terça-feira, 6 de março de 2012

ENTREVISTA. Carlos Fico: 'Militares erraram, mas é preciso serenidade'

Para historiador, governo exagerou ao punir oficiais da reserva, pois assusta quem pensa ajudar Comissão da Verdade

Chico Otavio

O historiador Carlos Fico, ex-integrante do projeto Memórias Reveladas e um dos mais ativos defensores da abertura dos arquivos da ditadura, disse que o governo exagerou na dose ao determinar punição de militares da reserva. Para ele, a crise é um mau começo para a Comissão da Verdade, pois assusta e afugenta os que pensavam em contribuir com informações e documentos. Para ele, o ministro da Defesa, Celso Amorim, deveria ter entregado o problema aos comandantes militares. Fico não quer participar da comissão. Ele teme que o resultado leve a uma "verdade histórica" única, a exemplo do que ocorreu com outros países que tiveram o mesmo processo, enquanto "um historiador deve trabalhar com o conceito de que não existe uma verdade absoluta".

O GLOBO: A Comissão da Verdade conseguirá atingir o seu objetivo: a verdade?

CARLOS FICO: A expressão não pode ser entendida como estabelecimento da verdade oficial. O desafio da comissão é não cair em uma leitura unívoca. Comissões da Verdade em todo o mundo acabaram produzindo um relatório, associado a seus membros, que vira a narrativa oficial. Para os historiadores, o conceito de verdade não é absoluto.

O senhor, como historiador com extensa produção acadêmica sobre o regime, tem vontade de atuar na comissão?

FICO: A presença de um historiador na Comissão da Verdade é um problema. A Associação Nacional dos Historiadores acha que devemos participar, mas eu discordo. Não compete ao historiador entrar. Isso por conta da definição teórica do que é verdade para o historiador. Os historiadores podem, no máximo, colaborar com informações. Além do mais, na História do tempo presente, não podemos nos esquecer da dimensão ético-moral. A atrocidade cometida no período é indiscutível. Isso introduz um viés: não se pode ter uma atitude objetiva que desconheça os assassinatos e a tortura. Não se pode humanizar o algoz.

E quanto às críticas que minimizam a dimensão da ditadura no Brasil, sustentando que ela foi mais branda do que a dos países vizinhos que passaram pelo mesmo processo?

FICO: Muitos dizem que a ditadura brasileira não foi violenta. Eles não têm a menor ideia da quantidade de prejuízo que ela causou. São conhecidos os casos de mortes, desaparecimentos e tortura. Mas a ditadura militar atingiu a vida de muitas pessoas. Quando alguém estava para ser nomeado, por exemplo, o SNI mandava uma nota e dizia que aquele cidadão era isso e aquilo. Essa pessoa acabava rejeitada sem jamais conhecer as razões. Há casos em que os filhos de casais presos foram criados por outras pessoas por anos e anos. A questão é que, além da violência, houve uma interferência brutal da comunidade de informações no cotidiano das pessoas.

Qual seria o melhor começo para a comissão?

FICO: Se a Comissão da Verdade for bem conduzida, ficaria os seis primeiros meses trabalhando com a documentação. Ela é capaz de revelar o que não se sabe: essa ampla e violenta interferência na vida cotidiana, que é desconhecida e importante. Há muitos documentos. O grosso desse material é constituído do fundo do SNI, do fundo da CGI e das divisões de Segurança e Informação. A comissão tem possibilidade de requerer documentos.

Existe risco de crise institucional?

FICO: Existe, por um motivo: os militares erraram, mas o governo precisa ter serenidade. O manifesto interclubes foi uma espécie de provocação. Eles expressaram insatisfação num tom forte. O governo conseguiu uma vitória política: obrigar o Clube Militar a retirar o manifesto. Os militares da reserva têm direito a se manifestar. Mas a nota que saiu depois atinge a hierarquia e a disciplina. Diz que o Congresso pratica revanchismo explícito, é inconsequente. Isso, os militares da reserva não poderiam fazer. Contraria o estatuto militar. Mas, se o governo punir, um deles vai recorrer da decisão. Pode virar um imbróglio jurídico. O STM teria de se manifestar. O problema seria evitado se o governo, após a retirada do manifesto e a nota de ataque ao Congresso, pedisse aos comandantes militares que tomassem providências. Agora, ou pune e vira crise ou não pune, e desautoriza o ministro da Defesa (Celso Amorim). Transformar a questão em debate jurídico é receita certa para aumentar a crise.

Os clubes militares têm influência na tropa?

FICO: Até o Golpe de 64, os clubes militares tinham uma atuação politizada. Depois, entraram num longo período de recesso. Mas, na segunda metade dos anos 1990, voltaram a entrar com tudo nas questões políticas. Até então, porém, nunca houve reação do governo. A reação é novidade. É preciso conduzir esse assunto com serenidade na relação com os militares.

O senhor espera que a Comissão da Verdade abra caminho para punição de torturadores?

FICO: A Lei de 1979 também inclui a autoanistia. A ministra Rosário tem razão. Pode ser que o resultado do levantamento da comissão provoque uma mobilização capaz de levar o Congresso a rever a anistia. É uma hipótese bastante remota. Historicamente a sociedade tem preferido a conciliação. Não creio que haja uma mobilização capaz de levar o congresso a mudar a Lei da Anistia. Mas o debate em si já desencoraja os que pensavam em contribuir. Falar em punição agora não é a melhor estratégia para trazer o maior número de depoimentos à comissão. A crise não é boa para o trabalho. Há uma insatisfação grande entre os militares da reserva. Tem gente que atuou na repressão secundariamente, como datilógrafos, que poderia ser ouvida. Esses também foram perdoados.

FONTE: O GLOBO

Nenhum comentário: