Em fins dos anos 1980, o PT puxou a palavra de ordem “Fora Sarney”. Lembro-me das discussões no velho Partidão que a considerava golpista e, portanto, contra os interesses dos trabalhadores.
Argumentava-se que, ao longo de nossa história, a consequencia das vezes em que a legalidade democrática fora quebrada foi a implantação de ditaduras. E, com elas, os primeiros a serem perseguidos foram sempre os sindicalistas e os líderes dos partidos que buscavam a representação do mundo do trabalho: comunistas, socialistas e trabalhistas. Eram os primeiros, mas não os únicos. Em seguida, os demais democratas sofreram a mão forte das ditaduras.
O “Fora Sarney”
E por que a palavra de ordem “Fora Sarney” era considerada golpista? O governo de José Sarney era legítimo? Seu mandato era democrático?
Lembremo-nos de que o presidente Tancredo Neves e o seu vice-presidente José Sarney foram eleitos em 1985, conforme a Constituição de 1967, uma Carta autoritária e ilegítima, imposta pela ditadura de 1964.
Sabemos que aquela era a institucionalidade vigente, reformada com a abertura política de 1979 que, aliás, havia propiciado o surgimento de novos partidos, como o PT um ano depois. Tal institucionalidade previa a eleição presidencial por um Colégio Eleitoral composto pelo Congresso Nacional e por representantes das Assembleias Legislativas.
As oposições tentaram mudar a chamada eleição indireta com a emenda constitucional apresentada pelo deputado Dante de Oliveira. A proposta buscava restabelecer as eleições diretas, isto é, o direito de os cidadãos escolherem livremente o presidente da República.
Em que pesem as vigorosas manifestações das Diretas-Já, que reuniram milhões de brasileiros nas ruas pelo país, a emenda foi derrubada pelo Congresso. As oposições, à exceção do PT, resolveram então lançar um candidato único para enfrentar no Colégio Eleitoral o candidato da ditadura, o ex-governador de São Paulo, Paulo Maluf. O escolhido foi Tancredo Neves, que enfim elegeu-se presidente. Mas, com sua morte em abril, José Sarney assumiu o comando do país.
Ainda que as candidaturas de Tancredo Neves e José Sarney fossem vistas por setores de esquerda como um “pacto de elites”, elas ganharam legitimidade não só por reunir um amplo consenso das forças políticas de oposição à ditadura, como também pelas medidas subsequentes, como a convocação de eleições constituintes para 1986, com vistas a escrever uma nova Constituição e a restabelecer o Estado de Direito.
Realizou-se a eleição mais livre e democrática desde a redemocratização de 1946, com a participação de todos os partidos, inclusive do PCB, que só tivera alguns meses de legalidade em 1925 e de 1945 a 1947, quando então teve o registro cassado.
Mesmo que as críticas à política econômica e aos casos de corrupção denunciados no governo Sarney justificassem uma dura oposição, a palavra de ordem “Fora Sarney” era de fato golpista, uma vez que seu mandato fora confirmado pela Constituinte. Além desse dado fundamental, a derrubada de Sarney poria em risco o mais importante da chamada transição democrática: a promulgação da Constituição em outubro de 1988 e a manutenção das eleições presidenciais marcadas para outubro de 1989.
O “Fora Collor”
Mas, se a palavra de ordem “Fora Sarney” era golpista, por que o “Fora Collor” também não foi assim considerado?
Lembremo-nos de que a campanha do impeachment (impedimento) de Collor, encabeçada pela UNE, que levou milhares de jovens às ruas, desenvolveu-se em apoio e concomitantemente a uma ação por dentro da institucionalidade.
Havia sido instalada uma CPI no Congresso Nacional para investigar as denúncias de corrupção envolvendo o presidente da República, Fernando Collor de Mello. Posteriormente, a OAB e a ABI entregaram um pedido de impeachment do presidente à Câmara dos Deputados, aprovado por 441 votos a favor e 33 contra, resultado referendado em seguida pelo Senado Federal. Para evitar a perda de seus direitos políticos, Collor de Mello renunciou ao mandato. Mais tarde, porém, o Supremo Tribunal Federal confirmou o impeachment determinado pelo Congresso e Collor ficou inelegível por 8 anos.
Assim, o processo de impeachment e a posse do vice-presidente Itamar Franco realizaram-se dentro das regras do jogo. Isto é, conforme a Constituição de 1988, legitimamente eleita e reconhecida por todos.
O “Fora FHC”
E a palavra de ordem “Fora FHC” ensaiada por setores do PT no início dos anos 2000? Era considerada golpista e por isso mesmo foi abandonada pela maioria dos dirigentes petistas?
Independentemente de simpatias ou antipatias, o presidente Fernando Henrique Cardoso fora eleito e reeleito em primeiro turno com o apoio da maioria absoluta dos eleitores, o que lhe conferiu grande grau de legitimidade, além de plena legalidade.
Podemos argumentar que a emenda constitucional que aprovou o instituto da reeleição foi maculada por denúncias de compra de apoios no Congresso. Podemos criticar o fato de que uma CPI para investigar as denúncias não foi criada, bem como uma suposta omissão da Procuradoria Geral da República no caso. Todavia, todas as forças políticas do país aceitaram participar do pleito de 1998, bem como reconheceram os seus resultados como legais, democráticos e legítimos.
O “Fora Lula” e o “Fora Dilma”
E por que as oposições não lançaram a palavra de ordem “Fora Lula” no auge da CPI que investigava o mensalão em 2005, quando a OAB discutiu a possibilidade de pedir o impeachment do presidente Luiz Inácio Lula da Silva?
Acertada ou equivocadamente, o Congresso Nacional não colocou o presidente Lula como alvo de suas investigacões, bem como não houve quem encaminhasse um pedido de impeachment. Assim, uma mobilização de rua com a palavra de ordem “Fora Lula”, ao arrepio das instituições, representaria uma tentativa de golpe de Estado.
Igualmente, por mais justos que tenham sido os protestos de junho de 2013 com críticas ao governo federal, uma palavra de ordem “Fora Dilma” seria também golpista, uma vez que não há quem questione a legalidade e a legitimidade do mandato conquistado pela presidente Dilma Rousseff nas urnas de 2010.
Mudança de governo
No sistema presidencialista brasileiro só há duas formas democráticas de mudar o governo antes do término do mandato de 4 anos, conforme estabelecido pela Constituição: pela renúncia do seu titular ou por um processo de impeachment via Congresso Nacional.
De acordo com a Constituição, se os cidadãos quiseram derrubar um governo em que não mais depositam confiança, eles devem pressionar o Congresso pela abertura de um processo de impeachment, baseado no requisitos legais para fazê-lo, ou aguardar as próximas eleições presidenciais.
Uma outra possibilidade seria uma grande mudança do sistema político: o estabelecimento do regime parlamentarista, em que um governo que não tenha mais a confiança da maioria dos partidos possa ser substituído antes do término do mandato de 4 anos. Talvez, numa democracia parlamentarista ampliada, devesse estar prevista a possibilidade de uma moção de desconfiança por iniciativa popular, a ser examinada pelos parlamentares. Mas o parlamentarismo foi derrotado na Constituinte de 1988 e no plebiscito de 1993. E uma mudança dessa ordem só deveria valer a partir de 2018, já que muitos dos atuais chefes de Executivo têm direito a disputar uma reeleição.
Outros institutos de democracia direta, como referendos e plebiscitos, também devem ser utilizados. Todavia, é preciso aqui ter cuidado, pois fechar o foco exclusivamente na democracia direta e não agir para reformar a democracia representativa pode contribuir para conservar as mazelas do nosso sistema político.
Certas correntes de esquerda falam em revolta, levante, insurreição e revolução populares. São propostas controversas, dividindo cientistas sociais quanto à sua diferenciação em relação a um mero golpe de Estado. De todo modo, no século XX, os processos de reformas por dentro das instituições se mostraram não só mais desejáveis como mais duradouros e estáveis.
E aos setores que insistem em palavras de ordem do tipo “Fora Sarney”, a história mostra que tal conclamação pode ter sido útil para derrotar o governo eleitoralmente, mas o resultado foi a vitória do candidato de centro-direita Fernando Collor de Mello. O “Fora Sarney” não contribuiu para politizar os eleitores nem fortalecer as instituicões democráticas; afinal, o tal caçador de marajás foi eleito por um minúsculo partido com consequências desastrosas para o país.
Cláudio de Oliveira é jornalista e cartunista.
Fonte: Especial para Gramsci e o Brasil.
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