Vai passar. Não se sabe quando nem como - não deve ser por agora -, mas vai passar, inclusive porque já está passando. E o que está por vir não necessariamente será melhor do que o que está aí, mas, no fim deste verão, já estavam claros os sinais de uma mudança de estação. A sucessão presidencial, que era uma data distante no calendário eleitoral, mantendo todos aquietados, entretidos em suas fabulações, num salto se fez ao alcance da mão. Por que passamos de súbito de uma marcha lenta para essa aceleração do tempo?
Se o natural, o curso distendido do tempo, foi contrariado, somente o foi pela intervenção humana. E a senhora dessa decisão tem nome e sobrenome, Dilma Rousseff, a presidente da República - embora a prudência e os nossos usos e costumes recomendassem a inércia, sempre pródiga para quem já detém os cordéis do poder. Verdade que ainda são insondáveis as razões que levaram o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, titular do comando do partido hegemônico na coalizão das forças políticas que nos governa, homem de tirocínio político reconhecido, a acompanhá-la nessa precipitação dos fatos.
A transição de Lula para Dilma apenas na aparência transcorre em termos de continuidade: os estilos diferem, passa-se do reino do carisma ao da gestão, que é de difícil compreensão para ouvidos treinados na retórica política da ética de convicção, a qual reclama um ator com espírito de missão, reconhecido publicamente como tal.
Sobretudo a circunstância é outra, e a sociedade não é mais a de dez anos atrás. Há novos personagens, que, no curso da última década, adquiriram musculatura, como os pentecostais, e outros que, ao contrário, perdem forças, como o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra (MST), enquanto assistem à ocupação de lugares estratégicos na política e na economia por parte do agronegócio, cujos dirigentes têm desfrutado acesso privilegiado ao vértice do poder.
O sindicalismo, a joia da coroa do governo Lula, trazido juntamente com as elites empresariais para o centro de decisões no interior da máquina governamental, não somente perde o seu lugar de antes, como é confrontado - reparam com azedume alguns dos seus próceres - com a desenvoltura do papel exercido pelas principais lideranças empresariais, boa parte delas assíduas nas antessalas do Estado, alçadas à posição proeminente de partícipes de um projeto de expansão do poder da Nação, em que seus interesses particulares são interpretados como de todos.
A escalada do Partido dos Trabalhadores (PT), Lula à frente, rumo à conquista do governo, se não consistiu num processo revolucionário - a respeito desse ponto há consenso entre gregos e baianos -, manteve parentesco com alguns dos seus aspectos. A começar pela identidade social da sua liderança maior, um operário vindo do chão de fábrica, e pela ênfase com que o governo do PT se envolveu na questão social e na defesa dos direitos do mundo do trabalho, quando acabou se encontrando com a tradição do trabalhismo brasileiro, a princípio renegada por ele.
São águas passadas os primeiros anos da década petista, em que a perspectiva da ruptura cedeu lugar a um andamento de reformas ao estilo das democracias sociais europeias, especialmente com a decisão crucial de adotar a política macroeconômica do governo a que sucedia. Tal estratégia foi bem-sucedida nas dimensões da política, do social e da economia, com o alinhamento do empresariado, do sindicalismo e das massas emergentes - aspirantes ao acesso ao mundo dos direitos e do consumo - à política do governo. A esquerda, no caso, era um retrato na parede que não doía, e núcleos antigos seus logo foram defenestrados ou optaram por outros caminhos.
Consciente da sua circunstância de riscos, o PT abdicou da mobilização popular, investiu na via eleitoral e parlamentar e, a partir de uma audaciosa política de alianças com as elites políticas do Brasil profundo, atingiu capilarmente a vida municipal, aí incluída a dos rincões. O seu governo não se fixaria na agenda do moderno e dos interesses e personagens que são próprios a ela. Reeditava, dessa forma, a manobra do PMDB de décadas atrás, quando se apresentou como um partido-ônibus que todos conduziria, indistintamente.
Essa foi a obra-prima de Lula, mas que não escondia os seus pontos fracos: exigia a sua presença demiúrgica e uma acomodação minimamente satisfatória de todos com os lugares que lhes eram reservados no heterogêneo comboio que ele conduzia. Afastada a tentação de um terceiro mandato, que traria de volta o tema da ruptura institucional, alternativa evitada pelo PT no início do seu primeiro governo, Lula foi confinado aos bastidores, e a ação do tempo, porque o mundo gira e a Lusitana roda, tem feito o resto.
A crise na Federação deflagrada em torno dos royalties do petróleo e a resistência dos trabalhadores à mudança na regulação das atividades portuárias são exemplos, entre tantos outros, das novas dificuldades de acomodar interesses diferentes, assim como não é nada fácil, num país secularizado, mas com seu lastro de valores com origem na catolicidade, instalar, por simples conveniência de cálculos políticos, um pastor pentecostal de inclinação fundamentalista na presidência da Comissão de Direitos Humanos e Minorias da Câmara dos Deputados.
A antecipação da sucessão presidencial liberou o gênio da garrafa. E com a sintomática ascensão desse pastor - sinal nefasto de que todos os apetites podem ser saciados - será necessário, com certeza, prover de mais vagões o governo-ônibus pilotado pelo PT, a esta altura sem conhecer qual o itinerário a percorrer nem o seu destino final, que, decididamente, não é mais aquele anunciado no começo da viagem dos idos de 2003.
Luiz Werneck Vianna, professor-pesquisador da PUC-Rio
Fonte: O Estado de S. Paulo
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