Fábio Wanderley Reis
DEU NO VALOR ECONÔMICO
Tem sido ressaltado, com razão, o traço de manifestação "oligárquica" e patrimonialista que se pode apontar nas ações que são objeto das denúncias recentes no Senado, com destaque para o papel do senador José Sarney. Como avaliar esse traço do ponto de vista do que tende a aparecer como crise ética geral do país, na suposição de que ela exista como algo especial no momento, como propõe certa tese de "perda de qualidade" atual em nossa vida política?
Um ângulo pelo qual a questão pode ser tomada é o de como esse caráter oligárquico, ou a própria crise ética de hoje, se relaciona com a ideia de que teríamos, no Brasil, uma "cultura" geral anômica e uma propensão à desatenção para com as normas em diversos planos: a criminalidade e a violência crescentes, com as formas que assumem especialmente nas camadas populares; o ânimo de "esperteza" e as maracutaias próprias dos setores de classe média e mais altos; e até a instabilidade político-institucional que temos experimentado há tempos, evidenciando fragilidade das instituições e vigência problemática do aparato legal pertinente.
Seria a corrupção "oligárquica" simplesmente uma manifestação dessa cultura? Ou caberia antes, de certa forma, inverter a linha de causalidade e ligar o quadro geral de anomia justamente à secular estrutura aristocratizante e elitista que produziria, em primeiro lugar, a disposição oligárquica (e os meios...) em certa parcela da população?
Há outro ângulo que o exame do problema geral sugere: o ângulo dado pela assimetria que a sociologia da política, mesmo da política dos países de maior tradição democrática, há muito indica existir quanto ao papel de diferentes estratos sociais, com graus de informação e envolvimento políticos diversos, na operação das instituições políticas da democracia. A tese, que dados diversos corroboram, é a de que minorias ativas se contrapõem a maiorias apáticas, com as fronteiras do debate político sendo estabelecidas por minorias sensíveis às questões políticas e delimitando espaços dentro dos quais as maiorias seriam amplamente manipuladas - donde a consequência (como propõe David Elkins com base em dados canadenses, por exemplo) de que o problema da estabilidade democrática dependeria da agregação que se venha a realizar entre aquelas minorias, e não do grau de apoio às instituições na coletividade em geral. A questão é de se haveria uma assimetria de efeitos equivalentes também no que se refere especificamente ao aspecto ético: o decisivo é o que vem "de cima"?
Falei aqui há pouco do convencionalismo na adesão às normas da coletividade, em contraste com uma postura liberal mais exigente e atenta à autonomia dos cidadãos e a sua capacidade de obter certo distanciamento em relação às normas socialmente dadas ou impostas. Na ótica de agora, o problema está em que o convencionalismo pode expressar justamente a assimetria e redundar na conformação moral (eventualmente na subjugação moral) de alguns pelos outros: será que o ethos "oligárquico" é o ethos há muito dominante e difuso, na verdade? Quantos não terão considerado simplesmente familiar, em vez de impróprio ou chocante, o revelado na fita em que a neta de Sarney aciona com desenvoltura os parentes para obter por meios expeditos uma "colocação" no Senado, como se dizia antigamente, para o namorado? Não é de hoje que Hélio Jaguaribe, por exemplo, nos fala do nosso estado cartorial, inflado artificialmente como instrumento, entre outras coisas, da política de clientelas - cujos mecanismos penetrantes operam também bem abaixo do nível de comando da máquina dos poderes Executivo, Legislativo ou Judiciário.
Naturalmente, a violência no nível popular é a negação desse convencionalismo conformista de raiz oligárquica. Na medida em que se difunde e adquire ela própria certa feição de "cultura" nova, ela tenderá possivelmente a aparecer cada vez mais como ameaça à "elite" - lembrem-se os "dias de periferia" a que teve de submeter-se a classe média paulistana, há algum tempo, pela ação violenta de comandos criminosos. E essa difusão, dada a natureza do problema e a eficácia potencial da ação de poucos, não tem que significar que o "povão" como tal se torne violento ou aprove a violência - mesmo se, infelizmente, isso de fato ocorre em ampla medida, como mostram os dados sobre o desapreço pelos direitos civis, forte nos estratos populares justamente como outra manifestação perversa de convencionalismo em condições de desigualdade e assimetria, nas quais os supostos associados à democracia na própria "elite" excluem a adesão à visão de direitos civis assegurados igualitariamente para todos.
Do ponto de vista de "que fazer", não há como lidar com a afirmação da dimensão violenta de nossa cultura negativa sem, em perspectiva de prazo mais longo, contemplar a execução eficaz de políticas social-democráticas - e, em perspectiva de curto prazo, o recurso necessário também à máquina de repressão do Estado, oxalá tornada a um tempo mais eficiente e democrática em sua ação. Quanto à face convencional-oligárquica da crise ética, conjunturalmente talvez mais visível agora mas de raízes talvez perenes, há quando nada uma espécie de contraface positiva das desigualdades e assimetrias sociais com que se vincula: pela própria lógica da operação dessas assimetrias, provavelmente basta, para que as ações que se consiga empreender junto à aparelhagem legislativa e fiscalizadora do Estado venham a ter efeitos gerais e profundos, que elas se dirijam com firmeza aos malfeitos da "elite". Claro, há o paradoxo de que em princípio é a própria elite, como se sugeriu acima, a conformar os rumos da política e da administração. Estamos vendo, porém, que de repente é possível por um Sarney na berlinda. Ou um Daniel Dantas.
Fábio Wanderley Reis é cientista político e professor emérito da Universidade Federal de Minas Gerais. Escreve às segundas-feiras
DEU NO VALOR ECONÔMICO
Tem sido ressaltado, com razão, o traço de manifestação "oligárquica" e patrimonialista que se pode apontar nas ações que são objeto das denúncias recentes no Senado, com destaque para o papel do senador José Sarney. Como avaliar esse traço do ponto de vista do que tende a aparecer como crise ética geral do país, na suposição de que ela exista como algo especial no momento, como propõe certa tese de "perda de qualidade" atual em nossa vida política?
Um ângulo pelo qual a questão pode ser tomada é o de como esse caráter oligárquico, ou a própria crise ética de hoje, se relaciona com a ideia de que teríamos, no Brasil, uma "cultura" geral anômica e uma propensão à desatenção para com as normas em diversos planos: a criminalidade e a violência crescentes, com as formas que assumem especialmente nas camadas populares; o ânimo de "esperteza" e as maracutaias próprias dos setores de classe média e mais altos; e até a instabilidade político-institucional que temos experimentado há tempos, evidenciando fragilidade das instituições e vigência problemática do aparato legal pertinente.
Seria a corrupção "oligárquica" simplesmente uma manifestação dessa cultura? Ou caberia antes, de certa forma, inverter a linha de causalidade e ligar o quadro geral de anomia justamente à secular estrutura aristocratizante e elitista que produziria, em primeiro lugar, a disposição oligárquica (e os meios...) em certa parcela da população?
Há outro ângulo que o exame do problema geral sugere: o ângulo dado pela assimetria que a sociologia da política, mesmo da política dos países de maior tradição democrática, há muito indica existir quanto ao papel de diferentes estratos sociais, com graus de informação e envolvimento políticos diversos, na operação das instituições políticas da democracia. A tese, que dados diversos corroboram, é a de que minorias ativas se contrapõem a maiorias apáticas, com as fronteiras do debate político sendo estabelecidas por minorias sensíveis às questões políticas e delimitando espaços dentro dos quais as maiorias seriam amplamente manipuladas - donde a consequência (como propõe David Elkins com base em dados canadenses, por exemplo) de que o problema da estabilidade democrática dependeria da agregação que se venha a realizar entre aquelas minorias, e não do grau de apoio às instituições na coletividade em geral. A questão é de se haveria uma assimetria de efeitos equivalentes também no que se refere especificamente ao aspecto ético: o decisivo é o que vem "de cima"?
Falei aqui há pouco do convencionalismo na adesão às normas da coletividade, em contraste com uma postura liberal mais exigente e atenta à autonomia dos cidadãos e a sua capacidade de obter certo distanciamento em relação às normas socialmente dadas ou impostas. Na ótica de agora, o problema está em que o convencionalismo pode expressar justamente a assimetria e redundar na conformação moral (eventualmente na subjugação moral) de alguns pelos outros: será que o ethos "oligárquico" é o ethos há muito dominante e difuso, na verdade? Quantos não terão considerado simplesmente familiar, em vez de impróprio ou chocante, o revelado na fita em que a neta de Sarney aciona com desenvoltura os parentes para obter por meios expeditos uma "colocação" no Senado, como se dizia antigamente, para o namorado? Não é de hoje que Hélio Jaguaribe, por exemplo, nos fala do nosso estado cartorial, inflado artificialmente como instrumento, entre outras coisas, da política de clientelas - cujos mecanismos penetrantes operam também bem abaixo do nível de comando da máquina dos poderes Executivo, Legislativo ou Judiciário.
Naturalmente, a violência no nível popular é a negação desse convencionalismo conformista de raiz oligárquica. Na medida em que se difunde e adquire ela própria certa feição de "cultura" nova, ela tenderá possivelmente a aparecer cada vez mais como ameaça à "elite" - lembrem-se os "dias de periferia" a que teve de submeter-se a classe média paulistana, há algum tempo, pela ação violenta de comandos criminosos. E essa difusão, dada a natureza do problema e a eficácia potencial da ação de poucos, não tem que significar que o "povão" como tal se torne violento ou aprove a violência - mesmo se, infelizmente, isso de fato ocorre em ampla medida, como mostram os dados sobre o desapreço pelos direitos civis, forte nos estratos populares justamente como outra manifestação perversa de convencionalismo em condições de desigualdade e assimetria, nas quais os supostos associados à democracia na própria "elite" excluem a adesão à visão de direitos civis assegurados igualitariamente para todos.
Do ponto de vista de "que fazer", não há como lidar com a afirmação da dimensão violenta de nossa cultura negativa sem, em perspectiva de prazo mais longo, contemplar a execução eficaz de políticas social-democráticas - e, em perspectiva de curto prazo, o recurso necessário também à máquina de repressão do Estado, oxalá tornada a um tempo mais eficiente e democrática em sua ação. Quanto à face convencional-oligárquica da crise ética, conjunturalmente talvez mais visível agora mas de raízes talvez perenes, há quando nada uma espécie de contraface positiva das desigualdades e assimetrias sociais com que se vincula: pela própria lógica da operação dessas assimetrias, provavelmente basta, para que as ações que se consiga empreender junto à aparelhagem legislativa e fiscalizadora do Estado venham a ter efeitos gerais e profundos, que elas se dirijam com firmeza aos malfeitos da "elite". Claro, há o paradoxo de que em princípio é a própria elite, como se sugeriu acima, a conformar os rumos da política e da administração. Estamos vendo, porém, que de repente é possível por um Sarney na berlinda. Ou um Daniel Dantas.
Fábio Wanderley Reis é cientista político e professor emérito da Universidade Federal de Minas Gerais. Escreve às segundas-feiras
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