Domingo, 21 de junho, o Wall Street Journal informa: as investigações de fraude apanharam mais um peixe, agora miúdo, em sua tarrafa. Miúdo, diga-se, pelos padrões contemporâneos de Wall Street. O financier texano R. Allen Stanford construiu sua fraude de US$ 7 bilhões sob os auspícios dos métodos de Charles Ponzi e o auxílio dos reguladores de Antígua e Barbuda, paraísos fiscais encravados no Caribe. Bernard Madoff tem seguidores em suas estripulias financeiras.
As aventuras de Bernie Madoff e Allen Stanford foram perpetradas sob o patrocínio de formulas manjadas e estimuladas pela mãozinha de autoridades coniventes. Os truques foram aqueles do financiamento Ponzi: aumentar o passivo para sustentar a posse de ativos que produzem um fluxo de rendimentos insuficiente para cobrir os compromissos vincendos.
Hyman Minsky usou a qualificação "Ponzi" para designar uma estrutura de financiamento situada no degrau mais elevado da escala de fragilidade financeira, acima daquela denominada por ele de "estrutura especulativa". Esta última requer o refinanciamento dos encargos financeiros decorrentes da dívida passada para que o devedor possa honrá-los. Um agente "Ponzi" deve aumentar a dívida para cumprir suas obrigações financeiras.
A SEC, Securities and Exchange Commission, foi alertada desde 1999 para as manobras fraudulentas que infestavam os mercados financeiros. Fez vista grossa para os indícios de fraude denunciados por concorrentes de Madoff. Tais indícios foram, então, descartados com a colaboração de funcionários da agência. Agora, Leroy King, administrador da agência reguladora de Antígua, é acusado de "levar bola" para encobrir os malfeitos de Stanford.
Os episódios Madoff e Stanford não são apenas frutos de desvios de caráter de indivíduos, mas o resultado natural da promiscuidade entre governos lenientes, agências capturadas e negócios espertos. Sob o manto protetor do governo permissivo, os negócios deitaram e rolaram. Exploraram as "falhas de regulação" para impor suas razões e interesses, acobertados por um clima de euforia e irresponsabilidade.
Durante a depressão dos anos 30 do Século XX, o povo americano arremeteu sua ira contra a ganância de Wall Street. Franklin Delano Roosevelt - aquele que assumiu o governo do país quando a depressão de 1929 andava brava - tratou de salvar as grandes corporações e os bancos de seus próprios desvarios e preconceitos. O New Deal era visto, naturalmente, com horror por J.P. "Jack" Morgan, o júnior. Em 1935, a multidão de desempregados e empobrecidos vivia dos programas de obras públicas e de assistência social do Estado. Ao desembarcar de uma viagem à Europa, ainda a bordo do Queen Mary, o desastrado herdeiro de John Pierpont proclamou: "Todos os que ganham dinheiro nos Estados Unidos trabalham oito meses por ano para sustentar o governo". O historiador Ron Chernow escreve em seu livro "The House of Morgan" que John Pierpont deixou de ser uma pessoa para tornar-se o símbolo político dos ricos reacionários que se opunham às reformas do capitalismo americano.
Os newdealers estenderam sua influência até os anos 50 e 60, o período da "era dourada" do capitalismo. Os bancos relutaram, como agora relutam, em aceitar a intervenção do Estado no sistema financeiro. O grand monde financeiro americano jamais se conformou com a regulamentação imposta aos bancos e demais instituições não-bancárias pelo Glass-Steagall Act, no início dos anos 30. A partir da década dos 80 do século passado, os republicanos, de Reagan a "Bushs", sem poupar o democrata Clinton, todos cuidaram de restabelecer a preeminência da alta finança nos gabinetes de Washington. O lobby de Wall Street voltou a dominar os plenários do Congresso e os escritórios do Executivo. O Legislativo colaborou decisivamente para desmontar os controles e enfraquecer a capacidade de supervisão e de controle das agências reguladoras.
Senão vejamos: a lei Sarbannes-Oxley foi aprovada a contragosto, depois da sucessão de escândalos corporativos, as peripécias da Enron, Worldcom e outras menos votadas. Considerada excessivamente rigorosa por Henry Paulson, o Secretário do Tesouro dos Estados Unidos, a Sarbannes-Oxley ficou na marca do pênalti até 2007. Paulson argumentava que os rigores excessivos estavam promovendo a saída das operações para mercados de regulamentação mais frouxa. Dura ou não, ela foi impotente para conter a explosão do crédito que levou à exasperação as práticas "criativas" e frequentemente fraudulentas dos mercados. Os criativos inventaram "novidades", manipularam preços de ativos e engambelaram clientes e devedores "sem lenço nem documento".
Madoff e Stanford foram tão abusados e fraudulentos em sua estratégia "Ponzi" quanto os demais protagonistas da farra financeira recente. Falo dos analistas que recomendaram aos clientes ações de suas próprias carteiras ou vendedores de hipotecas que, com o truque da taxas de juros reajustáveis, "pegaram a laço" devedores sem condições de servir as dívidas contraídas.
Sem muito esforço, os senhores da finança conseguiram atrair para sua banda os luminares da academia, com seus modelos tolos e suas desastrosas recomendações de política. Mesmo diante das provas contundentes a respeito da promiscuidade entre desregulamentação e práticas fraudulentas, os gênios da "finança criativa" estão na mídia dispostos a utilizar quaisquer argumentos para desqualificar as críticas aos métodos e procedimentos utilizados no ciclo financeiro recente.
Os mercados receberam o "pacote regulatório" de Obama com nariz torcido. Seriam necessárias páginas e mais páginas para discutir as virtudes, as falhas e as omissões da proposta apresentada ao legislativo. Seja como for, o comportamento do Congresso no passado recente e a fúria dos ideólogos não garantem uma trajetória tranquila para o projeto do presidente Barack Obama.
Luiz Gonzaga de Mello Belluzz, ex-secretário de Política Econômica do Ministério da Fazenda, e professor titular do Instituto de Economia da Unicamp, escreve mensalmente às terças-feiras.
As aventuras de Bernie Madoff e Allen Stanford foram perpetradas sob o patrocínio de formulas manjadas e estimuladas pela mãozinha de autoridades coniventes. Os truques foram aqueles do financiamento Ponzi: aumentar o passivo para sustentar a posse de ativos que produzem um fluxo de rendimentos insuficiente para cobrir os compromissos vincendos.
Hyman Minsky usou a qualificação "Ponzi" para designar uma estrutura de financiamento situada no degrau mais elevado da escala de fragilidade financeira, acima daquela denominada por ele de "estrutura especulativa". Esta última requer o refinanciamento dos encargos financeiros decorrentes da dívida passada para que o devedor possa honrá-los. Um agente "Ponzi" deve aumentar a dívida para cumprir suas obrigações financeiras.
A SEC, Securities and Exchange Commission, foi alertada desde 1999 para as manobras fraudulentas que infestavam os mercados financeiros. Fez vista grossa para os indícios de fraude denunciados por concorrentes de Madoff. Tais indícios foram, então, descartados com a colaboração de funcionários da agência. Agora, Leroy King, administrador da agência reguladora de Antígua, é acusado de "levar bola" para encobrir os malfeitos de Stanford.
Os episódios Madoff e Stanford não são apenas frutos de desvios de caráter de indivíduos, mas o resultado natural da promiscuidade entre governos lenientes, agências capturadas e negócios espertos. Sob o manto protetor do governo permissivo, os negócios deitaram e rolaram. Exploraram as "falhas de regulação" para impor suas razões e interesses, acobertados por um clima de euforia e irresponsabilidade.
Durante a depressão dos anos 30 do Século XX, o povo americano arremeteu sua ira contra a ganância de Wall Street. Franklin Delano Roosevelt - aquele que assumiu o governo do país quando a depressão de 1929 andava brava - tratou de salvar as grandes corporações e os bancos de seus próprios desvarios e preconceitos. O New Deal era visto, naturalmente, com horror por J.P. "Jack" Morgan, o júnior. Em 1935, a multidão de desempregados e empobrecidos vivia dos programas de obras públicas e de assistência social do Estado. Ao desembarcar de uma viagem à Europa, ainda a bordo do Queen Mary, o desastrado herdeiro de John Pierpont proclamou: "Todos os que ganham dinheiro nos Estados Unidos trabalham oito meses por ano para sustentar o governo". O historiador Ron Chernow escreve em seu livro "The House of Morgan" que John Pierpont deixou de ser uma pessoa para tornar-se o símbolo político dos ricos reacionários que se opunham às reformas do capitalismo americano.
Os newdealers estenderam sua influência até os anos 50 e 60, o período da "era dourada" do capitalismo. Os bancos relutaram, como agora relutam, em aceitar a intervenção do Estado no sistema financeiro. O grand monde financeiro americano jamais se conformou com a regulamentação imposta aos bancos e demais instituições não-bancárias pelo Glass-Steagall Act, no início dos anos 30. A partir da década dos 80 do século passado, os republicanos, de Reagan a "Bushs", sem poupar o democrata Clinton, todos cuidaram de restabelecer a preeminência da alta finança nos gabinetes de Washington. O lobby de Wall Street voltou a dominar os plenários do Congresso e os escritórios do Executivo. O Legislativo colaborou decisivamente para desmontar os controles e enfraquecer a capacidade de supervisão e de controle das agências reguladoras.
Senão vejamos: a lei Sarbannes-Oxley foi aprovada a contragosto, depois da sucessão de escândalos corporativos, as peripécias da Enron, Worldcom e outras menos votadas. Considerada excessivamente rigorosa por Henry Paulson, o Secretário do Tesouro dos Estados Unidos, a Sarbannes-Oxley ficou na marca do pênalti até 2007. Paulson argumentava que os rigores excessivos estavam promovendo a saída das operações para mercados de regulamentação mais frouxa. Dura ou não, ela foi impotente para conter a explosão do crédito que levou à exasperação as práticas "criativas" e frequentemente fraudulentas dos mercados. Os criativos inventaram "novidades", manipularam preços de ativos e engambelaram clientes e devedores "sem lenço nem documento".
Madoff e Stanford foram tão abusados e fraudulentos em sua estratégia "Ponzi" quanto os demais protagonistas da farra financeira recente. Falo dos analistas que recomendaram aos clientes ações de suas próprias carteiras ou vendedores de hipotecas que, com o truque da taxas de juros reajustáveis, "pegaram a laço" devedores sem condições de servir as dívidas contraídas.
Sem muito esforço, os senhores da finança conseguiram atrair para sua banda os luminares da academia, com seus modelos tolos e suas desastrosas recomendações de política. Mesmo diante das provas contundentes a respeito da promiscuidade entre desregulamentação e práticas fraudulentas, os gênios da "finança criativa" estão na mídia dispostos a utilizar quaisquer argumentos para desqualificar as críticas aos métodos e procedimentos utilizados no ciclo financeiro recente.
Os mercados receberam o "pacote regulatório" de Obama com nariz torcido. Seriam necessárias páginas e mais páginas para discutir as virtudes, as falhas e as omissões da proposta apresentada ao legislativo. Seja como for, o comportamento do Congresso no passado recente e a fúria dos ideólogos não garantem uma trajetória tranquila para o projeto do presidente Barack Obama.
Luiz Gonzaga de Mello Belluzz, ex-secretário de Política Econômica do Ministério da Fazenda, e professor titular do Instituto de Economia da Unicamp, escreve mensalmente às terças-feiras.
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