Cristovam Buarque
DEU EM O GLOBO
Esta é, certamente, a primeira vez que o Brasil atravessa uma crise mundial com certo grau de tranqüilidade na economia. Mas essa tranqüilidade nos faz esquecer as bases sobre as quais está assentada, e os riscos que ela ainda vai enfrentar.
Para muitos, parece que a tranqüilidade veio de repente. Na verdade, ela foi construída ao longo de diferentes governos. Não fosse o presidente Itamar ter feito o Plano Real, seu ministro da Fazenda Fernando Henrique ter-lhe dado a óbvia continuidade quando presidente e o presidente Lula ter mantido, responsável e competentemente, as mesmas bases, não haveria tranqüilidade. Três governos se sucederam como se houvesse um pacto implícito pela estabilidade financeira e monetária. Embora, no Brasil, o costume seja cada governo desfazer o que fez o anterior, há uma década e meia vêem-se os presidentes e ministros cumprirem as regras para uma economia sólida, assumindo inclusive gestos impopulares, como o superávit fiscal e o Proer. Mas também indo adiante, aumentando as reservas cambiais, sem o que estaríamos totalmente vulneráveis às flutuações lá fora.
Mas essa estabilidade não pode nos tranqüilizar totalmente. Precisamos manter um otimismo preocupado, diante da possibilidade de riscos à frente.
O maior deles são os gastos públicos. Graças a uma elevada arrecadação, tem sido possível manter o superávit primário. Não fosse o excesso de arrecadação, já teríamos déficit primário e a conseqüência imediata seria a desconfiança, que elevaria a taxa de risco, mandaria a taxa de juros aos patamares de antes, reduziria o fluxo de capitais vindos do exterior, derrubaria o nível de investimentos. Os gastos públicos são um problema porque crescem automaticamente, sem a possibilidade de que aumente ainda mais a carga fiscal. O sistema legal e a força das corporações impedem o controle fácil dos gastos públicos que crescem sem limites, ao passo que a arrecadação já está no seu limite máximo.
Outro risco está no sistemático déficit externo na conta das transações correntes. É impossível segurar reservas sólidas se esse déficit continuar. Ele deve ser coberto, seja pelo uso das reservas ou pelo aumento na taxa de juros, atraindo capitais voláteis que podem, a qualquer momento, migrar para outros mercados. A combinação de déficit nas contas externas com a volatilidade das divisas é um risco de altíssima periculosidade e gravidade. Mantém um equilíbrio frágil e dá proporções catastróficas ao desequilíbrio, se ele não for corrigido. Isso pode ser agravado pela falta de uma pauta de exportações de alta tecnologia - o que não temos base para fazer - ou pela necessidade de redução de salários, no estilo chinês - o que não devemos fazer. A opção pela desvalorização cambial teria efeitos negativos imediatos sobre a taxa de inflação.
Mas riscos os mais prováveis estão no médio e longo prazo; são estruturais. A baixa capacidade de poupança interna é um deles. A ganância fiscal reduz a capacidade da poupança privada. A preferência doentia do brasileiro pelo consumo, como uma quase aversão à poupança, impede a formação da poupança necessária. Some-se a isso o fato de que o governo é obrigado a consumir praticamente toda a sua renda, deixando quase nada para investimento público.
Outro risco é o grau de endividamento. Não somente o endividamento público, elevado na proporção do PIB; mais também o endividamento das pessoas, sob a forma de empréstimos diretos ou uso de cartão de crédito para financiar consumo. Apesar de já termos feito competentemente nosso Proer, e da perspectiva de que os bancos brasileiros tenham escapado da orgia suicida cometida pelos norte-americanos, é preciso acender a luz amarela para o risco que corremos, se esses endividados perderem a capacidade de pagamento, ameaçando a solidez de seus financiadores.
O Brasil vive uma tranqüilidade arriscada e não só por causa da crise externa, mas porque ainda precisa de bases mais sólidas.
CRISTOVAM BUARQUE é senador (PDT-DF).
DEU EM O GLOBO
Esta é, certamente, a primeira vez que o Brasil atravessa uma crise mundial com certo grau de tranqüilidade na economia. Mas essa tranqüilidade nos faz esquecer as bases sobre as quais está assentada, e os riscos que ela ainda vai enfrentar.
Para muitos, parece que a tranqüilidade veio de repente. Na verdade, ela foi construída ao longo de diferentes governos. Não fosse o presidente Itamar ter feito o Plano Real, seu ministro da Fazenda Fernando Henrique ter-lhe dado a óbvia continuidade quando presidente e o presidente Lula ter mantido, responsável e competentemente, as mesmas bases, não haveria tranqüilidade. Três governos se sucederam como se houvesse um pacto implícito pela estabilidade financeira e monetária. Embora, no Brasil, o costume seja cada governo desfazer o que fez o anterior, há uma década e meia vêem-se os presidentes e ministros cumprirem as regras para uma economia sólida, assumindo inclusive gestos impopulares, como o superávit fiscal e o Proer. Mas também indo adiante, aumentando as reservas cambiais, sem o que estaríamos totalmente vulneráveis às flutuações lá fora.
Mas essa estabilidade não pode nos tranqüilizar totalmente. Precisamos manter um otimismo preocupado, diante da possibilidade de riscos à frente.
O maior deles são os gastos públicos. Graças a uma elevada arrecadação, tem sido possível manter o superávit primário. Não fosse o excesso de arrecadação, já teríamos déficit primário e a conseqüência imediata seria a desconfiança, que elevaria a taxa de risco, mandaria a taxa de juros aos patamares de antes, reduziria o fluxo de capitais vindos do exterior, derrubaria o nível de investimentos. Os gastos públicos são um problema porque crescem automaticamente, sem a possibilidade de que aumente ainda mais a carga fiscal. O sistema legal e a força das corporações impedem o controle fácil dos gastos públicos que crescem sem limites, ao passo que a arrecadação já está no seu limite máximo.
Outro risco está no sistemático déficit externo na conta das transações correntes. É impossível segurar reservas sólidas se esse déficit continuar. Ele deve ser coberto, seja pelo uso das reservas ou pelo aumento na taxa de juros, atraindo capitais voláteis que podem, a qualquer momento, migrar para outros mercados. A combinação de déficit nas contas externas com a volatilidade das divisas é um risco de altíssima periculosidade e gravidade. Mantém um equilíbrio frágil e dá proporções catastróficas ao desequilíbrio, se ele não for corrigido. Isso pode ser agravado pela falta de uma pauta de exportações de alta tecnologia - o que não temos base para fazer - ou pela necessidade de redução de salários, no estilo chinês - o que não devemos fazer. A opção pela desvalorização cambial teria efeitos negativos imediatos sobre a taxa de inflação.
Mas riscos os mais prováveis estão no médio e longo prazo; são estruturais. A baixa capacidade de poupança interna é um deles. A ganância fiscal reduz a capacidade da poupança privada. A preferência doentia do brasileiro pelo consumo, como uma quase aversão à poupança, impede a formação da poupança necessária. Some-se a isso o fato de que o governo é obrigado a consumir praticamente toda a sua renda, deixando quase nada para investimento público.
Outro risco é o grau de endividamento. Não somente o endividamento público, elevado na proporção do PIB; mais também o endividamento das pessoas, sob a forma de empréstimos diretos ou uso de cartão de crédito para financiar consumo. Apesar de já termos feito competentemente nosso Proer, e da perspectiva de que os bancos brasileiros tenham escapado da orgia suicida cometida pelos norte-americanos, é preciso acender a luz amarela para o risco que corremos, se esses endividados perderem a capacidade de pagamento, ameaçando a solidez de seus financiadores.
O Brasil vive uma tranqüilidade arriscada e não só por causa da crise externa, mas porque ainda precisa de bases mais sólidas.
CRISTOVAM BUARQUE é senador (PDT-DF).
Nenhum comentário:
Postar um comentário