Dora Kramer
DEU EM O ESTADO DE S. PAULO
Antes de qualquer coisa, um pressuposto básico: abuso é abuso em qualquer circunstância, esteja ele a serviço do “mal” ou sirva de instrumento às forças do “bem”.
A premissa, não obstante óbvia, está em vias de sofrer pesada contestação. A depender do rumo do debate sobre o freio de arrumação nos métodos de investigação policial pleiteado pelos tribunais superiores, poderá ser substituída pela tese segundo a qual em alguma dose o arbítrio é aceitável - e até indispensável - quando o objetivo vale a pena e a causa não é pequena, como o combate à corrupção.
O cerne desse raciocínio já aparece aqui e ali desde que o presidente do Supremo Tribunal Federal, Gilmar Mendes, denunciou a existência e alertou para a conformação de um ambiente de “anarquia” na estrutura investigativa do Estado - incluindo não apenas a polícia, mas juízes, procuradores e agentes de espionagem.
São ponderações preocupadas com o exagero do lado contrário: que o preciosismo jurídico acabe punindo a polícia e protegendo o possível bandido.
Tal pensamento ganhou força nesta semana, depois que o Conselho Nacional de Justiça resolveu controlar a concessão de autorizações judiciais para escutas policiais e o Superior Tribunal de Justiça anulou dois anos de investigações da Polícia Federal, feitas com base em grampos cujas licenças foram renovadas várias vezes sem fundamento legal suficiente, no entender do STJ.
Daí a se concluir que esteja em marcha uma ofensiva do Judiciário para cercear o trabalho da PF e impedi-la de prosseguir em sua cruzada contra os barões do colarinho-branco seria um pulo não estivesse essa interpretação já em vigor.
Ainda apresentada na forma de reflexão originalíssima, produto de “insight” socialmente até bem intencionado, mas institucionalmente equivocado.
É claro que a polícia vai protestar, como já protestou quando da decisão sobre exorbitâncias na aplicação de algemas e como vem reclamando da concessão de habeas corpus a presos temporários, desde a revogação do “cumpra-se” reverencial no tocante a decisões da Justiça, particularmente do Supremo.
A qualquer grupo ou corporação interessa a maior liberdade possível de atuação. Mas, como a lei restringe as prerrogativas de alguns exatamente para assegurar o direito de todos, no Estado de Direito não se pode fazer tudo a qualquer preço.
E isso não é uma questão de ponto de vista. É um princípio geral válido para todos os cidadãos e aplicado a quaisquer situações.
O ideal seria que a Polícia Federal “republicana” (haveria alguma outra forma de instituição da República se conduzir?) estivesse suficientemente imbuída desse espírito para aceitar com naturalidade os obstáculos impostos pelos limites da lei e continuasse seu belo trabalho sem a ajuda das facilidades do abuso.
Mas compreende-se sua resistência em deixar o papel de protagonista na cena política para o qual foi escalada há pouco menos de seis anos.
Inaceitável e perigoso, porém, é que cabeças bem pensantes do País incutam no senso comum a deformada idéia de que autoridades públicas, ou gente alvo de suspeita, possam ser vigiadas à vontade ao arrepio da legalidade porque assim a sociedade estaria garantida em seu direito à transparência total.
Aí já não estaríamos mais tratando da existência ou não de um Estado policial, mas da disseminação de uma mentalidade policialesca em toda a sociedade. Em tempos de degradação ética, a tese soa como um alento e ganha adeptos com facilidade.
Parece bom abrir um espaço na lei para combater os fora-da-lei. Inclusive porque, argumenta-se, é tudo feito em nome da democracia, na vigência dos preceitos democráticos, cenário incomparável ao do regime autoritário.
Perfeito. Não fora o fato de que ao se abrir uma exceção hoje aqui, amanhã não haverá como impedir a abertura de mais alguma ali e ainda outra acolá para fazer frente a questões urgentes, saneadoras e moralizadoras.
O resto da história dispensa relato. Está tudo registrado na História. Da Humanidade e na do Brasil recente, onde a ditadura instalou-se sob a justificativa inicial de fazer deste um País livre de corruptos e bem mais decente.
Erro de origem
Bem intencionados de todos os matizes se empenham em resolver o problema das escutas com novas leis, aumento de punições e agora surgiu até a proposta de chamar o caminhão de mudanças para remover o sofá da sala, extinguindo a Agência Brasileira de Inteligência.
Já o interminável charivari entre autoridades da área de informações não parece impressionar, mesmo sendo o descontrole verbal a manifestação pública do principal defeito.
Com vergonha do SNI do passado, a democracia não se preparou para o futuro e ficou sem um serviço de inteligência de boa qualidade, bem organizado, com hierarquia estruturada, numa concepção estrita de defesa do Estado.
DEU EM O ESTADO DE S. PAULO
Antes de qualquer coisa, um pressuposto básico: abuso é abuso em qualquer circunstância, esteja ele a serviço do “mal” ou sirva de instrumento às forças do “bem”.
A premissa, não obstante óbvia, está em vias de sofrer pesada contestação. A depender do rumo do debate sobre o freio de arrumação nos métodos de investigação policial pleiteado pelos tribunais superiores, poderá ser substituída pela tese segundo a qual em alguma dose o arbítrio é aceitável - e até indispensável - quando o objetivo vale a pena e a causa não é pequena, como o combate à corrupção.
O cerne desse raciocínio já aparece aqui e ali desde que o presidente do Supremo Tribunal Federal, Gilmar Mendes, denunciou a existência e alertou para a conformação de um ambiente de “anarquia” na estrutura investigativa do Estado - incluindo não apenas a polícia, mas juízes, procuradores e agentes de espionagem.
São ponderações preocupadas com o exagero do lado contrário: que o preciosismo jurídico acabe punindo a polícia e protegendo o possível bandido.
Tal pensamento ganhou força nesta semana, depois que o Conselho Nacional de Justiça resolveu controlar a concessão de autorizações judiciais para escutas policiais e o Superior Tribunal de Justiça anulou dois anos de investigações da Polícia Federal, feitas com base em grampos cujas licenças foram renovadas várias vezes sem fundamento legal suficiente, no entender do STJ.
Daí a se concluir que esteja em marcha uma ofensiva do Judiciário para cercear o trabalho da PF e impedi-la de prosseguir em sua cruzada contra os barões do colarinho-branco seria um pulo não estivesse essa interpretação já em vigor.
Ainda apresentada na forma de reflexão originalíssima, produto de “insight” socialmente até bem intencionado, mas institucionalmente equivocado.
É claro que a polícia vai protestar, como já protestou quando da decisão sobre exorbitâncias na aplicação de algemas e como vem reclamando da concessão de habeas corpus a presos temporários, desde a revogação do “cumpra-se” reverencial no tocante a decisões da Justiça, particularmente do Supremo.
A qualquer grupo ou corporação interessa a maior liberdade possível de atuação. Mas, como a lei restringe as prerrogativas de alguns exatamente para assegurar o direito de todos, no Estado de Direito não se pode fazer tudo a qualquer preço.
E isso não é uma questão de ponto de vista. É um princípio geral válido para todos os cidadãos e aplicado a quaisquer situações.
O ideal seria que a Polícia Federal “republicana” (haveria alguma outra forma de instituição da República se conduzir?) estivesse suficientemente imbuída desse espírito para aceitar com naturalidade os obstáculos impostos pelos limites da lei e continuasse seu belo trabalho sem a ajuda das facilidades do abuso.
Mas compreende-se sua resistência em deixar o papel de protagonista na cena política para o qual foi escalada há pouco menos de seis anos.
Inaceitável e perigoso, porém, é que cabeças bem pensantes do País incutam no senso comum a deformada idéia de que autoridades públicas, ou gente alvo de suspeita, possam ser vigiadas à vontade ao arrepio da legalidade porque assim a sociedade estaria garantida em seu direito à transparência total.
Aí já não estaríamos mais tratando da existência ou não de um Estado policial, mas da disseminação de uma mentalidade policialesca em toda a sociedade. Em tempos de degradação ética, a tese soa como um alento e ganha adeptos com facilidade.
Parece bom abrir um espaço na lei para combater os fora-da-lei. Inclusive porque, argumenta-se, é tudo feito em nome da democracia, na vigência dos preceitos democráticos, cenário incomparável ao do regime autoritário.
Perfeito. Não fora o fato de que ao se abrir uma exceção hoje aqui, amanhã não haverá como impedir a abertura de mais alguma ali e ainda outra acolá para fazer frente a questões urgentes, saneadoras e moralizadoras.
O resto da história dispensa relato. Está tudo registrado na História. Da Humanidade e na do Brasil recente, onde a ditadura instalou-se sob a justificativa inicial de fazer deste um País livre de corruptos e bem mais decente.
Erro de origem
Bem intencionados de todos os matizes se empenham em resolver o problema das escutas com novas leis, aumento de punições e agora surgiu até a proposta de chamar o caminhão de mudanças para remover o sofá da sala, extinguindo a Agência Brasileira de Inteligência.
Já o interminável charivari entre autoridades da área de informações não parece impressionar, mesmo sendo o descontrole verbal a manifestação pública do principal defeito.
Com vergonha do SNI do passado, a democracia não se preparou para o futuro e ficou sem um serviço de inteligência de boa qualidade, bem organizado, com hierarquia estruturada, numa concepção estrita de defesa do Estado.
Nenhum comentário:
Postar um comentário