quinta-feira, 11 de setembro de 2008

As instituições e as brigas de botequim


Maria Inês Nassif
DEU NO VALOR ECONÔMICO

Reza a Constituição que ninguém pode ser considerado culpado "até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória". A boa prática democrática diz também que ninguém pode ser acusado sem provas. E que essas máximas devem ser obedecidas pelos cidadãos ricos e pobres, poderosos ou não. É simples: se você qualifica alguém de "bandido" publicamente, precisa provar que ele é realmente um bandido. As liberalidades ficam por conta de bate-bocas da vida cotidiana, que acontecem em espaços geográficos mais restritos e cujas ofensas podem ser atribuídas ao calor de uma discussão ou ao grau de uma animosidade que, todavia, não transcende a vida privada.

Quando isso é levado para o espaço público, no entanto, é preciso um cuidado maior do que nas brigas de botequim.

A Operação Satiagraha da Polícia Federal colocou em conflito o Supremo Tribunal Federal (STF) e a Polícia Federal (PF); o STF e os juízes de outras instâncias; o STF e as varas especializadas no julgamento de crimes financeiros; o STF e a Agência Brasileira de Inteligência (Abin); o STF e o ministro da Justiça, Tarso Genro; o STF e o procurador-geral da República, Antonio Fernando de Souza; o STF e os procuradores do Ministério Público Federal. "O STF", desde então, é a figura do ministro Gilmar Mendes, que assumiu em 23 de abril deste ano a presidência do tribunal e no dia 26 de março a presidência do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), o órgão de controle da magistratura.

No início de julho, a PF prendeu o empresário Daniel Dantas e um tanto de outras pessoas, para cumprir mandato expedido pelo juiz Fausto Martin De Sanctis. "De novo, é um quadro de espetacularização das prisões. Isso é evidente e dificilmente compatível com o estado de direito. Teve uso de algema abusivo. Tudo isto terá que ser discutido", disse o ministro, que nos dias subseqüentes concedeu dois habeas corpus à maioria dos presos, com exceção dos envolvidos diretamente numa tentativa de suborno de um policial. "Antigamente, você tinha certeza que quem batia na sua porta era o leiteiro. Hoje está meio confuso", declarou, na frente do ministro Tarso Genro, batendo em sua polícia. Todo o trabalho da PF na operação acabou sendo resumido ao uso de algemas nos presos - e em seguida o plenário do STF acabou aprovando normas tão restritivas às algemas que, por certo, aboliu o seu uso nos casos de prisões que podem ter algum apelo midiático. O STF colocou a PF no banco dos réus.

Mendes mandou todos para o banco dos réus

De Sanctis sofreu investidas de Mendes já no julgamento dos dois habeas corpus, que libertaram Dantas. Além de considerar o fato de De Sanctis ter considerado a prisão com base no risco de que o investigado pudesse alterar provas contra si um "rematado absurdo" - sabe-se lá por que é tão absurdo isso -, Mendes mandou o segundo pedido de prisão para o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) e para a Corregedoria da Justiça Federal - e só não fez uma representação formal contra o juiz porque houve uma revolta dos magistrados. Mas, de qualquer forma, na mídia, De Sanctis foi para o banco dos réus.

Na sexta-feira passada, em conversas com integrantes da CPI dos Grampos, Mendes apontou o dedo acusador para todas as varas de Justiça especializadas em crimes financeiros. As varas foram criadas em 2003 a partir da constatação de que os juízes das varas comuns não tinham conhecimento especializado para investigar esses crimes. Disse Mendes aos parlamentares que os juízes que atuam nessas varas especializadas, junto com delegados e o Ministério Público também especializados, formam uma espécie de "consórcio" que pode agir como "milícia". As varas de Justiça, os policiais e os promotores especializados foram, todos, de uma bandejada, para a cadeira de réus.

Uma denúncia de que, após o segundo habeas corpus, o ministro teria sido grampeado, fez com que posicionasse suas baterias contra a Abin - suposta autora do grampo de uma conversa telefônica entre Mendes e o senador Demóstenes Torres (DEM-GO), em parceria com a PF. A última semana foi perdida numa discussão interminável sobre se os equipamentos da Abin são apropriados para fazer grampos ou apenas fazem varreduras de escutas. Na dúvida, e antes da comprovação da denúncia, a Abin foi para o banco dos réus. A agência havia aparecidos na história Dantas, quando o delegado afastado do caso, Protógenes Queiroz, confessou ter contado com uma "ajuda informal" de seus agentes.

Passados dois meses da prisão de Dantas, todas as instituições que trabalharam no seu inquérito foram julgadas por Mendes - e os juízos de valor feitos pelo presidente do STF de cada uma delas, generosamente estampados pelos jornais. Não fossem as eleições, o presidente do Supremo teria sido o pautador hegemônico da mídia nesse período, sem que fossem necessárias informações mais consistentes do que acusações entre aspas do presidente da mais alta Corte para condenar instituições que exercem o seu papel na democracia brasileira, tal qual o STF.

No Brasil, parte da polícia mantém velhos hábitos de submeter presos, torturá-los, humilhá-los; a morosidade judicial resulta em um número enorme de presos que ou estouraram os prazos máximos de prisão temporária ou preventiva e não foram libertados, ou já cumpriram penas e continuam detidos; existem casos de uso privado de escuta ilegal; há um exagero de pedidos de escuta telefônica. O sistema judicial tem problemas estruturais que devem ser debatidos seriamente. É impossível, todavia, que todo o sistema seja ineficiente ou corrompido. Os casos de desvios criminosos devem ser investigados pela polícia e julgados pela Justiça. É impossível também que, em toda a cadeia que forma o sistema policial e judicial, apenas Mendes e Dantas sejam inocentes. O discurso politicamente correto de zelar para que o país não se torne um Estado policial é um instrumento para mobilizar todo o sistema pelo conflito e, por meio dele, obter hegemonia incondicional.

Maria Inês Nassif é editora de Opinião. Escreve às quintas-feiras

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