No princípio, alguns políticos queriam excluir a Delta da CPI do Cachoeira.
Desistiram. Era como arrancar o delta do alfabeto grego. Depois se falou em
concentrar as investigações no eixo Brasília-Goiás. Mas o delta é foz de um rio
com muitos braços e canais. Acidente geográfico, a Delta está no Rio de
Janeiro.
Da cachoeira à foz, deságua num imenso mar de dúvidas. Não se trata só de
uma CPI para dissecar os laços da Delta com Carlos Cachoeira e seus tentáculos
na política e nos governos. A ascensão fulminante da empresa e de seu dono,
Fernando Cavendish, pode fornecer material para excelente estudo sobre o Brasil
moderno. Como se fazem essas fortunas, como se entrelaçam com interesses
políticos, como prosperam à sombra do governo e como driblam os frágeis
mecanismos de controle? Eis algumas perguntas sobre a mesa.
Isso foi sempre assim, dirão alguns. Mas há algo de singular na meteórica carreira
de Cavendish como empreiteiro. O vice de Sérgio Cabral, Luiz Fernando Pezão,
afirmou que o segredo do sucesso da Delta era sua agressividade, traduzida em
preços mais baixos. Mas a tática da Delta, de acordo com quem entende de
licitações, era vencer com preço baixo e correr atrás dos aditivos que eram
acrescentados ao valor inicial do projeto. Em alguns casos, de 300%! Se isso
era tão evidente para o mercado, como escapou aos experientes responsáveis
pelos contratos do governo? Foram todos enganados por um jovem ambicioso?
Segundo algumas reportagens, Cavendish é simpático e bonachão, por isso se
aproximou do governador do Rio e se tornou seu amigo íntimo. Os repórteres
esqueceram alguns traços que podem trazer ruído à fotografia: ambos gostam de
viagens, hotéis caros, cruzeiros de luxo. É possível que uma extraordinária
empatia tenha movido a amizade desinteressada deles. Mas seria preciso outro
ajuste de imagem. Cavendish diz em gravações que seu método para conquistar
políticos é comprá-los. Como pode sair comprando políticos Brasil afora se no
Rio, onde grande parte da sua fortuna foi conquistada, usou só seus belos
olhos? Pode ser que Cavendish, como Demóstenes Torres, seja um caso de dupla
personalidade: no Rio é um santo, fora do Rio, um tremendo predador.
Lendo o que foi publicado, noto outros sinais de pureza nos gestos de
Cavendish no Rio. Ele reuniu suas empresas, segundo a imprensa, e as registrou
em nome de uma tia, professora em Pernambuco. Havia um programa humorístico em
que o ator Miguel Fallabela dizia: "Salvem a professorinha".
Cavendish foi tão radical que pôs toda a sua fortuna na mão de uma delas.
Desde o desastre de helicóptero na Bahia em que morreram mulher e filhos de
Cavendish, Cabral tenta explicar a amizade dos dois. O Ministério Público do
Rio avaliou o caso e concluiu que não havia nenhuma ilegalidade, mas isso será
revisto por um colegiado.
Cabral tende muito a proteger a privacidade de sua relação com Cavendish.
Desmentiu logo que seria padrinho de um dos filhos dele: "Compadre, não.
Somos só bons amigos". Na verdade, é uma proteção que estende a todos os
seus amigos empresários. Indício dela é o fato de não divulgar quantas vezes e
com quem viajou pelo mundo, o que deveria ser público para quem exerce o cargo
de governador. Houve várias tentativas de obter a lista no Rio. Em vão. Novas
tentativas foram feitas via Câmara dos Deputados. De novo em vão, o PMDB não
abandona os seus. Como jornalista, é preciso reconhecer que a imprensa não se
interessou pelas constantes viagens de Cabral, provavelmente com família,
babás, caros hotéis no exterior. No meu tempo de jovem repórter, isso era
notícia. Agora é só uma ironia aqui e ali, piada. Mas notícia mesmo, texto e
fotos, nada apareceu ao longo dos seis anos em que Cabral descobriu o mundo.
Não questiono a amizade dos dois nem o que lhes parece uma boa vida em
Paris. Mas a falta de transparência protegeu a Delta. Suas obras seriam
julgadas sob outro crivo e suas vitórias nas concorrências, examinadas com
lupa. Obras sem licitação após os temporais na Serra Fluminense? Nem pensar.
Cabral e Cavendish podem esconder os detalhes de sua relação em nome da
privacidade. Mas ela é um pedaço do Brasil moderno. Merece estudo, pesquisa,
quem sabe até novela ou filme: jovens simpáticos e bonachões que conquistaram o
Rio, viveram tragédias, viajaram pelo mundo e, com os serviços profissionais do
ex-ministro José Dirceu, exportaram sua energia positiva para o Planalto: a
Delta transformou-se na grande empreiteira do PAC.
Em 2010, quando denunciei os laços de Cabral com Cavendish, o TRE-RJ tirou o
programa do ar e mais tarde me condenou a pagar multa. Recorri, por meio do
advogado do partido. Era só o que faltava, derrotado na eleição, não tinha como
pagar multa. O caso caiu nas mãos do presidente do TRE, Luiz Sveiter, que se
considerou suspeito para julgá-lo e o passou adiante. A gente vai perdendo
tudo, mas o humor eles próprios não nos deixam perder. Uma grande ajuda que a
CPI do Cachoeira dará à geografia política do Brasil é iluminar a Delta, com
todos os seus braços e canais. E trazer um pouco de transparência ao complexo
sistema de dominação fluminense, em que se entrelaçam todos os Poderes, muitas
vezes até o quarto poder, com objetivo de nos ocultar parte da verdade.
Numa CPI tudo pode acontecer. Quem sabe Cabral e Cavendish vivem uma amizade
desinteressada e o esquema de proteção que envolve o governador não é só uma
conspiração do bem contra invasores da privacidade alheia? Como neste momento
tudo é suposição, que tal começar pelas obras, seus preços e sobrepreços,
maracutaias e maracanãs? Há uma história material a desvendar e só os fatos
podem separar a realidade da fantasia.
Não sei se a CPI vai descobrir muita coisa. Na verdade, minha experiência
mostrou que ela suscita mais descobertas do que propriamente as faz. De longe,
só posso dizer que o Rio continua lindo, nada deveria impedir o Brasil de
conhecê-lo melhor. O Rio de Janeiro, fevereiro e março, alô, alô, Cachoeira,
aquele abraço.
Jornalista
FONTE: O ESTADO DE S. PAULO
Nenhum comentário:
Postar um comentário