Daqui a menos de um mês, completará quinze anos o discurso mais ambicioso de
Fernando Henrique Cardoso, em que ele disse que o mundo vivia "um novo
Renascimento, um novo Humanismo". E que essa novidade, em vez de
beneficiar só as elites, engendraria um cidadão globalizado, um cidadão do
mundo. (Valeria a pena o Instituto FHC comemorar a data com um debate).
Dá então para dizer que o ex-presidente propôs uma utopia, mesmo sem usar
esta palavra? O termo "utopia" nunca foi bem-visto nos círculos
conservadores, para onde tem rumado o público do PSDB. E "utopia" em
mesmo um sentido negativo, porque se ligou, sobretudo com o comunismo, a uma
mudança imposta de cima para baixo. Um único princípio, a abolição da
propriedade privada, serviu para mudar todos os aspectos da vida humana,
inclusive a mais pessoal. Mesmo com boas intenções, o resultado foi lastimável.
Daí que, hoje, muitos receiem mudanças radicais, planejadas, efetuadas a frio.
Mas há outro lado na palavra "utopia": quase tudo o que surgiu de
bom nos dois últimos séculos foi, antes, concebido como utópico. Ou que nome
dar aos malucos que defendiam a igualdade dos seres humanos, quando era dogma a
desigualdade entre plebeus e nobres? Só um louco proporia para as mulheres os
mesmos direitos dos homens; por defender isso, Olympe de Gouges foi
guilhotinada. Ou alguém sensato acharia que negros, índios e não-ocidentais
poderiam se igualar aos brancos? Não. Tudo o que é igualdade soava a delírio -
a "utopia". O quase centenário Albert Hirschman, amigo por sinal de
FHC, dedica um belo livro à "retórica reacionária", segundo a qual
toda proposta de melhorar o mundo, na verdade, o piora. Pois é: se déssemos
ouvidos aos anti-utopistas, nada faríamos para melhorar as coisas, porque todo
esforço consciente nessa direção só as piora; só que, assim, não teria acabado
a escravidão nem o colonialismo.
Tudo de bom nos últimos séculos nasceu como utopia
Em suma, nem toda utopia resulta em coisa que preste. Mas nada surge de bom
que não tenha passado pela utopia.
É claro que o Renascimento - o dos séculos XV e XVI - não foi só a utopia.
Foi também Maquiavel, com o advento da ciência política, o filósofo cujo
"Príncipe" o ex-presidente prefaciou há dois anos. Mas o espírito do
discurso de FHC está na ideia, não de um conhecimento cético e sem ilusões
sobre o que o homem faz (a descoberta de Maquiavel), mas na proposta de um
mundo justo e feliz (a invenção de Thomas More). Daí, a pergunta: podemos ter
uma utopia tucana? Pode um partido que almeja mobilizar a sociedade, empolgar o
poder, mudar o País, conseguir isso sem algum sonho, alguma utopia?
Em 2010, quando Fernando Henrique lançou seu livro "Relembrando o que
Escrevi: da Reconquista da Democracia aos Desafios Globais", participei do
debate de lançamento. Discutimos como um presidente "acidental", para
usar a expressão dele próprio, conseguiu firmar sua autoridade e ser um dos
chefes de Estado mais bem sucedidos de nossa história.
Quando ele foi eleito, Conceição Tavares disse que certamente seria
"enrolado" por Antonio Carlos Magalhães. Pois é, aconteceu o
contrário... Agraciado pelo dedaço de Itamar Franco, tendo a seu favor
basicamente a retórica, a persuasão, a capacidade de falar e articular,
Fernando Henrique conseguiu alçar-se a um nível inigualado por seus
companheiros de partido.
Da fortuna, ou da sorte, fez virtude, ou competência
pessoal. Mas, nos seus herdeiros de partido, sinto falta do elemento
renascentista, da utopia, do projeto. Nesse debate de 2010, depois de se
discutir o futuro da sociedade, um ex-colaborador seu que estava na plateia
perguntou se não deveríamos rever os benefícios da Previdência para caberem no
respectivo orçamento. Fiquei espantado, não porque a pergunta fosse errada, mas
porque aparentemente o ex-ministro não tinha noção do que são fins, o que são
meios. Os fins estão no projeto de sociedade que tenhamos. Os meios são as
contas para chegar lá. Ele dava mais importância às contas.
O que pode estar na utopia tucana? Não é fortuito que Fernando e Ruth
Cardoso fossem tão próximos de Manuel Castells, que teorizou os potenciais de conhecimento
e transformação social da Internet. Não é fortuito que, nos últimos anos,
revoluções tenham sido potencializadas pelas redes sociais. A difusão de
conhecimento pela Web e, mais que isso, a produção de conhecimento novo se
tornaram fatores essenciais no mundo que desponta. A globalização de que FHC
fala é, mais que dos mercados, a da rede. Aí entra a educação, assunto sobre o
qual pensadores tucanos ou próximos do PSDB se destacam no País. Considero que
a prática do governo petista na educação - mais precisamente, a ênfase nos
indicadores de avaliação - está mais perto da teoria tucana do que daquilo que
dizem os próprios petistas. Há um vasto manancial de ideias à espera de uma
política. Em seu favor, têm os educadores tucanos um senso da realidade e da
relação custo-benefício que nem sempre vemos no PT; por exemplo, enfatizam o
papel do ensino técnico e, sobretudo, pensam em como ter o maior rendimento
possível pelo dinheiro investido. Embora qualquer governo, inclusive os
petistas, tenha de procurar o máximo rendimento, o fato é que a doutrina
petista não aprofunda essa direção. Resumindo, na educação, a prática do PT é
melhor que a teoria dele (ou do que a prática tucana), enquanto a teoria
peessedebista é superior à prática do seu partido. Quem souber desatar esse nó
tem forte chance de ganhar a parada. E, como a educação é hoje a maior chave
para a emancipação social, saber tratar dela pode ser um trunfo. Uma utopia, em
suma, realizável, ainda que difícil.
Renato Janine Ribeiro é professor titular de ética e filosofia política na
Universidade de São Paulo.
Fonte: Valor Econômico
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