Para assentada, Bolsa Família é cala-boca para acomodar povo no campo e nas cidades
MARILENA: "Esse modelo de reforma agrária tem que ser reformulado, porque o que está aí não serve para nós nem vai fazer bem ao país"
Marilena Ferreira, de 44 anos, dedicou dez anos de sua vida à luta por um pedaço de terra, dividindo acampamentos com 299 famílias no Engenho Prado, região canavieira de Pernambuco. A ocupação foi marcada por conflitos. Das 300 famílias, só 153 foram assentadas. Algumas sobrevivem com o Bolsa Família, mas Marilena se recusa a receber esse auxílio, que chama de migalha. Para ela, benefícios como esse não dignificam o homem do campo, a quem, em sua opinião, o governo "deve dar condições de trabalhar e não esmola".
Letícia Lins
Por que a senhora diz que essa não é a reforma agrária que sonhou?
MARILENA FERREIRA: Porque não é mesmo. Quando a gente fala em reforma agrária, pensa em fartura. Mas o que a gente vê é outra coisa: "faltura". Falta tudo: crédito, habitação, casa digna, escola, posto de saúde, água, estrada. Se a gente tivesse incentivo, como os usineiros, a coisa seria muito diferente. Quase ninguém teve financiamento por aqui, mesmo assim está plantando. Somos nós que garantimos a feira do município vizinho com nossos produtos. Acho que os assentados podem ser considerados heróis por isso.
Geralmente, as pessoas em dificuldade elogiam e até disputam o dinheiro do Bolsa Família. Por que a senhora o recusa?
MARILENA: O Bolsa Família é um cala-boca que o governo arranjou para acomodar o povo da cidade e do campo. Em vez de dar auxílio de dinheiro, o governo deveria nos dar incentivo para trabalhar. Disso tenho certeza. Se não deixassem os assentados ao deus-dará, sairíamos da "faltura" para a fartura. Infelizmente, o povo do campo é muito esquecido. Mas nós somos fortes o suficiente para nos juntarmos e irmos à rua. Ninguém tem que se intimidar porque recebe cesta básica ou outra ajuda do governo. A meu ver, Bolsa Família é uma vergonha. O que a gente precisa é de condições para trabalhar, porque o trabalhador do campo gosta mesmo é de viver do suor do seu rosto.
Por que a senhora acha que os ex-sem terra são esquecidos?
MARILENA: Você pode reparar: até a ciência aqui é voltada para o agronegócio. Nós temos tido muitos prejuízos com a macaxeira (aipim). Não sei se devido a algum fungo ou a problemas no solo. A macaxeira fica imprópria para o consumo, sem valor no comércio. Fomos a uma unidade de pesquisa no vizinho município de Carpina, da Universidade Federal Rural de Pernambuco. Os pesquisadores disseram que só trabalham com cana.
Apesar das dificuldades, a senhora está vivendo do seu lote e se recusa a receber de programas sociais como o Bolsa Família. O que falta para a tão sonhada fartura?
MARILENA: É o pequeno que produz mais de 80% da mandioca e 70% do feijão do Brasil, mas o governo não se lembra disso, e aqui, na Zona da Mata, está até incentivando os assentados a plantar cana, que só dá dinheiro para o usineiro. O Engenho Prado, onde estamos, é rico em água, mas essa água a gente não pode usar porque ficou em terras da usina. Se pudesse, ia aumentar a nossa renda, criando camarão e peixe. Aqui, de fato, falta água até para beber. Esse modelo de reforma agrária tem que ser reformulado, porque o que está aí não serve para nós nem vai fazer bem ao país.
FONTE: O GLOBO
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