O documentário "Tancredo, a travessia", de Silvio Tendler, que será lançado oficialmente no final do mês, complementa a trilogia que teve início com "Jango" e "Anos JK" no relato da história recente do país, mas se supera na captura da alma conciliadora de Tancredo Neves e na revelação da sua matreirice política que estava sempre a serviço da democracia, como salienta o ex-presidente Fernando Henrique em seu depoimento.
Definitivamente, Tancredo não era um político banal e eu mesmo tive um exemplo marcante dessa sua argúcia, que me ensinou muito no trato das coisas políticas.
Dias depois do atentado do Riocentro, ocorrido em 1º de maio de 1981, eu, que escrevia a coluna da página 2 do GLOBO chamada "Política Hoje Amanhã" e passava a semana em Brasília, no dia 4, peguei o voo pela manhã, tendo como companhia o senador Tancredo Neves, que vinha de um encontro com o então governador do Rio, Chagas Freitas.
Fomos conversando sobre a gravidade dos acontecimentos até que, como quem não quer nada, Tancredo comentou: "Homem corajoso esse Chagas. O relatório oficial da polícia confirma que havia mais duas bombas no Puma".
Dito isso, mudou o rumo da conversa com a autoridade de quem não queria se aprofundar no assunto.
A informação era simplesmente bombástica, sem trocadilho: se no Puma dirigido pelo capitão Wilson Machado havia outras bombas, ficava demonstrado que ele e o sargento Guilherme Pereira do Rosário eram os responsáveis pelo atentado, e não vítimas, como a versão oficial alegava.
Telefonei para a redação do GLOBO no Rio dando a notícia para o Milton Coelho da Graça, que era o editor-chefe da época, e ele, empolgado, disse-me que fosse para o Congresso tentar tirar mais informações de Tancredo.
No seu gabinete no Senado, Tancredo estava cercado de pessoas, pois o ambiente político estava bastante conturbado.
Consegui puxá-lo para um canto e pedi mais informações "sobre as duas bombas encontradas no Puma".
Tancredo me olhou sério, colocou sua mão em meu ombro e perguntou, como se nunca houvéssemos conversado sobre o assunto: "Você também ouviu falar disso, meu filho?".
A notícia foi manchete do GLOBO do dia 5 de maio.
No documentário sobre sua vida e seu calvário de 38 dias, há diversos episódios que contam bem essa capacidade que Tancredo tinha de fazer política com gestos e poucas palavras. Mas certeiras.
Quando Jango faz seu longo retorno da China, depois da renúncia de Jânio à Presidência da República, enquanto no Brasil se negociava sua posse com a resistência de setores militares, Tancredo vai ao Uruguai, última escala do retorno, conversar com o vice-presidente.
O PTB, partido de Jango, exige que um seu representante vá participar da conversa. Só que, quando Wilson Fadul chega ao aeroporto, o avião de Tancredo já havia decolado.
Digno representante do PSD mineiro, Tancredo queria conversar a sós com Jango. E conseguiu convencê-lo a aceitar o parlamentarismo, cuja alternativa seriam "as mãos sujas de sangue".
Anos mais tarde, quando já negociavam o apoio da Frente Liberal à sua candidatura à Presidência da República no Colégio Eleitoral, Tancredo foi confrontado com uma exigência do vice-presidente Aureliano Chaves, seu adversário político da UDN mineira.
Aureliano disse que só apoiaria Tancredo se ele lhe escrevesse uma carta aceitando vários pontos que colocava como inegociáveis.
Para espanto dos dissidentes do PDS que foram lhe levar as exigências, Tancredo aquiesceu logo em escrever a carta.
Mas também impôs sua condição: só a escreveria se recebesse primeiro a resposta de Aureliano dando seu apoio. E assim foi feito.
O próprio Tancredo diz a certa altura do documentário que "mineiro radical" não existe, e explica que no dicionário, Tancredo quer dizer "conciliador", "parcimonioso".
Mas nunca deixou de assumir atitudes firmes, quando precisava. Segundo ele, um político "não pode cometer temeridades, mas tem o dever de correr riscos".
E ele correu: na reunião ministerial do Palácio do Catete, pouco antes do suicídio de Vargas, defendeu a resistência.
Discursou nos enterros tanto de Getúlio quanto de Jango; acompanhou Juscelino quando o ex-presidente, cassado, teve que depor em quartéis do Exército.
Criou o PP para marcar o caráter conciliador de sua política, mas retornou ao PMDB quando o governo militar ditou novas regras eleitorais que prejudicavam a oposição dividida.
Foi o único do PSD a não votar em Castello Branco para presidente, ele que o havia promovido a general a pedido de uma parente quando era primeiro-ministro, e por isso não foi cassado depois do golpe militar.
O documentário deixa bem claro, através principalmente de depoimentos de seu neto, o hoje senador Aécio Neves, a preocupação de Tancredo com a reação dos militares à posse de Sarney como presidente.
Por isso adiou até quando pode uma operação, para tentar chegar ao dia da posse que, para ele, seria "a garantia da transição".
A tal ponto estava obcecado com isso que na véspera da posse, já não podendo mais se levantar, recebeu de seu futuro Chefe do Gabinete Civil vários atos para assinar, e os assinou na cama, afirmando: "Isso é a garantia de que não vai haver retrocessos".
E estava certo, pois no dia seguinte, quando o ministro do Exército do governo Figueiredo, General Walter Pires, tentou impedir a posse de Sarney, foi comunicado por Leitão de Abreu de que ele já não era mais ministro.
O Diário Oficial daquele dia já saíra com todos os atos de nomeação do novo governo, que não foi comandado por Tancredo, mas por Sarney.
Aécio Neves diz que as últimas palavras que ouviu do avô e guia político foi: "Eu não merecia isso".
FONTE: O GLOBO
Nenhum comentário:
Postar um comentário