que já houve várias tentativas de cercear a Lava Jato, entre elas o projeto de abuso de autoridade, que acabou sendo aprovado recentemente pelo Senado, depois do livro publicado.

O texto final do projeto pode ser compreendido como uma vitória da pressão da sociedade, pois foi bastante amenizado. Mesmo assim, ainda representando ameaça às investigações, segundo os procuradores de Curitiba.

Ascânio Seleme: Eles só pensam naquilo

- O Globo

O Brasil é um país em permanente campanha eleitoral. O presidente Jair Bolsonaro nem completou seis meses e já rasgou promessa de campanha lançando-se a um segundo mandato. Da prisão em Curitiba, Lula não faz outra coisa a não ser cálculos eleitorais. Em São Paulo, o governador João Doria pavimenta seu caminho ao Planalto em 2022. Todos os partidos se movimentam em torno da agenda eleitoral que só vai começar para valer mesmo daqui a três anos.

É difícil que uma nação com essa obsessão dê certo. Mesmo os arranjos em torno de medidas urgentes em tramitação no Congresso, como a reforma da Previdência, levam em conta este cenário futuro. Não se pode negar que esta reforma, por um milagre que até agora não se sabe a que santo atribuir, caiu no gosto popular. Os parlamentares vão aprová-la, mas de olho na reeleição já cederam a pressões de servidores e ainda podem mexer aqui e ali, de acordo com a capacidade de pressão de um ou outro setor.

Há muito tempo os políticos brasileiros trabalham com planos longos ou artificialmente estendidos. Os mais velhos se lembram do projeto de 20 anos de Fernando Collor e sua trupe assim que tomaram o governo. Seriam necessários cinco mandatos seguidos de alguém da turma para alcançar aquele objetivo. Collor, PC Farias e companhia queriam bastante tempo para juntar US$ 1 bilhão em propinas. Diante do que se viu depois, pode-se até dizer que eram bem modestos. Fernando Henrique Cardoso também tinha um projeto de longo prazo. Seu objetivo poderia ser mais nobre, garantir a estabilização da economia e da moeda. Foi com essa desculpa que trabalhou e financiou a emenda da reeleição. Mas seu resultado foi desastroso. Primeiro, porque para se reeleger quase acabou com o Plano Real, com o controle cambial da moeda. Depois, porque instituiu esse modelo político que torna todos os detentores de mandatos em escravos da reeleição.

Míriam Leitão: Portas fechadas para os jovens

- O Globo

Jovens que chegam ao mercado de trabalho em períodos recessivos têm mais risco de entrar para o crime, mostram estudos

Para aumentar a oferta de empregos no país será preciso “chacoalhar” a economia, na opinião do professor Naércio Menezes, do Insper. Ele é um estudioso do assunto e seu diagnóstico é que o normal no Brasil tem sido há décadas a oferta insuficiente de vagas. O país tem que ter mais inovação, novas empresas que entrem no mercado e que mudem a dinâmica da economia, hoje ainda fechada e com muita proteção para companhias ineficientes. O mais assustador no momento, segundo o professor, é que estudos feitos na Inglaterra mostram que jovens que saem da escola em momentos recessivos têm maior probabilidade de entrar no crime.

Tudo o que o Brasil está discutindo no desemprego é o depois da vírgula. A Pnad mostrou na sexta-feira que é de 12,3% a taxa de pessoas que procuraram emprego e não encontraram. No trimestre anterior o número era 12,4%, e no mesmo período do ano passado era 12,7%. Estamos parados num nível intolerável de falta de vagas. Os que inutilmente tentam entrar no mercado de trabalho a cada mês são 13 milhões de brasileiros. Os desanimados, que estão em casa, sem coragem, tempo ou dinheiro para procurar uma colocação são 4,9 milhões. A soma dos desempregados, desalentados e os que trabalham menos do que poderiam dá 25% da população economicamente ativa, ou 28,5 milhões de pessoas, um quarto do capital humano do Brasil.

Elio Gaspari: A privataria com o Sírio no Canecão

- Folha de S. Paulo / O Globo

Querem lustrar a medicina de quem pode pagar à custa da Viúva

Cozinha-se no andar de cima do Rio de Janeiro a possibilidade de concessão do terreno da Universidade Federal (UFRJ), onde funcionou a casa de shows Canecão, na boca do túnel que leva a Copacabana, para a instalação de uma filial carioca do Hospital Sírio-Libanês.

Seria a privataria debochando da história.

No século passado, quando o Rio tinha a elite médica do país, a Faculdade de Medicina da Universidade do Brasil funcionava ali perto e grandes doutores como Oswaldo Cruz, Paulo Niemeyer e Ivo Pitanguy associavam sua fama à medicina pública.

A essa época a Faculdade de Medicina de São Paulo começava a crescer, associada ao seu Hospital das Clínicas (público). Do HC irradiou-se uma competência que ajudou a produzir hospitais como o Sírio, o Albert Einstein e a Beneficência Portuguesa (BP). No Rio, o Hospital da Clínicas claudica há mais de 50 anos e a grande medicina privada ficou para trás, junto com a pública.

Conceder o terreno da Canecão ao Sírio, ou a qualquer hospital de endinheirados, é debochar da história. Se o Sírio entrar no negócio e quiser fazer um hospital para atender sobretudo a pacientes do SUS, parabéns.

Se a universidade precisa de dinheiro, deve conceder o terreno a quem pagar melhor. Se um hospital abonado precisa de espaço, pode comprá-lo, onde bem entender. Fora disso, é pura privataria, lustrando a medicina de quem pode pagar, à custa do patrimônio da Viúva.

O andar de cima do Rio ressente-se da falta de um bom hospital, mas deve resolver esse problema no mercado. A plutocracia de São Paulo, como a de Nova York, tem bons hospitais porque patrocinou-os.

O Sírio nasceu na casa de Adma Jafet, o Einstein teve o amparo da comunidade judaica e de Joseph Safra. A Beneficência foi a menina dos olhos do bilionário Antônio Ermírio de Moraes. Quando o Memorial Sloan-Kettering de Nova York precisou de mais terreno, John D. Rockefeller Jr. doou-o. Quando precisou de mais dinheiro, ele veio de Alfred Sloan e Charles Kettering. Eram dois magnatas da General Motors.

Quando a GM acabar, eles serão lembrados pelo hospital.

A serventia da imprensa: Editorial / O Estado de S. Paulo

Houve notável entusiasmo de grande parte da sociedade brasileira com os resultados das eleições de 2018, porque esse desfecho parecia simbolizar uma ruptura com a era lulopetista, marcada pela corrupção e pela irresponsabilidade administrativa. O triunfo dos candidatos que se apresentaram como o “novo” e como a antítese de tudo o que se atribuía ao PT indicava a clara insatisfação do eleitorado com aquele estado de coisas e, por conseguinte, denotava a esperança de mudanças radicais que despertariam o enorme potencial adormecido em razão da captura do Estado por quadrilhas e corporações corruptas.

Para os mais empolgados, a vaga reformista, capitaneada não só pela eleição do presidente Jair Bolsonaro, como pela surpreendente renovação dos quadros parlamentares na União e nos Estados, demanda da sociedade brasileira total engajamento para atingir os fins a que se destina – quais sejam, limpar o País da corrupção e das influências da esquerda e colocá-lo no rumo do crescimento exuberante, mercê das reformas estruturais modernizantes. Mas o que deveria ser um movimento de revivificação das forças nacionais vai-se tornando um impulso de radicalização e de desunião, incapaz de analisar criticamente as razões de sua própria paralisia. Prefere-se atribuí-la a quem não anuncia sua absoluta aderência aos, digamos, princípios do bolsonarismo e a quem quer que deles se desvie ou em relação a eles nutra qualquer crítica.

Vitória da democracia: Editorial / O Estado de S. Paulo

Segunda-feira, o ministro Luís Roberto Barroso, do Supremo Tribunal Federal (STF), suspendeu liminarmente o trecho da Medida Provisória (MP) 886 que transferiu da Fundação Nacional do Índio (Funai) para o Ministério da Agricultura a prerrogativa de demarcar terras indígenas. No dia seguinte, o presidente do Senado, Davi Alcolumbre (DEM), devolveu esta parte da MP para o Poder Executivo. Embora o ato se trate de uma prerrogativa da Presidência do Senado, sua ocorrência não é trivial.

Há quem interprete esses dois atos como manifestações de hostilidade do Judiciário e do Legislativo em relação ao Executivo. É um equívoco, no entanto, tratar dos casos à luz de um suposto embate entre os Poderes. O revés imposto ao governo é menos uma “derrota” para o presidente Jair Bolsonaro do que um evidente sinal de vitalidade de nossa democracia republicana, em especial pelo bom funcionamento do sistema de freios e contrapesos. Ademais, a decisão do ministro Barroso é liminar e nada impede que o governo, se assim desejar, reapresente a matéria ao Congresso por meio de projeto de lei.

Quem vigia o vigia?: Editorial / Folha de S. Paulo

Projeto sobre abuso de autoridade, aprovado no Senado, tenta preencher lacuna

Na vida pública, quem ganha poder deveria também ter mais responsabilidade. Por esse prisma, agiu bem o Senado Federal ao aperfeiçoar e aprovar dispositivos que punem criminalmente o abuso de autoridade, no bojo de projeto que aperta o cerco contra a corrupção.

O juiz, de acordo com o texto votado na quarta (26), estará sujeito a penas que vão de seis meses a dois anos de detenção se praticar atos como o de proferir julgamento em situações em que a lei o impede ou opinar sobre processos ainda pendentes de decisão.

Já o integrante do Ministério Público submete-se ao mesmo espectro de punição se emitir parecer em situação proibida pela legislação ou se investigar alguém sem mínimos indícios de prática criminosa, entre outros atos tipificados.

A motivação político-partidária nas condutas de magistrados, procuradores e promotores também vai se tornar crime na hipótese de esse trecho do projeto passar incólume pela Câmara dos Deputados.

Os senadores tomaram o cuidado de estreitar a margem de interpretação para quem for aplicar os princípios elencados no texto.

Não basta a autoridade ter incidido nas situações descritas para ser enquadrada. É preciso que tenha atuado deliberadamente, com a intenção de prejudicar alguém ou de obter vantagem. Os legisladores, porém, apenas contribuíram para o anedotário ao acrescentar a esse rol de motivações dolosas o mero capricho e a satisfação pessoal.

Não procedem as críticas de que o avanço do projeto sobre crimes de abuso de autoridade seria uma retaliação às operações anticorrupção da parte de políticos, potenciais alvos dessas investigações.

Hora de decisão para governadores e prefeitos: Editorial / O Globo

Quebrados, estados e municípios têm o futuro subordinado à sua inclusão no projeto da reforma

Fórmula do sucesso na política não existe, mas a do fracasso é bem conhecida: tentar agradar a todos. Chegou a hora da escolha para 27 governadores e quase 5,6 mil prefeitos. Eles precisam decidir o rumo que desejam seguir.

Podem continuar no papel de gerentes de administrações falidas, ou assumir o ônus de ousar para reequilibrar as contas estaduais e municipais, engajando suas bancadas parlamentares na aprovação da reforma da Previdência na Câmara e no Senado. O prazo acaba na terça-feira, segundo o presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ).

Na situação dos estados tem-se uma dimensão desse drama. Há 14 governadores com despesas de pessoal (ativos e inativos) que ultrapassam o limite de 60% da receita corrente líquida. Sujeitam-se às sanções previstas na Lei de Responsabilidade Fiscal. Em alguns casos, já se consomem 80% da renda estadual.

Em plena crise, avançou o dispêndio com servidores. Entre 2011 e 2017, as despesas com pessoal cresceram em média 27,1% acima da inflação. No Rio, o valor duplicou. Ceará, Espírito Santo e São Paulo reduziram despesas com servidores ativos, mas aumentaram com inativos.

As várias visões: livro faz balanço dos 130 anos da República

Ensaios de 38 especialistas analisam, década a década, o período entre 1889 e 2019

Elias Thomé Saliba*, Especial para o Estado de S. Paulo

“Quando vamos pescar alguma coisa nesse oceano sem fundo que é a memória, o anzol já vai molhado do presente”. Assim o escritor Pedro Nava definia os impasses de suas narrativas, ancoradas num presente sempre móvel e mutante já que, a cada vez que relembrava algo, acabava modificando o passado. Muito semelhante ao que acontece com a História, com uma pequena (e crucial) diferença: o anzol do historiador (para ficar na mesma metáfora de Nava) também já sai molhado do presente, mas acaba voltando ressecado da realidade dos fatos e testemunhos. Talvez, por isto, ao contrário do que se pensa, a História não forneça lições duradouras mas, apenas novas e surpreendentes perspectivas.

Melhor ainda se estas perspectivas do passado nos chegam através de múltiplos olhares de historiadores, cientistas políticos, economistas e juristas, entrecruzando visões das suas disciplinas as quais, isoladas com suas próprias ferramentas e métodos, seriam incapazes de nos oferecer. Esta é a principal novidade de 130 Anos: Em Busca da República, que reúne pequenos ensaios de 38 autores, cada um abordando uma das 13 décadas da história brasileira, examinadas da perspectiva da História, do Direito e da Economia. Sabemos que em cada uma das três áreas é mas fácil fornecer a receita do que fazer o bolo. Mas não é o caso do raro caleidoscópico de estudiosos reunidos na coletânea, os quais, afinal, já se arriscaram em fazer o bolo: todos com larga experiência em suas áreas, sendo que quase a metade dos colaboradores já exerceram, ou ainda exercem, algum cargo na vida pública.

Já na introdução, Pedro Malan - um dos organizadores - parece reconhecer aquela mesma gangorra instável do anzol de Nava, entre memória e História, recorrendo à bela metáfora de outro escritor, o francês Alfred de Musset: “Ao longo destes 130 anos de República, não sabíamos (como não sabemos hoje) se ao caminhar estávamos pisando nas cinzas do passado ou nas sementes do futuro, juntas e misturadas, como sempre, sob nossos pés e em nossas memórias." Inspirando-se em Tito Lívio, a história dos 130 anos da República Brasileira, de 1889 a 2019, é dividida em décadas, o que pode supor alguma falta de sincronia em relação à periodização tradicional – mas que é, afinal compensada tanto pelo efeito de continuidade que cada autor procura garantir - na sintonia fina da redação de capitulos curtos, linguagem acessível e sem nenhum aparato acadêmico -, quanto nas criteriosas cronologias dos eventos mais importantes que orientam o leitor e abrem o exame de cada uma das décadas.

Sérgio Augusto: Meio século de 'Pasquim' e confusões

Há 50 anos, era fundado o semanário independente que reuniu nomes célebres do jornalismo brasileiroe  incomodou a ditadura

Sérgio Augusto, O Estado de S.Paulo

O Pasquim foi sobretudo Tarso de Castro e Jaguar. Tarso foi seu criador e seu dínamo, embora por pouco tempo: um ano e oito meses ou 84 números; e Jaguar, seu padrinho (emplacou o nome Pasquim) e obstinado animador, seu “último moicano”, o “almirante batavo” que só abandonou o navio quando ele foi a pique, em novembro de 1991, com o número 1.072 gravado no casco.

Gênio do humor gráfico, talvez o mais engraçado dos desenhistas, Jaguar criou o mascote do jornal – Sig, o perverso polimorfo em forma de rato –, inventou, sem querer, seu estilo revolucionário de montar uma entrevista e esteve sempre presente nos grandes e não tão grandes momentos de sua história, iniciada 50 anos atrás.

Além de cartuns, ilustrava todos os espaços baldios e tapava buracos de última hora com ousados improvisos, como uma página com a palavra “blá-blá-blá” de alto a baixo, assinada por Tarso mas bolada por ele, com a edição quase a caminho da gráfica. Muitos leitores viram a brincadeira como uma reação à Censura, daquela vez, porém, inocente: Tarso simplesmente não entregara seu texto em tempo hábil.

Era Jaguar quem aturava as “otoridades” do regime militar, negociava pessoalmente com os censores os cortes a serem feitos e, com uma boa conversa (ou mal-intencionadas overdoses de uísque), desfeitos. Foi a ele, por mérito, que o Exército, em março de 1975, com o número 300 em gestação, comunicou, por telefone, que a censura ao jornal fora suspensa.

Coincidiu de ser no dia do aniversário de 40 anos de Jaguar que Miguel Paiva, o fotógrafo Bruno Barreto (ainda “de menor”) e este escriba fomos presos pela ditadura, melando a festa programada para aquela noite. Mas claro que não foi para se vingar desse involuntário boicote à sua festa que Jaguar, provavelmente borracho, me demitiu, sete anos depois. Ele ameaçou voltar atrás, não deixei. Nunca brigamos por causa disso. Jaguar é imbrigável.

Tão forte era sua influência na edição do jornal, que mais de uma pessoa lhe atribuiu a paternidade de um cartum histórico, imaginado por Ziraldo e feito em cima do quadro Independência ou Morte, de Pedro Américo, com D. Pedro, às margens do Ipiranga, a gritar “Eu quero mocotó!!”, mote de uma abobrinha musical de grande apelo popular na época. O fato é que os milicos julgaram a brincadeira um ultraje a um “símbolo da pátria” e prolongaram por mais duas semanas a pena de dois meses que a redação cumpriu na Vila Militar, em Realengo, zona norte da cidade.

Se quando o cartum saiu publicado, no número 72, a redação (ou 70% dela: Jaguar, Tarso, Ziraldo, Paulo Francis, Sérgio Cabral, Fortuna, Luiz Carlos Maciel, o fotógrafo Paulo Garcez e o factotum gráfico Haroldo Zager) já estava encarcerada, outra coisa motivou aquele arrastão. Como nenhum processo foi aberto, nunca se soube o real motivo da punição, na certa corvejada havia meses pela linha dura do governo Médici.

Alguns dos punidos foram buscados em casa, por militares em trajes civis; outros, como Cabral e Fortuna, viajavam pelo interior do Estado e voltaram às pressas para se entregar; Millôr não pôde ser encontrado no endereço que os beleguins traziam no bolso, e ficou por isso mesmo. Tarso refugiou-se na casa de Nelson Motta e, em seguida, na suíte de um motel na Barra da Tijuca, e só se rendeu depois que a polícia o chantageou, detendo sua mulher, Barbara Oppenheimer. Jaguar, também escondido, sensibilizou-se com um telefonema de Francis (“Eles falaram que só soltam a gente se você se entregar. A sua consciência responde.”), chamou um táxi e rumou para os cafundós da Vila Militar. Foi o único que pagou para ser preso.

Quem mais saiu perdendo naquela dominical condução coercitiva foi Garcez, preso em plena lua de mel, ao ir à padaria comprar o pão do café da manhã. No desembarque na Vila, o mais prejudicado foi Maciel, que de cara teve seus longos cabelos tosqueados por ordem do oficial encarregado de vigiá-los e, se necessário, puni-los.

Nunca foram hostilizados nem sofreram maus tratos. Pelas histórias contadas, o séjour prisional derivou, muitas vezes, para a galhofa: Francis de cuecão lendo Freud, reclamando da qualidade da comida mas limpando o prato; Ziraldo liderando a caça às baratas que infestavam as celas; soldados exibindo seus dotes musicais a Cabral – um dia, espero, Jaguar contará tudo em suas “memórias do cárcere”, incluindo a letra do samba A Vila Não é Mais Aquela, parceria improvisada por quatro dos nove ilustres detentos.

“Os nove do Pasquim agora são um”, brincou o jornal, que, sem poder explicitar o ocorrido, atribuía a ausência dos colegas a uma metafórica gripe coletiva. A duras penas editado pelos que haviam ficado do lado de fora – Millôr, Henfil, Martha Alencar e Miguel Paiva – o jornal não deixou de sair. Ainda mais censurado, perdeu leitores, mas sobreviveu galhardamente.

Paulo Mendes Campos: A uma Bailarina

Quero escrever meu verso no momento
Em que o limite extremo da ribalta
Silencia teus pés, e um deus se exalta
Como se o corpo fosse um pensamento.

Além do palco, existe o pavimento
Que nunca imaginamos em voz alta,
Onde teu passo puro sobressalta
Os pássaros sutis do movimento.

Amo-te de um amor que tudo pede
No sensual momento em que se explica
O desejo infinito da tristeza,

Sem que jamais se explique ou desenrede,
Mariposa que pousa mas não fica,
A tentação alegre da pureza.

Lenine: Toque de Malícia (Jorge Aragão)