José Graziano da Silva
DEU NO VALOR ECONÔMICO
A FAO divulgou as novas estimativas sobre a fome no mundo: 2008 deverá terminar com 963 milhões de subnutridos, 40 milhões a mais que em 2007. Ainda que não se disponham dessas estimativas para as diferentes regiões do mundo, é de se esperar que a região da América Latina e Caribe tenha sido uma das mais afetadas.
Segundo os dados disponíveis, em 2007 o número de subnutridos na América Latina e Caribe havia subido para 51 milhões. Em 1990, quando se iniciaram essas medições o número de famintos na região somava 52,6 milhões e havia caído para 45,2 milhões em 2005. Ou seja, entre 2006 e 2007, os anos mais agudos da subida de preços dos alimentos básicos, o número de subnutridos aumentou em 6 milhões - mais de 13%, o segundo maior aumento relativo em todo o mundo, atrás apenas da África.
Perdeu-se em apenas dois anos quase tudo o que se havia conseguido reduzir em 15 anos. Se considerarmos que os preços dos principais alimentos continuaram a subir no primeiro semestre de 2008, é possível que a região termine o ano com mais subnutridos que contabilizava em 1990.
Para entender o porquê desse impacto tão forte do aumento de preços dos alimentos básicos no número de subnutridos da América Latina e Caribe basta recordar que a fome na região é fundamentalmente um problema de acesso, não de produção. Não faltam alimentos, falta maior poder aquisitivo a uma parcela significativa da população para poder comprá-los.
Não é de se estranhar que na região com maior taxa de urbanização do planeta, os pobres urbanos - que não têm acesso aos alimentos senão através da compra - tenham literalmente pagado a conta da alta dos preços dos alimentos.
Por outro lado, poucos países da América Latina e Caribe se beneficiaram da alta dos preços - basicamente, Brasil, Argentina e Colômbia -, dado que a maioria é importadora líquida de alimentos e/ou de petróleo. A razão é simples: desde os anos 80, muitos governos da região iniciaram um processo de desmontar e/ou privatizar o aparato público de suporte à agricultura convencidos de que o mundo era um grande supermercado ao qual se podia recorrer a qualquer hora.
Quando os preços subiram, esses países não puderam aumentar rapidamente a produção própria. Eles tiveram que alocar seus escassos recursos para fazer frente à elevação, sem ter condições financeiras de empreender qualquer outra política que não fosse defensiva e emergencial.
O que aconteceu na América Latina e Caribe também se repete a nível mundial. O incremento verificado na produção dos grãos básicos (milho, trigo, arroz e soja) que respondem direta ou indiretamente pela alimentação básica de 2/3 da população foi concentrada nos países ricos.
O mundo desenvolvido aumentou a produção de grãos em 10% em 2007-2008, enquanto os países em desenvolvimento o fizeram em menos de 1%. Excluindo Brasil, China e Índia dessa conta, a produção de cereais nos países em desenvolvimento caiu 1,6% no ano. Pois bem: o que nos espera agora que os preços de todas commodities estão em queda abrupta? Nada muito diferente, senão até pior, uma vez que para a região a atual crise financeira vem se somar à da alta dos preços dos alimentos.
Quando os preços das commodities sobem no mercado internacional, impactam imediatamente os preços ao consumidor, porque os comerciantes sabem que não poderão repor seus estoques se venderem a preços inferiores. No entanto, quando as commodities caem, esses mesmos comerciantes vão diluindo os novos preços mais baixos no custo dos seus estoques porque sabem que não poderão vender aos consumidores aos altos preços que compraram. Por isso é que a inflação dos alimentos persistirá alta, ainda que baixando lentamente, nos próximos meses mesmo com a economia se desacelerando.
E isso prejudica duplamente os pobres: além de continuar a pagar um preço elevado pelos alimentos, eles terão que enfrentar a redução do seu poder aquisitivo decorrente da recessão. Através de cortes de crédito e redução das demandas dos exportadores, a crise atual vai impactando o crescimento dos maiores países da região, como Argentina, Brasil, México e Peru. O crescimento das exportações que irrigou a economia interna e garantiu a geração de novos postos de trabalho na fase anterior agora está ameaçado.
A redução do crescimento econômico esperada para a próximo ano deverá impactar fortemente os agricultores da América Latina e Caribe. Diferentemente da atividade industrial e do comércio, que pode ajustar rapidamente o seu nível de atividade ao da demanda corrente, os agricultores irão colher no início de 2009 a safra que plantaram em 2008, com os preços de seus produtos em queda e que não permitem repor os custos dos insumos que pagaram.
Não há como parar a natureza e a margem de manobra que dispõe - não adubar mais, por exemplo - já foi utilizada. Os agricultores da região, especialmente os pequenos, dependerão da ação preventiva que possam tomar seus governos para garantir, basicamente, crédito para a comercialização e para o plantio da nossa safra 2009/10; preços mínimos e mercados institucionais para os produtos básicos. A boa notícia é que ainda há tempo para evitar nova crise.
As duas primeiras medidas podem ser consideradas como clássicas no âmbito da política agrícola. Mas a terceira delas - a garantia dos mercados institucionais para os pequenos produtores de alimentos - talvez venha a ser a mais importante delas para o futuro da segurança alimentar na região. Refiro-me, por exemplo, ao programa de compras da agricultura familiar, agora ampliado pela possibilidade também de comprar localmente dos pequenos produtores para abastecer a merenda escolar de cada município. Programas desse tipo permitem garantir o preço aos pequenos produtores na medida em que sustentam a demanda corrente para os produtos alimentícios básicos, ao mesmo tempo que injetam recursos financeiros reativando os mercados locais impactados pelo corte de renda proveniente da redução das demais atividades econômicas e ainda garante a alimentação dos mais pobres.
Se há uma lição que deveríamos ter aprendido com a anterior crise decorrente da alta dos preços dos alimentos é que se planta hoje o que vamos comer no ano que vem. E alimentação é uma coisa muito séria para se deixar em "mãos visíveis" que manobram os preços de acordo com seus interesses particulares.
José Graziano da Silva é representante regional da FAO para América Latina e Caribe.
DEU NO VALOR ECONÔMICO
A FAO divulgou as novas estimativas sobre a fome no mundo: 2008 deverá terminar com 963 milhões de subnutridos, 40 milhões a mais que em 2007. Ainda que não se disponham dessas estimativas para as diferentes regiões do mundo, é de se esperar que a região da América Latina e Caribe tenha sido uma das mais afetadas.
Segundo os dados disponíveis, em 2007 o número de subnutridos na América Latina e Caribe havia subido para 51 milhões. Em 1990, quando se iniciaram essas medições o número de famintos na região somava 52,6 milhões e havia caído para 45,2 milhões em 2005. Ou seja, entre 2006 e 2007, os anos mais agudos da subida de preços dos alimentos básicos, o número de subnutridos aumentou em 6 milhões - mais de 13%, o segundo maior aumento relativo em todo o mundo, atrás apenas da África.
Perdeu-se em apenas dois anos quase tudo o que se havia conseguido reduzir em 15 anos. Se considerarmos que os preços dos principais alimentos continuaram a subir no primeiro semestre de 2008, é possível que a região termine o ano com mais subnutridos que contabilizava em 1990.
Para entender o porquê desse impacto tão forte do aumento de preços dos alimentos básicos no número de subnutridos da América Latina e Caribe basta recordar que a fome na região é fundamentalmente um problema de acesso, não de produção. Não faltam alimentos, falta maior poder aquisitivo a uma parcela significativa da população para poder comprá-los.
Não é de se estranhar que na região com maior taxa de urbanização do planeta, os pobres urbanos - que não têm acesso aos alimentos senão através da compra - tenham literalmente pagado a conta da alta dos preços dos alimentos.
Por outro lado, poucos países da América Latina e Caribe se beneficiaram da alta dos preços - basicamente, Brasil, Argentina e Colômbia -, dado que a maioria é importadora líquida de alimentos e/ou de petróleo. A razão é simples: desde os anos 80, muitos governos da região iniciaram um processo de desmontar e/ou privatizar o aparato público de suporte à agricultura convencidos de que o mundo era um grande supermercado ao qual se podia recorrer a qualquer hora.
Quando os preços subiram, esses países não puderam aumentar rapidamente a produção própria. Eles tiveram que alocar seus escassos recursos para fazer frente à elevação, sem ter condições financeiras de empreender qualquer outra política que não fosse defensiva e emergencial.
O que aconteceu na América Latina e Caribe também se repete a nível mundial. O incremento verificado na produção dos grãos básicos (milho, trigo, arroz e soja) que respondem direta ou indiretamente pela alimentação básica de 2/3 da população foi concentrada nos países ricos.
O mundo desenvolvido aumentou a produção de grãos em 10% em 2007-2008, enquanto os países em desenvolvimento o fizeram em menos de 1%. Excluindo Brasil, China e Índia dessa conta, a produção de cereais nos países em desenvolvimento caiu 1,6% no ano. Pois bem: o que nos espera agora que os preços de todas commodities estão em queda abrupta? Nada muito diferente, senão até pior, uma vez que para a região a atual crise financeira vem se somar à da alta dos preços dos alimentos.
Quando os preços das commodities sobem no mercado internacional, impactam imediatamente os preços ao consumidor, porque os comerciantes sabem que não poderão repor seus estoques se venderem a preços inferiores. No entanto, quando as commodities caem, esses mesmos comerciantes vão diluindo os novos preços mais baixos no custo dos seus estoques porque sabem que não poderão vender aos consumidores aos altos preços que compraram. Por isso é que a inflação dos alimentos persistirá alta, ainda que baixando lentamente, nos próximos meses mesmo com a economia se desacelerando.
E isso prejudica duplamente os pobres: além de continuar a pagar um preço elevado pelos alimentos, eles terão que enfrentar a redução do seu poder aquisitivo decorrente da recessão. Através de cortes de crédito e redução das demandas dos exportadores, a crise atual vai impactando o crescimento dos maiores países da região, como Argentina, Brasil, México e Peru. O crescimento das exportações que irrigou a economia interna e garantiu a geração de novos postos de trabalho na fase anterior agora está ameaçado.
A redução do crescimento econômico esperada para a próximo ano deverá impactar fortemente os agricultores da América Latina e Caribe. Diferentemente da atividade industrial e do comércio, que pode ajustar rapidamente o seu nível de atividade ao da demanda corrente, os agricultores irão colher no início de 2009 a safra que plantaram em 2008, com os preços de seus produtos em queda e que não permitem repor os custos dos insumos que pagaram.
Não há como parar a natureza e a margem de manobra que dispõe - não adubar mais, por exemplo - já foi utilizada. Os agricultores da região, especialmente os pequenos, dependerão da ação preventiva que possam tomar seus governos para garantir, basicamente, crédito para a comercialização e para o plantio da nossa safra 2009/10; preços mínimos e mercados institucionais para os produtos básicos. A boa notícia é que ainda há tempo para evitar nova crise.
As duas primeiras medidas podem ser consideradas como clássicas no âmbito da política agrícola. Mas a terceira delas - a garantia dos mercados institucionais para os pequenos produtores de alimentos - talvez venha a ser a mais importante delas para o futuro da segurança alimentar na região. Refiro-me, por exemplo, ao programa de compras da agricultura familiar, agora ampliado pela possibilidade também de comprar localmente dos pequenos produtores para abastecer a merenda escolar de cada município. Programas desse tipo permitem garantir o preço aos pequenos produtores na medida em que sustentam a demanda corrente para os produtos alimentícios básicos, ao mesmo tempo que injetam recursos financeiros reativando os mercados locais impactados pelo corte de renda proveniente da redução das demais atividades econômicas e ainda garante a alimentação dos mais pobres.
Se há uma lição que deveríamos ter aprendido com a anterior crise decorrente da alta dos preços dos alimentos é que se planta hoje o que vamos comer no ano que vem. E alimentação é uma coisa muito séria para se deixar em "mãos visíveis" que manobram os preços de acordo com seus interesses particulares.
José Graziano da Silva é representante regional da FAO para América Latina e Caribe.
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