Rolf Kuntz
DEU EM O ESTADO DE S. PAULO
O presidente da República poderá continuar assinando medidas provisórias (MPs) sobre qualquer assunto e a qualquer momento, se isso depender dos chefes do Congresso. Poderá dar aumento ao funcionalismo, intervir no mercado financeiro, mexer no orçamento, mudar a regra de reajuste do salário mínimo ou tomar qualquer outra medida, aconselhada por um ministro, pedida por um lobby ou inventada num happy hour palaciano. A fórmula escolhida esta semana pelos presidentes da Câmara e do Senado poderá reduzir o trancamento da pauta e facilitar a votação de vários tipos de projetos, mas não resolverá o problema essencial: o abuso das MPs pelo ocupante do Palácio do Planalto.
O chefe de governo terá liberdade para legislar, como tem feito, sobre os mais variados assuntos econômicos, administrativos e até políticos, sem ser incomodado, haja ou não urgência e relevância - critérios indicados naquele livrinho lançado em outubro de 1988, com grande sucesso de público e alguma restrição da crítica. A perda de validade da MP, depois de certo prazo, não é grande problema, quando se tem imaginação.
Aquele mesmo livrinho atribuiu ao Poder Legislativo a prerrogativa de recusar, logo na entrada, toda MP elaborada sem o atendimento daquele par de requisitos. Não seria preciso acolhê-la para fazê-la tramitar até a votação. O uso dessa prerrogativa nunca foi parte da rotina parlamentar. O senador Garibaldi Alves quase causou uma comoção nacional, em novembro do ano passado, quando resolveu, como presidente da Casa, devolver a MP das filantrópicas - conhecida por favorecer entidades acusadas de fraude.
Pode ter agido de forma desastrada, por não haver convocado uma comissão para decidir o assunto, mas fez valer uma faculdade atribuída ao Congresso pela Constituição.
"O que pretendo é levantar a cabeça do Legislativo", disse o presidente da Câmara, Michel Temer (PMDB-SP), ao justificar o expediente encontrado para reduzir o trancamento de pauta. Pela solução encontrada, o trancamento valerá para projetos de lei, mas não para propostas de emenda constitucional e projetos de lei complementar, de decreto legislativo e de resoluções. Não precisaria recorrer a isso para cuidar da honra do Congresso. Bastaria combinar com o presidente do Senado, José Sarney, seu companheiro de partido, o exercício da atribuição de filtrar as MPs.
Essa atribuição corresponde não só a uma faculdade. Quando os congressistas deixam de avaliar a admissibilidade de uma MP, não renunciam apenas ao exercício de um poder. O fato é mais grave: deixam de cumprir um dever. Se a MP enviada ao Congresso não se enquadra nas condições previstas na Constituição, quem tem o poder de barrá-la deve ter também a obrigação de fazê-lo. Omitir-se, nesse caso, é tornar-se cúmplice de um atentado à ordem constitucional. A cumplicidade pode ser apenas moral, mas é inegável.
Se o Supremo Tribunal Federal não derrubar o expediente escolhido pelos chefes do Congresso, poderá haver algum prejuízo para a oposição e também para o Executivo. Este perderá um instrumento de pressão sobre o Legislativo - a ameaça permanente do trancamento de pauta. Os oposicionistas terão menos ocasiões para recorrer à obstrução, quando quiserem deter a votação de uma MP e manter a pauta trancada. Mas tudo isso é apenas parte do joguinho diário da política partidária. Tem sua importância prática, naturalmente, mas pouco significado quando se trata de grandes questões institucionais. A divisão de Poderes, a valorização do Parlamento e o uso correto das atribuições - como a emissão de MPs - são questões dessa magnitude. Não tem sentido falar em "levantar a cabeça do Legislativo" quando se inventa apenas um remendo e não uma solução para o abuso de um poder conferido ao Executivo.
Talvez se considere irrealista cobrar tanto do Congresso brasileiro, uma instituição muito mais eficiente na produção de escândalos do que na elaboração de leis e de atos de fiscalização do Executivo. Na situação atual, parece uma ambição desmedida pretender algo mais que a redução dos 136 cargos de diretoria do Senado, a prestação de contas da verba indenizatória e um pouco mais de respeito ao orçamento do próprio Congresso. Pode ser. Mas, se não se puder cobrar mais que isso dos congressistas, como se poderá esperar o equilíbrio indispensável à democracia? Sobrará, se não ocorrer nada pior, apenas o Judiciário como contraponto ao Executivo e o império da lei ficará na dependência dos mandados de injunção e instrumentos aparentados.
*Rolf Kuntz é jornalista
DEU EM O ESTADO DE S. PAULO
O presidente da República poderá continuar assinando medidas provisórias (MPs) sobre qualquer assunto e a qualquer momento, se isso depender dos chefes do Congresso. Poderá dar aumento ao funcionalismo, intervir no mercado financeiro, mexer no orçamento, mudar a regra de reajuste do salário mínimo ou tomar qualquer outra medida, aconselhada por um ministro, pedida por um lobby ou inventada num happy hour palaciano. A fórmula escolhida esta semana pelos presidentes da Câmara e do Senado poderá reduzir o trancamento da pauta e facilitar a votação de vários tipos de projetos, mas não resolverá o problema essencial: o abuso das MPs pelo ocupante do Palácio do Planalto.
O chefe de governo terá liberdade para legislar, como tem feito, sobre os mais variados assuntos econômicos, administrativos e até políticos, sem ser incomodado, haja ou não urgência e relevância - critérios indicados naquele livrinho lançado em outubro de 1988, com grande sucesso de público e alguma restrição da crítica. A perda de validade da MP, depois de certo prazo, não é grande problema, quando se tem imaginação.
Aquele mesmo livrinho atribuiu ao Poder Legislativo a prerrogativa de recusar, logo na entrada, toda MP elaborada sem o atendimento daquele par de requisitos. Não seria preciso acolhê-la para fazê-la tramitar até a votação. O uso dessa prerrogativa nunca foi parte da rotina parlamentar. O senador Garibaldi Alves quase causou uma comoção nacional, em novembro do ano passado, quando resolveu, como presidente da Casa, devolver a MP das filantrópicas - conhecida por favorecer entidades acusadas de fraude.
Pode ter agido de forma desastrada, por não haver convocado uma comissão para decidir o assunto, mas fez valer uma faculdade atribuída ao Congresso pela Constituição.
"O que pretendo é levantar a cabeça do Legislativo", disse o presidente da Câmara, Michel Temer (PMDB-SP), ao justificar o expediente encontrado para reduzir o trancamento de pauta. Pela solução encontrada, o trancamento valerá para projetos de lei, mas não para propostas de emenda constitucional e projetos de lei complementar, de decreto legislativo e de resoluções. Não precisaria recorrer a isso para cuidar da honra do Congresso. Bastaria combinar com o presidente do Senado, José Sarney, seu companheiro de partido, o exercício da atribuição de filtrar as MPs.
Essa atribuição corresponde não só a uma faculdade. Quando os congressistas deixam de avaliar a admissibilidade de uma MP, não renunciam apenas ao exercício de um poder. O fato é mais grave: deixam de cumprir um dever. Se a MP enviada ao Congresso não se enquadra nas condições previstas na Constituição, quem tem o poder de barrá-la deve ter também a obrigação de fazê-lo. Omitir-se, nesse caso, é tornar-se cúmplice de um atentado à ordem constitucional. A cumplicidade pode ser apenas moral, mas é inegável.
Se o Supremo Tribunal Federal não derrubar o expediente escolhido pelos chefes do Congresso, poderá haver algum prejuízo para a oposição e também para o Executivo. Este perderá um instrumento de pressão sobre o Legislativo - a ameaça permanente do trancamento de pauta. Os oposicionistas terão menos ocasiões para recorrer à obstrução, quando quiserem deter a votação de uma MP e manter a pauta trancada. Mas tudo isso é apenas parte do joguinho diário da política partidária. Tem sua importância prática, naturalmente, mas pouco significado quando se trata de grandes questões institucionais. A divisão de Poderes, a valorização do Parlamento e o uso correto das atribuições - como a emissão de MPs - são questões dessa magnitude. Não tem sentido falar em "levantar a cabeça do Legislativo" quando se inventa apenas um remendo e não uma solução para o abuso de um poder conferido ao Executivo.
Talvez se considere irrealista cobrar tanto do Congresso brasileiro, uma instituição muito mais eficiente na produção de escândalos do que na elaboração de leis e de atos de fiscalização do Executivo. Na situação atual, parece uma ambição desmedida pretender algo mais que a redução dos 136 cargos de diretoria do Senado, a prestação de contas da verba indenizatória e um pouco mais de respeito ao orçamento do próprio Congresso. Pode ser. Mas, se não se puder cobrar mais que isso dos congressistas, como se poderá esperar o equilíbrio indispensável à democracia? Sobrará, se não ocorrer nada pior, apenas o Judiciário como contraponto ao Executivo e o império da lei ficará na dependência dos mandados de injunção e instrumentos aparentados.
*Rolf Kuntz é jornalista
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