O momento é de festa, mas a crise não dá uma trégua. O presidente Barack Obama, que assume hoje, representa, ao mesmo tempo, a saga de um povo e uma trajetória inesperada. Estados Unidos e Europa vivem uma nova etapa da crise bancária e, no Brasil, a crise mostrou a feia cara do desemprego. O mundo oscila entre a alegria de um novo governo americano e a aflição da velha crise.
Os sentimentos são polares. A viagem consagradora de trem, o show no Lincoln Memorial, a festa de três dias no reino, tudo transborda a alegria por um presidente que chega com a maior aprovação inicial da moderna história americana. Mas a crise sacudiu ontem, de novo, os mercados mundiais. As bolsas caíram aqui e na Europa. Ações de bancos despencaram, mostrando que continua havendo uma enorme desconfiança sobre a solidez do sistema bancário nos países mais ricos do planeta. Nos Estados Unidos, era feriado de Martin Luther King, as bolsas não abriram.
A crise promete ser longa, mas este é um tempo de festa. Nesta dualidade se vive. O jornal "Washington Post" fez uma lista dos ineditismos que o novo presidente representa só em sua história pessoal, sem contar a cor: Obama é o primeiro presidente que tem pai estrangeiro, o primeiro que é filho de pai e mãe com doutorado. Ele é o primeiro que cresceu no 50º estado, o Havaí. O único que aprendeu a se comunicar na língua da Indonésia. O único que tem irmãos na África, e uma irmã na Ásia. "A biografia da sua família, a sociologia da cor da sua pele e a geografia da sua ascensão política, esses três painéis da sua história se combinaram para fazer o final de tudo mais vívido e implausível", disse o jornal.
A próxima parada do trem que o levou a Washington - numa citação explícita de outro herói da unificação americana, Abraham Lincoln - é a Casa Branca. Parece impossível que a caminhada, iniciada em 1º de dezembro de 1955, em Montgomery, Alabama, tenha chegado tão longe. A história todos sabem, mas lembrá-la faz bem à alma. Naquele dia, Rosa Parks reagiu à ordem de ceder o lugar no ônibus a um branco e foi presa por isso. Os negros boicotaram os ônibus e andaram a pé por um ano inteiro. Contra todas as pressões e ameaças, apesar da prisão dos líderes, o movimento negro insistiu na sua forma pacífica de luta até a vitória na Suprema Corte, em 21 de dezembro de 1956. Sob chuva, sob sol, os negros andaram, liderados pelo jovem pastor, Martin Luther King.
O discurso de Barack Obama, domingo, no Lincoln Memorial, no mesmo lugar de onde o líder negro falou de seu sonho de união nacional por sobre as diferenças raciais, era uma citação explícita. Impossível não lembrar da marcha de Washington, que conquistou a lei dos direitos civis. Há muita história por trás desse momento; história pessoal e coletiva. De heroísmo e dor, e conquista. Por isso, nunca houve uma posse como essa.
No extremo oposto, a crise se aprofundou entre eleição e posse, como ocorreu em 1933, com Franklin Delano Roosevelt. Mas naquela época, a crise, que havia começado em 1929, já tinha feito todo o estrago possível, permitindo que logo começasse a dinâmica da recuperação. Agora, ainda se vive o olho do furacão. Bastou chegar a temporada dos balanços bancários, que as ações dos bancos despencaram, a onda de insegurança recomeçou, e os governos foram convocados, em Washington e Londres, a socorrer, com o dinheiro do contribuinte, as cambaleantes instituições financeiras. Ainda se vive o começo da crise.
E no mundo globalizado, a crise faz vítimas em todo lugar. No Brasil, ontem foi o dia de lembrar isso da forma dolorosa. O Ministério do Trabalho anunciou que desapareceram, apenas em dezembro, 655 mil empregos formais. Uma devastação. Os juros vão cair esta semana, na reunião do Copom que começa hoje. Vão cair não por pressão política, não por choro dos empresários, nem mesmo por pedido de banqueiros. Vão cair porque há razões técnicas que permitem isso. A queda não afastará o fantasma do desemprego da economia brasileira. O curioso é que esta semana sairá a taxa de desemprego medida pelo IBGE. A PME não deve mostrar sinais de aumento de desemprego. São estatísticas diferentes, mas o melhor é ficar com o alerta de que empregos estão sumindo num mercado de trabalho que já era insuficiente.
Assim é o dia 20 de janeiro de 2009. De euforia e luto; de vitória e comemoração. Os bancos tremem, a crise se aprofunda e se espalha, o desemprego cresce. E pela primeira vez uma família negra, num país que escravizou e segregou, vai ocupar a Casa Branca. Obama chega lá no estuário de um memorável movimento de luta por direitos dos negros americanos, e com uma biografia espantosamente diferente. Até seu nome o torna a pessoa improvável para o destino que se cumpre hoje: é, ao mesmo tempo, Hussein e Obama. Se algum ficcionista criasse um romance assim, a história seria desprezada por implausível.
A crise é real e de viés. Barack Obama terá de enfrentá-la desde o primeiro momento, com a garra de quem fez o impossível.
Nenhum comentário:
Postar um comentário