Keynes dizia que "os homens práticos são sempre escravos de um economista defunto". A parêmia revela que o autor da Teoria Geral tinha fé no poder das ideias e depositava esperanças na persuasão e no convencimento. É de se temer, porém, que ressuscitado, o velho Keynes, ao tomar conhecimento do destino de sua obra, implorasse por uma volta imediata aos confortos da eternidade.
A frase do grande homem público me veio à lembrança, despertada pelos debates que travam os candidatos republicanos envolvidos na disputa das primárias nos Estados Unidos. Todos eles compram pelo valor de face a vulgata dos detratores de Keynes a respeito dos déficits, das dívidas e de seu financiamento. Se algum dia tivessem manuseado a literatura de melhor qualidade ficariam sabendo que o teórico da economia monetária jamais poderia receitar déficits a torto e a direito. Típica dos extremistas da direita americana, essa visão das políticas econômicas keynesianas combina a banalidade do mal com o mal da banalidade.
As invectivas e lambanças de Romney, Santorum & cia. suscitaram outras lembranças. Gillles Deleuze, o filósofo, dizia que a "filosofia (e eu acrescentaria a economia política) é inseparável da cólera contra a época, mas não é uma potência. As religiões, os Estados, o capitalismo, a dita ciência econômica, o direito, a opinião e a mídia são potências, mas não a filosofia. Não sendo potências, a filosofia e a economia política não podem empreender uma batalha contra as potências: em compensação travam com elas uma guerra sem batalhas, uma guerra de guerrilha. Não podem falar com elas, nada têm a lhes dizer, nada a comunicar, apenas mantêm conversações".
Se tivessem manuseado literatura de qualidade, saberiam que Keynes jamais receitou déficits a torto e a direito
Apesar de suas formidáveis intuições e descobrimentos, Keynes deixou-se carregar pelas ilusões do poder das ideias e do convencimento, imaginando ser possível, com tais armas, travar batalha contra as potências. Mas, na realidade, nos tempos da sociedade de massas e do aparato de comunicação abrigado na grande mídia, as potências estão desinteressadas em sufocar a crítica ou as ideias desviantes. Não se ocupam mais dessa banalidade. Elas se dedicam a algo muito mais importante: fabricam os espaços da literatura, do econômico, do político, completamente reacionários, pré-moldados e massacrantes. "É bem pior que uma censura", continua Deleuze, "pois a censura provoca efervecências subterrâneas, mas as potências querem tornar isso impossível".
Isto acontece em uma sociedade encantada pela inversão de significados e pelo ilusionismo da liberdade de escolha do indivíduo-consumidor. Não se trata de uma mistificação vulgar, da intenção de enganar, mas de uma ilusão necessária, em que a manipulação, a construção da notícia, a censura da opinião alheia e a intimidação sistemática devem aparecer aos olhos do público consumidor como legítimo exercício dos direitos de opinar e de informar.
Nas análises dos comentaristas e palpiteiros de todo o gênero que se apresentam na Fox americana, os sofrimentos dos gregos ou os protestos de grandes massas na Catalunha são ridicularizados e contrapostos às incontornáveis exigências da "verdadeira ciência econômica", como se existisse tal coisa. O barulho se concentra naquele episódio momentâneo, até que a notícia perca o seu impacto. As relações de poder e ideológicas que permitiram a eclosão da crise europeia são suprimidas e as manifestações de protesto transformadas erupções da "perversidade humana". O deslocamento da nossa compreensão dos fenômenos sociais, políticos e econômicos chega à exasperação. Inspiradas nos mandamentos do espetáculo e da intimidação, os estardalhaços dos comentaristas da Fox cuidam de ocultar, sempre, o problema de fundo, a raiz do fenômeno. O que nos oferecem é uma sucessão de superficialidades, imagens defiguradas e ilegíveis. O propósito não é apenas suscitar no espectador a raiva, a revolta, mas reduzi-lo à impotência crítica e imobilizá-lo nas cadeias do imediato.
Nos espaços fabricados pelas potências não é possível manter conversações porque neles a norma não é a argumentação, mas o exercício da animosidade sob todos os seus disfarces, a prática desbragada da agressividade a propósito de tudo e de todos, presentes ou ausentes, amigos ou inimigos, Não se trata de compreender o outro, mas de vigiá-lo. "Estranho ideal policialesco, o de ser a má-consciência de alguém", diz Deleuze.
Nas redes sociais do Tea Party, os republicanos radicais transformam a opinião em potência, abandonam a crítica pela vigilância. A vigilância exige convicções esféricas, maciças, impenetráveis, perfeitas. A vigilância deve adquirir aquela solidez própria da turba enfurecida, disposta ao linchamento. Gritam implacáveis: "Estes malditos keynesianos, promotores de déficits, vamos pegá-los. Vamos pegá-los porque os déficits são maus. Abaixo os déficits, morte aos keynesianos". Só um insensato, em meio à perseguição, tentaria explicar alguma coisa a este bando enlouquecido.
Luiz Gonzaga Belluzzo, ex-secretário de Política Econômica do Ministério da Fazenda, é professor titular do Instituto de Economia da Unicamp e escreve mensalmente às terças-feiras. Em 2001, foi incluído entre os 100 maiores economistas heterodoxos do século XX no Biographical Dictionary of Dissenting Economists.
FONTE: VALOR ECONÔMICO
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