Ricardo Schott
DEU NO JORNAL DO BRASIL / Caderno B
Uma coincidência aconteceu durante a elaboração de O pagador de promessas, história em quadrinhos desenhada por Eloar Guazzelli tendo como base o texto original da peça do dramaturgo Dias Gomes (1922-1999), para a série Grandes clássicos em graphic novel, da Editora Agir. Trabalhando durante a madrugada com a televisão ligada, o artista gaúcho radicado em São Paulo concentrava-se nos desenhos quando, por obra do acaso, surgiu na tela da TV a célebre versão cinematográfica do texto, dirigida por Anselmo Duarte.
Mesmo seguro de que seu trabalho estava fiel ao original de Gomes, Guazzelli decidiu se preservar. E desligou o aparelho.
– Já tinha visto o filme e tem muito dele no meu trabalho, mas a história está tão presente no imaginário da gente que achei melhor não me deixar influenciar pelas imagens – conta o autor, que também é montador de cinema e dedicou-se a um profundo trabalho com cores, diferente do preto-e-branco do filme. – Para dinamizar a história, até para apresentá-la ao público jovem, decidi valorizar bastante as imagens da cidade.
Na peça, os cenários de Salvador, onde a história se passa, estão sempre presentes. Decidi usá-los como recurso.
Apesar da força do filme, ganhador da Palma de Ouro no Festival de Cannes, em 1962 – a única que o Brasil já recebeu até hoje – a atenção de Guazzelli voltou-se mesmo foi para a peça de Gomes. Encenada pela primeira vez em 1960 em São Paulo, O pagador de promessas conta a história de um sertanejo que carrega por sete léguas uma enorme cruz nas costas, com o objetivo de depositá-la dentro da Igreja de Santa Bárbara, em Salvador, em agradecimento à santa pela melhora do animal (um burro) que o ajudava na lavoura. Zé do Burro, como passa a ser conhecido, é impedido pelo padre de entrar na igreja, até por haver elementos do candomblé mediando sua promessa – e vê um carnaval de poderosos, policiais e jornalistas formar-se ao seu redor.
‘O bem-amado’ no livro
A fidelidade ao original foi condição necessária para que a HQ figurasse na série da Agir, que já editou, vertidos para os quadrinhos, O alienista, de Machado de Assis (por Fábio Moon e Gabriel Bá) e O pequeno príncipe, de Antoine de Saint-Exupéry (este, adaptado pelo francês Joann Sfar). Mas o quadrinista conseguiu dar ao texto um toque autoral.
– Incluí até cartazes com o rosto do Odorico Paraguassu, personagem de O bem-amado. Foi a obra que me introduziu ao Dias Gomes, na TV, quando eu era criança – recorda Guazzelli.
DEU NO JORNAL DO BRASIL / Caderno B
Uma coincidência aconteceu durante a elaboração de O pagador de promessas, história em quadrinhos desenhada por Eloar Guazzelli tendo como base o texto original da peça do dramaturgo Dias Gomes (1922-1999), para a série Grandes clássicos em graphic novel, da Editora Agir. Trabalhando durante a madrugada com a televisão ligada, o artista gaúcho radicado em São Paulo concentrava-se nos desenhos quando, por obra do acaso, surgiu na tela da TV a célebre versão cinematográfica do texto, dirigida por Anselmo Duarte.
Mesmo seguro de que seu trabalho estava fiel ao original de Gomes, Guazzelli decidiu se preservar. E desligou o aparelho.
– Já tinha visto o filme e tem muito dele no meu trabalho, mas a história está tão presente no imaginário da gente que achei melhor não me deixar influenciar pelas imagens – conta o autor, que também é montador de cinema e dedicou-se a um profundo trabalho com cores, diferente do preto-e-branco do filme. – Para dinamizar a história, até para apresentá-la ao público jovem, decidi valorizar bastante as imagens da cidade.
Na peça, os cenários de Salvador, onde a história se passa, estão sempre presentes. Decidi usá-los como recurso.
Apesar da força do filme, ganhador da Palma de Ouro no Festival de Cannes, em 1962 – a única que o Brasil já recebeu até hoje – a atenção de Guazzelli voltou-se mesmo foi para a peça de Gomes. Encenada pela primeira vez em 1960 em São Paulo, O pagador de promessas conta a história de um sertanejo que carrega por sete léguas uma enorme cruz nas costas, com o objetivo de depositá-la dentro da Igreja de Santa Bárbara, em Salvador, em agradecimento à santa pela melhora do animal (um burro) que o ajudava na lavoura. Zé do Burro, como passa a ser conhecido, é impedido pelo padre de entrar na igreja, até por haver elementos do candomblé mediando sua promessa – e vê um carnaval de poderosos, policiais e jornalistas formar-se ao seu redor.
‘O bem-amado’ no livro
A fidelidade ao original foi condição necessária para que a HQ figurasse na série da Agir, que já editou, vertidos para os quadrinhos, O alienista, de Machado de Assis (por Fábio Moon e Gabriel Bá) e O pequeno príncipe, de Antoine de Saint-Exupéry (este, adaptado pelo francês Joann Sfar). Mas o quadrinista conseguiu dar ao texto um toque autoral.
– Incluí até cartazes com o rosto do Odorico Paraguassu, personagem de O bem-amado. Foi a obra que me introduziu ao Dias Gomes, na TV, quando eu era criança – recorda Guazzelli.
– Também fiz questão de usar a Igreja Católica como elemento arquitetônico, já que ela é personagem da peça, como instituição. Coloquei imagens no portal da igreja, até para fazer uma referência à Paixão de Cristo.
O trabalho inicial passou pelo crivo dos herdeiros de Dias Gomes, que viu os primeiros desenhos de O pagador de promessas. Para caber nas quatro linhas do quadrinho, no entanto, o texto teve que sofrer alguns cortes. Nessa tarefa, Guazzelli diz ter sido ajudado por sua experiência no cinema, além, claro, de seu know how de novelista gráfico. Antes de entregar-se ao teatro de Dias Gomes, refizera em desenhos Apólogo brasileiro sem véu de alegoria, do escritor modernista Alcântara Machado (1901-1935) para a série Domínio público, do coletivo de desenhistas pernambucanos Ragú. Em ambas as realizações, uniu o universo da película ao das tintas e do papel.
– O filme precisa de um fluxo, de um determinado ritmo, e a HQ precisa de outro, porque se ancora em outros elementos – explica. – Na narrativa cinematográfica, a montagem tem que ser cruel, porque não dá para usar todas as cenas interessantes que foram feitas. Tem diretor que termina o filme e já deixa tudo na mão do montador, nem fiscaliza o trabalho para não haver sofrimento. O mesmo se deu em O pagador.
Guazzelli, que começou nas HQs durante os anos 80 na revista gaúcha Kamikaze – cujos números são tidos hoje como raridades – encara como natural a aproximação cada vez mais recorrente entre quadrinhos e outras formas de expressão, como o cinema.
– Na verdade, cinema e quadrinhos meio que começaram na mesma época, são artes contemporâneas. Natural que elas tenham o hábito de conversar. Só não pode é o quadrinho virar storyboard de futuros filmes, como tem acontecido às vezes – afirma.
Como professor de desenho e artes gráficas, lamenta que o quadrinho ainda seja visto com preconceito.
– É encarado como uma coisa adolescente e não é isso. A HQ é uma forma de arte. O quadrinho argentino, por exemplo, alcança quase a densidade máxima da literatura. Para defender as HQs, fala-se coisas como "Fellini adorava quadrinhos". Mas é uma linguagem que tem que ser respeitada.
O trabalho inicial passou pelo crivo dos herdeiros de Dias Gomes, que viu os primeiros desenhos de O pagador de promessas. Para caber nas quatro linhas do quadrinho, no entanto, o texto teve que sofrer alguns cortes. Nessa tarefa, Guazzelli diz ter sido ajudado por sua experiência no cinema, além, claro, de seu know how de novelista gráfico. Antes de entregar-se ao teatro de Dias Gomes, refizera em desenhos Apólogo brasileiro sem véu de alegoria, do escritor modernista Alcântara Machado (1901-1935) para a série Domínio público, do coletivo de desenhistas pernambucanos Ragú. Em ambas as realizações, uniu o universo da película ao das tintas e do papel.
– O filme precisa de um fluxo, de um determinado ritmo, e a HQ precisa de outro, porque se ancora em outros elementos – explica. – Na narrativa cinematográfica, a montagem tem que ser cruel, porque não dá para usar todas as cenas interessantes que foram feitas. Tem diretor que termina o filme e já deixa tudo na mão do montador, nem fiscaliza o trabalho para não haver sofrimento. O mesmo se deu em O pagador.
Guazzelli, que começou nas HQs durante os anos 80 na revista gaúcha Kamikaze – cujos números são tidos hoje como raridades – encara como natural a aproximação cada vez mais recorrente entre quadrinhos e outras formas de expressão, como o cinema.
– Na verdade, cinema e quadrinhos meio que começaram na mesma época, são artes contemporâneas. Natural que elas tenham o hábito de conversar. Só não pode é o quadrinho virar storyboard de futuros filmes, como tem acontecido às vezes – afirma.
Como professor de desenho e artes gráficas, lamenta que o quadrinho ainda seja visto com preconceito.
– É encarado como uma coisa adolescente e não é isso. A HQ é uma forma de arte. O quadrinho argentino, por exemplo, alcança quase a densidade máxima da literatura. Para defender as HQs, fala-se coisas como "Fellini adorava quadrinhos". Mas é uma linguagem que tem que ser respeitada.
O cenário, porém, está sendo gradativamente modificado por séries como a da Agir – que vem ao encontro de uma demanda do Ministério da Educação e Cultura para a distribuição de obras em quadrinhos em bibliotecas públicas.
– Já é uma grande melhora – afirma. – Nos anos 70 até havia quadrinhos no ensino, mas era uma coisa rígida, controlada, permitida pela ditadura.
Além do aval do MEC, Guazzelli também busca temas eternos presentes em O pagador de promessas como forma de se aproximar dos leitores mais jovens.
– O caso que aconteceu em Pernambuco, o da menina de 9 anos que teve de fazer um aborto e cuja família foi excomungada, mostra que a Igreja continua de portas fechadas, como no texto de Dias Gomes. É o terror dos terrores – relata ele, que não tem religião, mas diz ter aprendido a respeitar todas as formas de crenças.
– O Brasil é um país em que as pessoas dizem ter religião, mas praticam muito pouco o perdão. Preferem exercer só a punição. Visto por esse aspecto, O pagador está mais atual do que nunca.
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