Chefe do Ministério Público afirma que denúncia feita ao Supremo incluiu apenas aquilo que era possível provar
Para Gurgel, a fala em que Valério acusa Lula de envolvimento no caso foi uma tentativa de 'melar' o julgamento
Felipe Seligman, Matheus Leitão
BRASÍLIA - Protagonista no maior julgamento da história do Supremo Tribunal Federal, o procurador-geral da República, Roberto Gurgel, 58, afirmou à Folha que o esquema do mensalão é "muito maior, muito mais amplo, do que aquilo que acabou sendo objeto da denúncia".
"O que constou da denúncia foi o que foi possível provar, com elementos razoáveis para dar a base [a ela]", afirma Gurgel em uma de suas raras entrevistas exclusivas desde que assumiu, em 2009.
Ele diz que o depoimento prestado em setembro pelo operador do esquema, Marcos Valério, pretendia "melar o julgamento".
O desafio
Gurgel afirma que o grande desafio do processo foi provar a responsabilidade do núcleo político do esquema, entre eles o do ex-ministro da Casa Civil José Dirceu (PT).
"O grande desafio desse processo era provar a responsabilidade do chamado núcleo político. Porque essa prova é diferenciada. (...) Pessoas do topo da quadrilha têm sempre uma participação cuidadosa e provas diretas são praticamente impossíveis."
Dirceu
O procurador-geral afirma ter ficado provada a participação do ex-ministro da Casa Civil de Lula em episódios relacionados ao mensalão. "Fazia-se um determinado acerto com algum partido e dizia-se: quem tem que bater o martelo é o José Dirceu. Aí, ou ele dava uma entrada rápida na sala ou alguém dava um telefonema e ele dizia: 'Está ok, pode fechar o acordo'", diz Gurgel.
Ele diz haver "uma série de de elementos de prova" que apontam para a participação efetiva de Dirceu. "Não é prova direta. Em nenhum momento nós apresentamos ele passando recibo sobre uma determinada quantia ou uma ordem escrita dele para que tal pagamento fosse feito ao partido 'X' com a finalidade de angariar apoio do governo. Nós apresentamos uma prova que evidenciava que ele estava, sim, no topo dessa organização criminosa", diz o procurador.
Ele cita a teoria do domínio do fato, segundo a qual o autor não é só quem executa o crime, mas quem tem o poder de decidir sua realização.
"A teoria do domínio do fato vem para dizer que essas provas indicam que ele se encontrava numa posição de liderança nesse sistema criminoso. Então, é possível, sim, responsabilizá-lo a despeito da inexistência da prova direta. Prova havia bastante do envolvimento dele."
Mensalão
"Estávamos diante de algo muito grande e muito maior do que aquilo que acabou sendo objeto da denúncia", diz ele, para quem o autor da denúncia, o antecessor Antonio Fernando Souza, fez uma opção "corretíssima".
"Quando nos defrontamos em qualquer investigação com um esquema criminoso muito amplo, você tem que optar, em determinado momento, por limitar essa investigação. Quando é ampla demais, a investigação não tem fim. Ao final, ninguém vai ser responsabilizado", diz.
Gurgel segue: "Haveria muito mais, esse esquema seria ainda muito mais amplo do que aquilo que constou da denúncia. Mas o que constou da denúncia foi o que foi possível provar, com elementos razoáveis. (...) Eu diria que aquilo que foi julgado representa apenas uma parte de algo que era muito maior".
Lula
O procurador diz não ter visto o mínimo de elementos que apontassem participação do ex-presidente Lula e afirmou que seu caso será provavelmente remetido para análise na primeira instância.
"O que se quis foi oferecer uma denúncia fundamentada em provas", declara Gurgel, acrescentando que era "uma das primeiras vezes que se responsabilizava todo um grupo que dominava o partido do governo". "Em relação ao presidente, precisaria ter a prova mais que robusta porque seria uma irresponsabilidade denunciar um presidente. É muito mais difícil."
Valério
Gurgel diz que Valério queria obter benefícios, como a redução de penas, com o depoimento prestado em setembro em que acusa Lula de ter sido beneficiado pessoalmente com recursos do esquema.
"Percebi claramente que se fôssemos admitir qualquer tipo de elemento de prova adicional, teríamos que anular o início do julgamento e reabrir a instrução criminal. Aquilo significava em português claríssimo melar o julgamento. Eles queriam melar o julgamento. Eu vi essa tentativa não como dele, mas como uma tentativa que favoreceria todo mundo", diz.
"A primeira coisa que disse a ele: nada nesse novo depoimento seria utilizado e nenhum benefício ele teria na ação 470. Na verdade, acho que ele pensava mais em embolar o julgamento."
O procurador afirma ainda que Valério pediu sigilo, pois "não teria 24 horas de vida", caso o depoimento viesse a público. "Ele prestou um depoimento de duas horas e a primeira impressão foi a de que o depoimento trazia elementos novos, mas nada de bombástico. É um depoimento que robustece algumas teses do Ministério Público em relação a todo o esquema criminoso e da participação do núcleo politico", diz Gurgel.
Ele lembra uma outra história de Valério: "É uma pessoa extremamente hábil. Houve um momento que ele apareceu aqui, quando Antonio Fernando era o procurador, para também prestar um depoimento que derrubaria a República. Não tinha absolutamente nada".
Legado
"É um marco, talvez um divisor de águas na história de responsabilizar pessoas envolvidas em esquema de corrupção no país", diz Gurgel.
Para o chefe do Ministério Público Federal, utilizar nos crimes de colarinho branco os mesmos parâmetros de crimes como furto e roubo "é assegurar a impunidade".
"O Supremo assentou que é preciso prova, e robusta, para qualquer condenação, mas o tipo de prova não é o mesmo de crimes mais simples."
Fonte: Folha de S. Paulo
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