É um curioso exercício pensar o que aconteceria se entregassem o poder aos idealistas do passe livre
O que a peça de Calderón de la Barca La vida es sueño (A vida é sonho) tem a ver com a realidade atual brasileira? O que um autor espanhol tão antigo (1600 –1681), que foi soldado e padre, pode nos sugerir sobre o poder hoje?
Vamos à sua peça, resumidamente: ele conta que Basílio, rei da Polônia, havia lido nos astros que seu filho Segismundo era um malsinado. Para nascer, o menino provocou a morte da mãe e estava vaticinado que, adulto, destronaria o pai. O rei, precavendo-se, encerrou o herdeiro numa torre. Mas com o passar do tempo, cheio de dúvidas se o filho seria mesmo o que lhe predisseram, resolveu dar-lhe uma chance. Fez com que o adormecessem e assim o transportaram ao palácio, onde o despertaram, porém, investido do poder de rei.
O resultado foi trágico: o herdeiro, exercendo atabalhoadamente o poder, insulta o pai, enamora-se de suas mulheres, joga ao mar um dos conselheiros e a outro quer matar. Só a lisonja o atrai.
Entristecido de novo, o rei se aproveita do sono do filho e ordena que o conduzam à prisão. Ali, o príncipe desperta atordoado sem saber se viveu uma realidade ou sonho. Ficaria para sempre na masmorra, não ocorresse o imprevisto: uma rebelião em que o povo o conduz de novo ao poder. Refaz-se o jogo de reflexos entre sonho e realidade. Segismundo, porém, agora se comporta de modo diferente. Tendo aprendido atrozmente que a realidade e o sonho se mesclam, modifica seu comportamento optando por uma atitude ética no poder e assim descobre que o caminho da virtude é o mais sábio.
Então, repito: o que tudo isso tem a ver conosco, com o Brasil, o poder e com a clamorosa e voraz voz das ruas?
A primeira coisa que me ocorre é que o poder exige aprendizado. Ele tem um lado ruidoso, mas muitas vezes é exercido em silêncio e até em extrema solidão. Você não pode chegar ao poder e ir fazendo tudo que lhe der na telha. Ou seja, aprende-se rápido que o poder pode, mas não pode. Até os ditadores se queixam de que não podem fazer o que querem. Sem precisar lembrar que Getúlio, impotente diante dos inimigos, matou-se, foram muitas as queixas de Castelo Branco, Costa e Silva, Médici, Geisel e Figueiredo. Os militares achavam que podiam. Ou seja, podiam, mas não podiam. Vejam também o que ocorreu na Rússia, na China e em Cuba.
Vejam aqui mesmo alguns exemplos gritantes e recentes. O jovem Lula, quando simples candidato, dizia que o Congresso estava cheio de ladrões. Quando foi eleito, teve que compor com o Congresso para ter maioria. E dá-lhe, mensalão. Outro exemplo: Fernando Henrique se apoiava em Antônio Carlos Magalhães e Sarney, teve Renan Calheiros como ministro da Justiça. No entanto, como dizia Shakespeare naquele famoso discurso de Marco Antônio aos senadores romanos, Fernando Henrique "is a honorable man".
Tirando os famigerados black bloc que armam as quebradeiras e são um caso de distúrbio hormonal, de testosterona desgovernada (têm ódio de qualquer governo), é um curioso exercício pensar o que aconteceria se entregassem o poder aos idealistas do passe livre.
Descobririam logo que o poder pode, mas não pode. Descobririam que o sonho democrático é lento e a ditadura, que acha que pode tudo, é um pesadelo. E olha que admiro os que ocuparam pacificamente as ruas, por muitas e urgentes razões! Possivelmente, a função deles é acertadamente pressionar o poder. A pressão sistemática, inteligente e bem conduzida pode dar mais resultado do que a utopia revolucionária que tem uma dose congênita de autoritarismo.
A peça de Calderón de la Barca tem ainda vários ensinamentos. Se por um lado la vida es sueño e los sueños sueños son, não se pode viver sem sonhar. O sonho é que move a história. Como alguém disse: Marx se enganou, não é o trabalho que move a história, o que move a história é o desejo.
Fonte: Estado de Minas
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