Como os juízes do Supremo salvaram o
julgamento do mensalão - e o que muda no país depois da sentença de prisão para
José Dirceu
Diego Escosteguy
Joaquim
Barbosa sabia que falaria para a história. E, assim que o presidente do Supremo
Tribunal Federal (STF), Carlos Ayres Britto, passou-lhe a palavra, às 15 horas
do dia 12 de novembro de 2012, uma segunda-feira nublada em Brasília, ele
falou. Perto dali, no bosque que ladeia a corte, assim como nos demais jardins
e muitos recantos verdes de Brasília, as cigarras cantavam incessantemente, com
a estridência usual, a melancólica ária que domina as primaveras da capital da
República. O barulho das cigarras, porém, não penetrava o Tribunal. Lá dentro,
nos primeiros minutos da 45â sessão de julgamento do mensalão, havia apenas a
voz de Joaquim Barbosa, o ministro relator do caso. Joaquim - costume gris,
empertigado na cadeira ortopédica preta, rosto contrito - era inevitavelmente a
imagem da abnegação. A dor revelava-se ao Brasil em cada espasmo muscular que
lhe acometia, amiúde, como a sugerir que ele não fosse senhor do próprio corpo.
Sobrava-lhe a voz, e com ela preencheu o plenário:
- Passo a
examinar o chamado núcleo político. José Dirceu colocou em risco o próprio
regime democrático, a independência dos Poderes e o sistema republicano, em
flagrante contrariedade à Constituição Federal. Restaram diminuídos e
enxovalhados pilares importantíssimos da nossa institucionalidade - disse, com
os olhos miúdos cravados no voto. - Fixo a ele a pena-base em dois anos e seis
meses de reclusão, tal como fizera com o réu Marcos Valério. Considerado o fato
de José Dirceu ter desempenhado um papel proeminente nas atividades de todos os
réus, especialmente os do núcleo político, aumento a pena em um sexto: pena que
torno definitiva em dois anos e 11 meses de reclusão.
Aproximava-se
o fim. Nos quase quatro meses do julgamento mais importante da história do
Supremo, os 11 ministros - ou dez, a partir da aposentadoria compulsória do
ministro Cezar Peluso, por idade, em setembro - já haviam reconhecido, por
maioria e com base nas abundantes provas dos autos, que uma quadrilha liderada
pelo ex-ministro da Casa Civil José Dirceu estabelecera um esquema de suborno para
que parlamentares apoiassem o governo do Partido dos Trabalhadores, o governo
de Luiz Inácio Lula da Silva - um esquema que se convencionou chamar de
mensalão. Os ministros entenderam que 25 dos 38 réus (13 foram absolvidos)
deveriam ser condenados por crimes como corrupção, lavagem de dinheiro e
formação de quadrilha. Faltava apenas definir o tamanho das penas de cada um,
no complicado processo da dosimetria, repleto de números e nuances jurídicas.
Era o que começava a fazer Joaquim em relação a Dirceu. No fim da dosimetria,
sua pena atingiria o total de dez anos e dez meses, acrescida de multa de R$
676 mil. Pela primeira vez na história do Brasil, ao menos desde a
redemocratização de 1988, um político poderoso era condenado por corrupção - e,
salvo reviravolta cada vez mais improvável, cumprirá parte da pena na cadeia.
Condenado, assim como os demais réus, num julgamento feito à luz do dia,
transparente e com o mais amplo direito à defesa.
Dadas a
estatura dos envolvidos - protagonistas de um partido político que ocupa o
poder até hoje - e a natureza do crime central - a compra de um poder por
outro, o que constitui por si só um atentado contra a democracia -, o
julgamento do mensalão provocou questionamentos apaixonados. Teria sido um
julgamento político? Seu resultado deixará um legado para o país? Ou foi apenas
consequência de uma conjunção de fatores muito especial - um “julgamento de
exceção”, na avaliação de alguns juristas?
Os fatos que
respondem a essas perguntas mostram que o país assistiu pela televisão, nos
últimos meses, a um julgamento que só se tornou possível graças aos lentos
avanços institucionais do país e, em especial, do STF (leia mais na página 46).
Um julgamento, também, que só veio a bom termo, ao menos até agora, pelas
virtudes apresentadas por seus protagonistas nos momentos mais críticos do caso
- aqueles momentos nos quais a discórdia bordejou o conflito, nos quais as
diferenças transbordaram as ideias e adernaram os homens. Um desses momentos
viria a acontecer naquela segunda-feira, quando se definiam as penas de José
Dirceu, assim que a voz de Joaquim Barbosa cedesse lugar às demais.
Vias de fato
O voto de
Joaquim Barbosa durou exatamente cinco minutos. Mas surpreendeu muitos
ministros. A maioria esperava que ele prosseguisse definindo a pena do núcleo
financeiro. Houve estratégia no movimento surpreendente de Joaquim. Ele queria
votar as penas de Dirceu, do ex-presidente do PT José Genoino e do
ex-tesoureiro Delúbio Soares antes que o ministro Ayres Britto se aposentasse,
fato que aconteceria na quinta-feira seguinte, dia 15 de novembro. Àquela
altura, após tantos meses de julgamento, era conhecida a posição de cada
ministro - e Ayres Britto votava quase sempre em sintonia com Joaquim. Joaquim,
portanto, não queria arriscar ter um voto a menos na última votação mais
importante do julgamento. É uma prerrogativa do relator estabelecer a ordem do
que será votado. Essa prerrogativa não impede que outros ministros se sintam
incomodados com o truco -nenhum mais do que Ricardo Lewandowski, o revisor do
processo e nêmese de Joaquim Barbosa. “Pelo que entendi, inclusive os jornais
anunciaram, a votação de hoje seria do núcleo bancário. Não estou entendendo
por que estamos iniciando com o núcleo político. Inclusive, o advogado não está
presente”, disse Lewandowski. “A qualquer momento, Vossa Excelência surpreende
a corte, surpreende o revisor. Eu vim de São Paulo nesse instante, saí de uma
banca de mestrado, se eu soubesse...” Joaquim Barbosa o cortou: “Não nos
interessa de onde Vossa Excelência veio”.
Seguiu-se mais
uma das altercações entre os dois:
- A surpresa,
ministro, é a lentidão ao proferir os votos. Esse joguinho, ministro - disse
Joaquim.
- Que
joguinho? Vossa Excelência, por favor, se explique - reagiu Lewandowski.
- Vossa
Excelência não tem voto neste caso. Vossa Excelência não tem voto - disse
Joaquim. Como Lewandowski absolvera Dirceu, não teria direito a participar da
definição da pena dele.
- Eu terei em
seguida. Não é possível procedermos dessa forma. A metodologia tem de ser combinada
com o revisor também - disse Lewandowski, dirigindo-se a Ayres Britto. - Toda
hora estou sendo surpreendido, senhor presidente. É o fatiamento, são sessões
extraordinárias, é o cancelamento das turmas, não é possível!
A discussão
prosseguiu. E piorou:
- Eu é que
estou surpreendido com a ação de obstrução de Vossa Excelência - afirmou
Joaquim, tremendo de dor e nervosismo na cadeira ortopédica.
- Senhor
presidente, Vossa Excelência, por favor, consigne isso em ata, porque eu
considero isso algo muito grave - respondeu Lewandowski.
- Mas eu estou
falando a verdade - disse Joaquim.
- Então, eu me
retiro do plenário - disse Lewandowski, levantando-se sem olhar para trás.
Foi uma das
cenas mais dramáticas do julgamento. Todos estavam perplexos. Como revisor,
Lewandowski desempenha um papel fundamental no julgamento. Sem ele, não há
julgamento: tudo tem de parar. “Ele está a fim de obstruir mesmo, olha aí”,
disse Joaquim. “Estou cansado, senhor presidente, desse jogo de
empurra-empurra.” Na sala do cafezinho, perto do plenário, Lewandowski não se
conformava. “Isso é um desrespeito! Custava me avisar?”, dizia ele aos
assessores. “Assim eu vou embora.” Enquanto Lewandowski cogitava abandonar o
julgamento, a dosimetria de Joaquim para Dirceu prevalecia nos dois crimes a
que ele foi condenado. Chegou aos dez anos e dez meses de prisão. Em seguida,
Genoino recebeu pena de seis anos e 11 meses. Para definir a pena de Delúbio, a
corte precisava de Lewandowski - Joaquim precisava de Lewandowski. Como o
revisor condenara Delúbio, ele teria de votar em seguida. Os ministros,
portanto, precisavam de Lewandowski imediatamente. Alguém precisaria ceder.
Coube a Ayres Britto conversar com Lewandowski no intervalo da sessão. Sempre
Britto: desde o começo do julgamento, a diplomacia e a lhaneza de Britto
estavam de plantão, serviço extra provocado pelos excessos verbais, sobretudo
do mercurial relator Joaquim Barbosa.
Essas virtudes
de Britto provaram-se essenciais para que o julgamento não fosse interrompido -
e o Supremo desmoralizado - logo na 1 lâ sessão, em 16 de agosto. Irado com uma
questão de ordem, Lewandowski foi ter com Joaquim no intervalo da sessão. Era
possível ouvir os berros de ambos na sala contígua. Joaquim e Lewandowski foram
se aproximando um do outro, trocando impropérios - até que quase saíram no
tapa. O ministro Luiz Fux, lutador de jiu-jítsu, segurou Joaquim, enquanto
Britto puxava Lewandowski para um canto. “Eu abdico da revisão! Não participo
mais desse processo!” gritava Lewandowski.
Ele sabia,
contudo, que não apenas seu legado como a história do Supremo estavam em jogo
nesse julgamento. Em muitos momentos, Lewandowski poderia ter impedido o
julgamento. Poderia não ter entregue seu voto em julho, como determinara a
corte; poderia ter abandonado a revisão depois de quase “ir às vias de fato”
com Joaquim Barbosa, como veio a definir o episódio a amigos; e poderia,
finalmente, não voltar ao plenário após o intervalo daquela sessão em que os
ministros precisavam imediatamente dele. Mas ele voltou. Graças, em parte, aos
dons diplomáticos de Britto. Mas, sobretudo, graças a sua própria capacidade de
ceder quando outros não o fariam - como Joaquim. Nisso, e ao verbalizar
críticas aos procedimentos do julgamento que encontravam algum eco fora do
Supremo, Lewandowski encontrou seu lugar na história que será escrita sobre o
mensalão.
Justiça, simplesmente justiça
O julgamento
do mensalão foi justo até aqui? Fiz essa elementar pergunta aos ministros do
Supremo - e, nenhum, mesmo que reservadamente, mesmo os que foram vencidos em
muitos pontos do julgamento, expressou qualquer reserva quanto à correção do
processo. Alguns têm críticas, duras até, mas sempre críticas a questões
relativamente periféricas no julgamento (como o tamanho das penas ou como se
redigirá o acórdão com a decisão final dos ministros). Na essência, a maioria
concorda: houve crimes no mensalão, e as pessoas que participaram desses crimes
são responsáveis, em maior ou menor grau, pelo que fizeram - por isso têm de
ser condenadas. Todos puderam apresentar provas e argumentos de sua inocência.
A maior corte do país parou por um semestre para debater, aos olhos de todos,
quem era inocente e quem era culpado. Fez-se justiça, até o momento, não porque
o Supremo tenha condenado Dirceu e outros líderes políticos à cadeia. Se Dirceu
for de fato preso, o país não terá mudado do dia para noite. Nem essa eventual
prisão deve ser observada com triunfalismo ou aplauso.
Primeiro,
porque, como observou o ministro Cezar Peluso em sua última sessão no Supremo,
depois de votar pela condenação do ex-deputado João Paulo Cunha, do PT, “nenhum
juiz verdadeiramente digno de sua vocação condena ninguém por ódio. Nada mais
constrange o magistrado do que ter que infelizmente condenar um réu em matéria
penal”. E, segundo, porque os avanços na Justiça são lentos, caminham devagar,
ao sabor de pequenas conquistas que mudam o campo de ação dos homens - como
quando se consegue aprovar uma lei como a da Ficha Limpa, ou quando, meio que
por acaso, a Suprema corte do país consegue criar uma TV própria, que, com o
tempo, levou a lida dos ministros diretamente à casa dos cidadãos. “Alguns
ainda criticam a TV, dizem que serve sobremaneira para aguçar a vaidade dos
ministros”, afirma o ministro Marco Aurélio Melo, em cuja presidência, há dez
anos, criou-se a TV. “Mas não podemos nos esquecer de que o direito rege a vida
em sociedade, e de que a sociedade ganha ao acompanhar o direito em ação. É o
que ocorre na transmissão ao vivo das sessões do Supremo. Ficamos mais próximos
da sociedade e, assim, nossos semelhantes podem nos acompanhar - e cobrar.”
Poucos
lembram-se da construção institucional que permitiu esse julgamento. Uma
vitória veio em dezembro de 2001, quando o Congresso promulgou emenda à Constituição
que permitiu ao Supremo processar criminalmente deputados e senadores sem
autorização prévia da Câmara dos Deputados e do Senado. Autor de um dos
projetos que resultaram na emenda, o senador Pedro Simon (PMDB-RS) lembra que,
desde o final dos anos 1970, havia a intenção de aprová-la, mas os
parlamentares resistiam. “Era um poder que os parlamentares não queriam perder.
Corporativismo mesmo”, afirma. “A lei só saiu depois de muita pressão popular.”
Os avanços
também aconteceram no domínio das leis. A já famosa teoria do domínio do fato,
que ajudou a condenar José Dirceu, nasceu no final dos anos 1930 na Alemanha, a
partir dos estudos do jurista e filósofo do Direito Hanz Welzel. Surgiu - e
evoluiu - pela necessidade de processar os crimes cometidos por Estados
totalitários ou por organizações criminosas complexas. Na América do Sul, em
meados dos anos 1980, a teoria foi aplicada em processos contra militares
acusados de crimes políticos, como observam os professores Francisco Munhoz
Conde, da Universidade Pablo Olavide, na Espanha, e Hector Olasolo, da
Universidade de Utrecht (na Holanda), autores de um artigo sobre o assunto. Em
19 de março do ano passado, José Dirceu comemorou em seu blog uma decisão
baseada na teoria que o condenaria um ano depois. A Justiça chilena ratificara
a condenação do general Manuel Contreras a cinco anos de prisão. Contreras foi
o chefe da Dina, a cruel polícia política da ditadura do general Augusto
Pinochet (1973-1990) no Chile. “Faz justiça, simplesmente justiça”, afirmou
Dirceu.
Em 24 de
agosto de 2012, outra vez em seu blog, Dirceu elogiou a Justiça argentina por
julgar o ex-presidente Reynaldo Bignone e outros militares acusados de prender,
torturar e matar combatentes da ditadura argentina (1976-1983). Talvez Dirceu
não saiba, mas a condenação de Contreras e a de Bignone também se devem à
aplicação da teoria do domínio do fato. Mas José Dirceu, apesar do que dizem
seus defensores, não foi condenado por uma teoria. Foi condenado pelas provas.
Baú de mágoas
Naquela tarde
de segunda-feira, a última sob a suave Presidência de Britto, a última em que
seus talentos de conciliação seriam necessários para salvar, mais uma vez, o
julgamento, os ministros não estavam preocupados com a teoria do domínio do
fato ou com as invectivas dos advogados dos réus. Estavam ocupados demais em
garantir que Lewandowski voltasse, mais uma vez, do intervalo. Para os
brasileiros que acompanham com interesse o julgamento, mas necessariamente de
longe, pode ser difícil compreender por que há tantos embates entre os
ministros - a maioria aparentemente envolvendo questiúnculas, detalhes
irrelevantes. Eles sabem por quê. Naquele momento, Britto sabia - vira,
acompanhara durante meses - que as dores de Joaquim são um tormento de tal
gravidade que, em alguns momentos, ele poderia desistir do caso. Britto,
portanto, via sob outra luz os rompantes coléricos de Joaquim. E se lembrava de
quando perguntou o que ele, Britto, poderia fazer para lhe ajudar a tocar o
caso. Joaquim pediu apenas uma maca - e um massagista para os intervalos. Num
desses intervalos, Britto foi ter com Joaquim. Encontrou o colega com os dois
pés imersos num balde de gelo, tentando não gemer de dor.
Foi lembrando
os sacrifícios - uns maiores, físicos; outros menores, ideológicos - dos ministros
durante o julgamento que Britto conquistou, mais uma vez, Lewandowski. “Mas eu
só volto com um desagravo, Britto”, disse Lewandowski. Ele, como os demais,
acumulara mágoas demais no percurso de tantas sessões. “As pessoas de fora não
entendem, e às vezes até ridicularizam, mas todos os data venia e ‘Vossas
Excelências’ têm a função de garantir e, às vezes, restabelecer a concórdia
entre os ministros”, diz um dos mais antigos integrantes da corte. “Todos
precisam de afagos, ainda mais diante de debates duríssimos. Senão sobram
muitas mágoas.” O presidente da corte tem o dever de manter as inevitáveis
mágoas num nível civilizado e passageiro. Por isso Britto aquiesceu, e daria a
Lewandowski o desagravo que ele queria. Quando os ministros retomaram a sessão,
Britto disse: “Tenho de cumprimentar o retorno de Sua Excelência, o ministro
Ricardo Lewandowski, que reassume seu indispensável e altaneiro papel de
revisor desse processo. Vossa Excelência e o ministro Joaquim Barbosa, para
mim, só merecem aplausos e elogios”.
Deu certo. O
julgamento estava, mais uma vez, salvo. Delúbio recebeu uma pena de oito anos e
11 meses e R$ 325 mil de multa. Joaquim, aquele que ainda não cedeu, assume a
presidência na quinta-feira. Ele conseguirá controlar seus excessos e pacificar
os demais ministros? Antes de sair do Supremo, Britto deixou, em seu discurso,
um recado - suave, como sempre - ao sucessor: “Não temos direito a mau humor.
Entendo que nossas rugas aumentam para que nossas rusgas diminuam. Aprendi com
meu pai. E dele também a frase que diz que o juiz não deve impor respeito. O
juiz deve impor-se ao respeito. Eu sempre disse para mim que derramamento de
bílis e produção de neurônios não combinam”. Para continuar fazendo história,
não bastará mais a Joaquim apenas falar.
Com Flávia Tavares, Marcelo Rocha,
Murilo Ramos e Leandro Loyola
Fonte: Revista Época
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