segunda-feira, 29 de dezembro de 2008

Crise, mãos e bons votos

Fábio Wanderley Reis
DEU NO VALOR ECONÔMICO

Falei aqui na semana passada, a propósito da crise mundial, do contraste entre incompetência e ânimo de fraude. O contraste se liga com outra antinomia que remete ao cerne do debate sobre a crise.

Trata-se de algo que a reflexão sociológica e política tem designado de muitas formas e que Robert Nozick sintetizou há alguns anos, em "Anarquia, Estado e Utopia", em termos de dois modelos explicativos em torno dos quais oscilamos perversamente: o modelo da "mão invisível" e o da "mão oculta". De um lado, sempre que a feição mais ostensiva dos fenômenos sugere a ocorrência de mecanismos do tipo dos sugeridos pela clássica "mão invisível" de Adam Smith (ou seja, de mecanismos causais, que não correspondem à realização dos desígnios buscados explicitamente na ação de quem quer que seja), a explicação aparece como devendo consistir em apontar a atuação, "na verdade", dos interesses ou objetivos de algum ator ou conjunto de atores - portanto, em substituir os mecanismos de mão invisível por outros do tipo "mão oculta", o desígnio de alguém ou de algum grupo, tipicamente um desígnio sinistro ou conspiratório. De outro lado, sempre que os aspectos aparentes sugerem a operação bem sucedida de agentes que buscam seus próprios objetivos, e em que a intencionalidade envolvida se ajusta a um modelo do tipo "mão oculta", a explicação consistiria, ao contrário, em mostrar que "na verdade" o ator é irrelevante e que os mecanismos de causalidade social objetiva é que fornecem a verdadeira explicação.

Por certo, a "mão" que atua de modo intencional não é necessariamente sinistra ou maligna, e pode mesmo ser ostensiva em vez de oculta: há o herói, o estadista, o "proletário consciente"... Além disso, a convivência e o embate entre os dois modelos podem dar-se dentro de uma mesma perspectiva, se esta é definida em outros termos. Veja-se o confronto entre "determinismo" e "voluntarismo" no marxismo, que fala nas "condições objetivas" mas convida à "tomada de consciência" e à luta; ou, na ciência social acadêmica da atualidade, a chamada teoria da "escolha racional", que expande para diversos campos os supostos da economia neoclássica e destaca, no nível "micro", a busca intencional e supostamente racional do interesse próprio por agentes individuais, mas observa com atenção os efeitos de causalidade objetiva (a causalidade "supra-intencional") que resultam, no nível "macro", da agregação da multiplicidade de ações individuais dispersas. E, de par com a "manipulação" negativa e sinistra que a "mão oculta" sugere, a causalidade que emerge no nível agregado, se podia ser descrita como a benigna mão invisível por Adam Smith, pode igualmente carregar-se de efeitos negativos e perversos, ou cristalizar-se em "contradições" estruturais.

Como é bem claro, Estado e mercado correspondem, em princípio, aos pólos de intencionalidade e dinâmica espontânea que aí sobressaem - o que está longe de permitir situar de vez qualquer deles quer no lado "benigno" quer no "maligno" do espaço subjacente. Seja como for, a dinâmica "neoliberal" que culmina na crise atual era até há pouco descrita não só como um dado da realidade objetiva à qual, contra as fantasias de esquerdistas menos ou mais radicais, não seria possível senão acomodar-se (em paralelo curioso com automatismos supostamente irresistíveis antes apontados pela esquerda a operar em direção diferente); ela corresponderia também à realização de valores preciosos. Temos agora a multiplicação de interpretações em que não só se salientam as distorções e falhas dos espontaneísmos do mercado como tal de que a crise teria brotado; mais que isso, aponta-se com insistência o aspecto de sinistra mão oculta nas ações dos próprios agentes ostensivos do Estado.

Sem dúvida, é no espaço da política que as conspirações se executam, e o fato de que digam respeito a interesses econômicos não torna essa proposição menos verdadeira. Além disso, a diferença que faz um Ronald Reagan (ou um George W. Bush...) como estímulo à cara mais feia do mercado que a crise exibiu é patente. Análises sérias (um exemplo é "The Transformation of American Politics", organizado por P. Pierson e T. Scokpol) têm mostrado o próprio predomínio político-eleitoral do Partido Republicano nos Estados Unidos das últimas décadas como produto, em boa medida, de conspiração bem conduzida.

É difícil aceitar, porém (como vemos na informativa colaboração de Rubens Ricupero sobre a crise no número 64 de "Estudos Avançados"), que o argumento seja levado ao ponto de minimizar ou negar o papel da adesão de boa-fé a uma ideologia que se mostraria agora "equivocada", com a desqualificação, na sequência, do empenho regulador que se poderia ter com o próprio Barack Obama pela presença de certas figuras entre seus assessores econômicos. Afinal, a desregulação foi parte de um receituário tomado com seriedade até por governos trabalhistas ou socialdemocratas pelo mundo afora. E é no mínimo curioso juntar ao diagnóstico o que pode ser visto como a candura com que Alan Greenspan, agora erigido em vilão quase do porte de Bernard Madoff, admite sem vacilação no Congresso estadunidense que sua filosofia econômica estava errada. Joseph Stiglitz, em "The Economic Crisis: Capitalist Fools" (Vanity Fair, janeiro de 2009), destaca a admissão para lamentar as consequências atuais da difundida adesão a tal filosofia nos Estados Unidos e em muitos outros países.

A ênfase na causalidade objetiva pode extremar-se na idéia da fatalidade ou do destino. Mas, como na fala do Corisco de Glauber Rocha, há uma acepção em que o próprio destino é passível de mudança. Oxalá possamos dispor de heróis maquiavélicos no melhor sentido, dotados da "virtù" e atentos às condições da "fortuna", para (sem armas, apesar de submarinos franceses) mudar o destino de muita gente em 2009 - e 2010, 2011...

Fábio Wanderley Reis é cientista político e professor emérito da Universidade Federal de Minas Gerais. Escreve às segundas-feiras

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