Ao assumir o seu segundo mandato, há pouco mais de um ano, a presidente da Argentina Cristina Kirchner usou uma frase que chocou os argentinos: "Vamos por todo". A expressão não tem uma tradução exata em português. Literalmente, quer dizer "vamos com tudo", ou "vamos para cima", mas ainda assim não tem o significado tão forte que possui em espanhol. Significa algo como a absoluta inexistência de limites ou a disposição em não fazer concessão alguma para obter seus objetivos. Quem sabe, uma versão portenha de "agora vai ou racha".
Cristina está rompida com os principais grupos de mídia e é vista com absoluta desconfiança pelo establishment empresarial do país. No ano passado, adicionou à sua lista de inimigos a elite sindical e na semana passada trocou acusações com o ator Ricardo Darín, a grande estrela do cinema argentino. Saques, protestos, panelaços, tudo isto não afetou um milímetro a sua capacidade de governar.
Para quem é brasileiro, o fato não deixa de causar perplexidade. Na história brasileira, há três precedentes de presidentes que não terminaram o mandato depois de uma aposta no tudo ou nada. Jânio Quadros, Fernando Collor de Mello e João Goulart, cada um em momentos históricos e circunstâncias absolutamente distintas, tentaram governar ignorando a necessidade de se estabelecer alianças no Congresso, na sociedade e com governadores.
Para a reeleição eterna, radicalismo não basta
No Brasil, os modelos pluripartidários polarizados, em que não existe mais um partido ou uma liderança política que represente o centro, costumam levar a uma radicalização que impede qualquer cooperação entre as siglas, a não ser contra o governo de turno. No caso de Goulart, o processo culminou em um impasse, em que o Legislativo vetava todas as iniciativas do Executivo, e degenerou na mais grave ruptura institucional que o país já viveu.
Uma das principais referências teóricas sobre a tragédia de 1964, o professor carioca Wanderley Guilherme dos Santos é o autor do raciocínio sintetizado no parágrafo anterior. Para Wanderley Guilherme, pode estar no arcabouço institucional argentino a explicação para o fenômeno cristinista: a presidente argentina governa sem alianças desde 2008, em um cenário onde a cooperação com forças alheias ao seu círculo estreito de poder inexiste.
Para Wanderley Guilherme, o fato de o Congresso argentino ser eleito em sistema de lista fechada, em que as cúpulas dos blocos partidários ganham grande poder coercitivo sobre as suas bases, pode ser um dos pilares da governabilidade argentina. O outro é a delegação de poderes, já antiga, que permite à presidente uma ampla margem para administrar sem a vênia do Legislativo.
"A fragmentação e a impossibilidade de se fazer alianças só é relevante quando o sistema institucional impede ou dificulta que um grupo só faça a hegemonia. No Brasil de hoje, a pulverização partidária é maior do que em 1964 e a governabilidade é mais fácil, porque mudou a equação de poder entre o Executivo e o Legislativo", comentou Wanderley Guilherme.
Em outras palavras, o hiperpresidencialismo argentino permitiu que Cristina desse a volta por cima da derrota parlamentar que sofreu em 2008 ao tentar aumentar as taxações do campo, episódio em que se isolou de outros setores políticos para sempre. O crescimento expressivo da economia nos anos de 2010 e 2011 foi decisivo para a sua reeleição e o PIB argentino hoje não está mais desaquecido que o brasileiro.
Os recentes reveses que a presidente tem sofrido no Judiciário ao tentar expropriar a parte eletrônica do grupo de mídia Clarín e a sede da aristocrática Sociedade Rural Argentina, contudo, podem sinalizar este ano qual o limite preciso do "vamos por todo" argentino: não parecem estar dadas no país as condições para uma mudança constitucional para a reeleição indefinida, tal como se deu recentemente na Venezuela, no Equador e na Bolívia.
Cristina depara-se com o fantasma da reconstrução do centro, uma possível força centrípeta alheia ao seu modelo. O governador da província de Buenos Aires, Daniel Scioli, ainda ameaçado por uma grave crise fiscal e começa a se expor como candidato presidencial em 2015.
Em um cenário em que Cristina não possa se reeleger e a oposição fragmentada não consiga aliar-se entre si, Scioli é o "plano B" de todo mundo: o ex-empresário varejista e motonauta menemista, que foi vice-presidente de Nestor Kirchner por imposição do peronismo tradicional, é um dos raríssimos políticos argentinos que dialoga fora de sua seita.
A província de Buenos Aires não inclui a capital do país. A organização geopolítica da Argentina é similar à que havia no Brasil até 1975, em que a principal cidade, no caso o Rio de Janeiro, era uma unidade independente. A capital argentina é governada por Mauricio Macri, ex-cartola do Boca Juniors e herdeiro de um grupo empresarial. Seu partido, o PRO, praticamente só existe nos limites do município, que concentra 11% do eleitorado. Já a província de Buenos Aires, com capital em La Plata, conta com 40% do eleitorado e 55% do PIB argentino.
Scioli confraterniza com adversários de Cristina enquanto faz juras de fidelidade à presidente em atos públicos. Aparentemente aposta crescer no vácuo. De acordo com pesquisas de opinião, a atual presidente é rejeitada por 50% do eleitorado. Macri também o é. O sindicalista Hugo Moyano é refutado por 60%.
Em 2003, em um cenário de caos total, Néstor Kirchner conseguiu chegar ao poder com 22% dos votos e entronizar a mulher quatro anos depois com 45% dos sufrágios. Sem caos à vista, é de se supor que as alianças na Argentina, se não são tão necessárias para governar, serão importantes para vencer uma eleição.
A radicalização de Cristina pode não ser suficiente para eternizá-la ou propiciar a coroação de um herdeiro. E neste caso, as alternativas começam a se construir por si só.
Fonte: Valor Econômico
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