segunda-feira, 1 de dezembro de 2008

Chávez, Evo Morales e Correa


Cláudio Gonçalves Couto
DEU NO VALOR ECONÔMICO


Os recentes episódios do entrevero diplomático-empresarial entre o governo do presidente do Equador, Rafael Correa, e o Brasil - primeiro envolvendo a construtora Norberto Odebrecht e, agora, o BNDES - são sintomáticos de uma faceta já manifestada anteriormente no âmbito dos proto-regimes políticos (ou regimes em construção) nas nações chefiadas por lideranças de perfil "bolivariano". Ela se traduz na agressão aos interesses de empresas e governos de "nações amigas" feita com base na suposta defesa do bem nacional contra alegados violadores estrangeiros, reivindicando uma legitimidade que se basearia no caráter "soberano" do ato de violência. Assim como são normalmente legítimas ações amparadas pela lei de uma nação soberana, seriam também passíveis de legitimação atos que, alegadamente amparados nessa mesma soberania, violassem contratos anteriormente firmados por sujeitos estrangeiros que cometeram a imprudência de confiar na "lei soberana" previamente em vigor.

A contradição é patente: algumas normas e procedimentos que antes eram legais e serviram de guarida a quem -de boa fé - firmou contratos, tornaram-se ilegais na nova ordem instituída pelos líderes "bolivarianos", de modo que a implantação da nova (e superior) legalidade requer o cancelamento de acordos e a suspensão de direitos, que se tornaram ilegítimos. Se, por um lado, alguém pudesse afirmar que a criação de uma nova ordem legal é algo normal em qualquer Estado de Direito, seria também bom lembrar que sob o império da lei, esta não retroage em prejuízo de ninguém. E o que Rafael Caldera faz agora, assim como Evo Morales já fez anteriormente, é alegar que antes se vivia num mundo de ilegalidade que apenas pôde ser corrigido após sua ascensão ao poder, cabendo a eles atacar seletivamente os focos da transgressão dos interesses pátrios em nome da soberania nacional.

A possibilidade da criação dessa nova legalidade que pode descurar de toda a normatividade jurídica anterior se baseia, por sua vez, no suposto de que o processo político em curso é de natureza revolucionária. E assim sendo, nada que antes pudesse ser considerando - no âmbito de um Estado de Direito - limitador da ação dos governos, vale numa situação excepcional como esta. Em todos estes casos os líderes "bolivarianos" buscam dar formato legal a suas ações, legitimando-as por meio de novos decretos, leis e, sobretudo, novas constituições. A importância das novas cartas constitucionais, que foram pedra angular institucional da construção do regime nos três casos aqui aludidos, é a de simbolizar a refundação do Estado, zerando o cronômetro político da história do país e inaugurando uma nova era. A reformulação constitucional apenas dá um caráter mais radical - apesar de seu legalismo - às mudanças em curso; afinal, criar novas constituições significa criar novos Estados. Quem levou este processo com mais radicalismo à frente foi Hugo Chávez, que inclusive ocupou-se de rebatizar o país, alcunhando-lhe com o qualificativo de república "bolivariana".

O bolivarianismo, seja lá o que efetivamente possa conter como ideologia, não é contudo uma característica institucional facilmente decifrável sobre a Venezuela refundada por Chávez, como seriam por exemplo, os qualificativos de república "democrática" ou "federativa". O que de mais específico há no tal bolivarianismo são seu caráter supranacional (já que o sonho de Bolívar era o de unificar a América Hispânica) e sua natureza revolucionária. Com isto, uma "república bolivariana" seria, por conseqüência, uma exportadora de revolução para o continente, de modo que o qualificativo dado pela constituinte chavista ao país tem como fito, na verdade, um movimento mais amplo do que a mera reforma das instituições nacionais - visa-se reformar o entorno.

Uma das características dessa estratégia é uma atuação bastante agressiva (para não dizer truculenta) contra opositores internos e - evidentemente, dada a natureza do movimento - também externos. Na frente interna um exemplo disto foi a intimidação de Chávez a seus adversários nas recentíssimas eleições regionais, ameaçando até mesmo enviar tanques aos lugares em que a oposição se saísse vitoriosa. Afinal, quem não é um revolucionário (ou, pior, quem se opõe à revolução) é um traidor da pátria. Já na frente externa o exemplo melhor são as ações "antiimperialistas" de Caldera e Morales, de dar o calote da dívida com "usurários" estrangeiros, como o BNDES, ou desapropriar plantas industriais de multinacionais que se apropriam das riquezas nacionais, como a Petrobrás. No caso da expropriação boliviana, o governo brasileiro assumiu uma postura conciliatória, respeitando a "decisão soberana" (no sentido aqui já aludido) do governo de Evo Morales. Já no caso equatoriano, embora a mesma legitimidade soberana tenha sido invocada, a postura brasileira foi a de diplomaticamente sinalizar o teor inaceitável da ameaça de calote - pois, embora o Equador tenha apenas apelado a uma corte internacional neste primeiro momento, ele o fez logo após anunciar o caráter ilegítimo da dívida do país, segundo a avaliação de uma comissão de especialistas escolhidos a dedo pelo presidente Correa para produzir exatamente este diagnóstico.

Esta reflexão é importante para que possamos ter em conta o risco que correm tanto o governo brasileiro como as empresas nacionais que estabelecem negócios com os governos desses países. Embora potencialmente atraentes, os acordos firmados vivem sob a ameaça iminente de serem denunciados como ilegítimos, caso em algum momento no futuro as necessidades da revolução façam com que se perceba como necessária alguma mudança de regra. Poder-se-ia afirmar que o risco é menor para acordos feitos com os presentes governos boliviarianos, pois ocorreriam no âmbito de uma legalidade criada por eles mesmos - e não mais num passado de trevas, cuja superação cumpriria à revolução proporcionar. Embora isto realmente pareça plausível, é bom observar que "a revolução está em curso" e enquanto o mundo não for completamente mudado, aos olhos de revolucionários, mesmo o que ocorre com a sua anuência é passível de contaminação pela perversidade circundante, sendo necessárias repurificações periódicas. É aí que mora o perigo.

Cláudio Gonçalves Couto é professor de Ciência Política da PUC-SP e da FGV-SP.

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