No fim de sua vida, poucos anos atrás, o crítico Edward Said consolidou a noção de um “estilo tardio”, tomada emprestada do filósofo Adorno. Ela tratava de Beethoven, Thomas Mann, Kaváfis, entre outros. Esse estilo não designava a serenidade de obras da velhice, nem o coroamento de um esforço progressivo ou a segurança de quem já traz consigo uma trajetória longa e sólida. Pelo contrário, Said destacava em tal estilo o questionamento da tradição cultural herdada e da própria obra aí em jogo.
Lendo os primeiros ensaios escritos por Walter Benjamin, um dos mais férteis pensadores da cultura do século XX, entramos em contato com o que seria possível chamar, agora, de estilo juvenil. Do mesmo modo que tardio não é ponto de culminação de uma evolução, juvenil não é, aqui, imaturidade. É criação de um pensamento que, embora possa apontar sim desdobramentos futuros, possui sua integridade própria. Desponta já em tal estilo todo o gênio benjaminiano, sua potência crítica renovadora e, por vezes, difícil.
Podemos testemunhar o estilo juvenil de Benjamin em “Escritos sobre mito e linguagem”. Para quem não conhece toda a obra do pensador alemão, os textos do volume vão soar surpreendentes. Já para quem conhece, a coletânea, que traz alguns ensaios capitais inéditos no país, será motivo de alívio, pois finalmente parte decisiva de tal obra — produzida entre 1915 e 1921 — torna-se acessível por aqui. Isso pode ajudar a consertar uma distorção nos estudos sobre Benjamin no Brasil, que privilegiam em geral os textos escritos a partir do fim da década de 1920, o que prejudica uma visão acurada de sua envergadura filosófica.
O jovem Benjamin era um pensador metafísico. Não encontramos, aqui, a prefiguração daquele conhecido marxismo tardio de sua obra, e sim a explicação para o caráter heterodoxo que todos percebem em tal marxismo. Por mais que já abandone a concepção tradicionalmente burguesa de linguagem, ele não o faz em prol da crítica materialista da ideologia das classes dominantes. Benjamin busca uma linguagem expressiva mais originária, que chama de mágica. Nela, o homem, graças a seu poder de nomeação, salva as coisas de sua linguagem muda.
Ideia da linguagem como meio de reflexão, e não de comunicação
Nessa época, Benjamin estava envolvido com o romantismo de Friedrich Schlegel e Novalis, como provam sua correspondência e sua tese de doutorado de 1919, dedicada ao conceito de crítica de arte desses autores. Daí surge, junto com a influência do judaísmo, sua ideia da linguagem como meio de reflexão no qual o homem sempre se move, e não como meio de comunicação, instrumento a serviço da troca de informações. Tal linguagem quebra com o uso cotidiano das palavras, no qual elas são tomadas em seus significados fixados no mundo social, e dá então a elas um traço fundador, um frescor criador essencial.
Filosoficamente, essa tese adianta já a posição fundamental que Benjamin adotaria depois sobre a verdade, que não se comunicaria através da linguagem, em sentido pragmático. É dentro da linguagem e como linguagem que a verdade se expressa. Verdade e linguagem estão implicadas. A consequência, como Benjamin só formulará depois, é que cabe ao texto filosófico confrontar-se, a cada vez, com a questão da sua linguagem, ou seja, da sua forma literária.
Essa teoria da linguagem tem efeitos sobre a concepção de tradução, pois, assim como aquela, esta não é um instrumento, no caso para tornar acessível às pessoas o que é escrito em uma língua estrangeira. Como a obra de arte original, diz Benjamin, a tradução tampouco tem em vista o público, e sim uma linguagem mais pura, intensa. O que a tradução busca, através da afinidade entre as línguas, é uma linguagem originária.
Tais teorias de Benjamin encontram-se nos ensaios “Sobre a linguagem em geral e sobre a linguagem do homem” e “A tarefa do tradutor”. Mas o volume agora traduzido, com exímio cuidado editorial, traz ainda ensaios sobre arte (acerca da literatura de Dostoiévski, da poesia de Hölderlin e de pintura) e ética, nos quais está o repúdio de Benjamin às fundamentações míticas da realidade (“Destino e caráter” e “Para uma crítica da violência”).
Os ensaios do jovem Benjamin são valiosos para descobrir novas dimensões da obra tardia, mas sobretudo têm vida própria. Menos materialista e mais romântico, o estilo juvenil de Benjamin é radicalmente original, exigindo, através de uma crítica do mito, o alargamento da experiência do homem com a História, a linguagem, a arte, a religião e a política.
Pedro Duarte é professor adjunto de Filosofia da UniRio
Escritos sobre mito e linguagem , de Walter Benjamin. Organização, apresentação e notas de Jeanne Marie Gagnebin. Tradução de Susana Kampff Lages e e Ernani Chaves. Editora 34, 176 páginas. R$ 37
FONTE: PROSA & VERSO / O GLOBO
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