Trabalhadores sobreviventes da invasão eletrônica não incluem em suas demandas a degradação sofrida com a concorrência da máquina
As manifestações coletivas que estão ocorrendo nestes dias, como as greves dos bancários, a greve dos postalistas e as marchas contra a corrupção, contêm evidências de mudanças e impasses no clamor social. As passeatas contra a corrupção, mesmo com a relativamente pouca participação popular, confirmam o advento de um novo sujeito da ação coletiva, representado pelas redes de relacionamentos. A mobilização de multidões pode ser iniciada até por um adolescente solitário a partir do computador que com ele divide o quarto de dormir. Já não depende de assembleias, de grandes reuniões ou de personalidades carismáticas. São agora assembleias invisíveis, constituídas por numerosos indivíduos sem cara. São assembleias permanentes, que debatem, questionam e mobilizam dia e noite.
O que se vê nas ruas não mede o extenso desdobramento das inquietações que fervilham no silêncio de recintos privados, quebrado apenas pelo ruído da digitação. Boa parte desse grito da rua foi menos para questionar o imobilismo dos que lá não estavam e sim os silenciosos, os indiferentes. Não foi um clamor público, mas um clamor pelo público, uma tentativa de acordar os que foram anestesiados ao longo dos últimos tempos por diferentes fatores de conformismo.
Mesmo os que estão despertos, como os que se manifestaram ou vêm se manifestando nas greves dos bancários e a dos postalistas, estão metidos numa teia de problemas que os tolhe mais do que lhes dá vigor. Ao punirem, ainda que involuntariamente, os que deles dependem nos serviços que prestam, empobrecem suas reivindicações. Não incluíram na pauta de suas demandas as injustiças que vitimam também os usuários de seus serviços, nos Correios e nos bancos. Teriam mudado radicalmente o eixo de sua negociação, superado os limites de seu corporativismo redutivo e conseguido um aliado poderoso se se reconhecessem naqueles a que servem. Suas demandas ganhariam a dimensão de demandas pela qualidade de vida de todos e não só pelas carências de alguns.
Esse alheamento reduz a concepção das necessidades sociais a meras necessidades trabalhistas, de grupos determinados, como se eles as tivessem e os demais, não. Com isso abandonam um extenso terreno de mudanças sociais possíveis em troca apenas de retornos pecuniários, provavelmente muito desproporcionais aos ganhos das empresas em que trabalham. Sem contar a erosão da necessidade dos serviços que prestam, sobre a qual não têm nenhum controle. No caso dos Correios, a correspondência corriqueira e cotidiana já não depende deles, substituídos que foram pelo telefone e pela internet. No fundo, cada um tem um correio próprio ou alternativo. Isso não torna irrelevantes as funções dos Correios, multiplicadas pela importância que vem tendo como meio de venda e transporte de mercadorias ou como agência bancária. A greve revelou, de lado a lado, um perigoso desdém pelos usuários. Penso, particularmente, naqueles que, tendo pago as caríssimas tarifas do Sedex, não receberam no prazo suas encomendas nem foram considerados nas negociações ou na decisão do tribunal que pôs fim à greve: quem e quando vai devolver-lhes o dinheiro que pagaram por um serviço que não receberam? Não seria isso estelionato?
No caso da greve dos bancários, há que considerar que boa parte dos serviços dos bancos já não precisa da presença do cliente nem da existência de um funcionário fisicamente presente atrás do caixa ou de um balcão. Podem ser feitos pela internet ou no caixa eletrônico. De certo modo, a greve fortaleceu a posição dos bancos, disponíveis apenas para o irrisório reajuste real de salários que aceitaram conceder a seus empregados.
O enfraquecimento das demandas dos trabalhadores de serviços como os postais e os bancários não se deve principalmente à robotização, mas ao fato de que os sobreviventes humanos da invasão eletrônica não descobriram as fragilidades morais da prestação de serviços como esses. Limitados aos convencionais direitos trabalhistas, reduzidos ao econômico e ao salarial, não conseguem incluir na pauta de suas demandas a condição humana e sua disfarçada degradação pela concorrência da máquina. Nem conseguem definir uma pauta de demandas relativas às singularidades da diversidade humana da força de trabalho, como as da mulher, as do jovem, as do idoso, as do negro, as do diferente, as do portador de deficiência e outros atributos que os sujeitam a vulnerabilidades específicas. A categoria genérica de trabalhador, uma das grandes mistificações políticas das últimas décadas, perdeu-se no tempo. Tornou-se uma abstração de discurso, que não sofre as dores das necessidades radicais, as que não podem ser atendidas sem mudanças e transformações.
José de Souza Martins, sociólogo, professor emérito da USP, é autor de A política do Brasil Lúmpen, Místico (Contexto 2011).
FONTE: ALIÁS/O ESTADO DE S. PAULO
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