A liminar do ministro Roberto Barroso livrará a Câmara da situação vexatória em que se meteu ao manter o mandato de Donadon.
Conflitos externos, seja com a Bolívia, seja com os Estados Unidos, não combinam com a tradição diplomática brasileira nem são convenientes à agenda externa de um país que vem se afirmando como ator global. A soberania, entretanto, é o limite para a contemporização. Diante da revelação do programa Fantástico de que a presidente Dilma Rousseff teve comunicações interceptadas pelo sistema de espionagem da Agência Nacional de Segurança norte-americana, não restou ao governo brasileiro outro caminho senão a cobrança dura e a sinalização de que, se as explicações desta vez não forem satisfatórias, outra reação virá. O cancelamento da visita de Estado da presidente aos EUA, em outubro, seria medida grave, mas proporcional à ofensa. Foi o que fez o presidente Barack Obama por ter a Rússia concedido asilo provisório a Edward Snowden, que revelou ao mundo a espionagem americana.
Na conversa com o embaixador norte-americano ontem, o chanceler Luiz Alberto Figueiredo disse ter deixado claro que espera explicações ainda esta semana. De preferência, antes de quinta-feira, supõe-se, embora ele não tenha dito isso. Nesse dia, Dilma e o presidente Obama participarão da reunião do G-20 em São Petersburgo, Rússia. Embora trate-se de encontro multilateral, haverá constrangimento se nenhuma satisfação tiver sido dada ao Brasil. Dilma, sabemos, não dissimula irritações e contrariedades.
O tom adotado ontem foi altivo e energético. O chanceler e o ministro da Justiça, José Eduardo Cardozo, foram duros na condenação e na cobrança. Afinal, por que o Brasil, que é uma democracia e não representa riscos para a segurança internacional? "A soberania nacional foi violada por um Estado parceiro", enfatizou Cardozo. Quando foi revelada a espionagem de cidadãos brasileiros, o governo fez cobranças, e a reação americana foi de suprema arrogância. O secretário John Kerry esteve aqui no mês passado e não se desculpou. Pelo contrário, deu a entender que os Estados Unidos continuarão bisbilhotando o mundo inteiro em nome da segurança global. Agora, o quê fará o governo Obama? E o que poderá fazer o Brasil se, mais uma vez, o império responder com evasivas, tratando a queixa como irrelevante nesta hora em que os Estados Unidos têm outras preocupações na agenda. Entre elas, a eventual invasão da Síria, se o Congresso americano autorizar.
Dilma chegou a cogitar deixar para o novo chanceler a tarefa, sempre brasileira, de fazer o discurso de abertura da Assembleia-Geral Ordinária da ONU, no próximo dia 23. Depois da revelação, decidiu comparecer pessoalmente e denunciar, no discurso, os abusos americanos em nome do combate ao terrorismo, pedindo providências da ONU.
Coisa antiga
Situações extravagantes, quando denunciadas, são frequentemente atribuídas à paranoia conspiratória. A notícias sobre o sistema americano de espionagem por meio da internet, para além de suas fronteiras, começaram nos anos 2000. Reli ontem duas colunas minhas, no jornal O Globo, referindo-se ao Echelon, nome inicial do sistema. Uma, de 31 de março de 2000, registrava o requerimento do então deputado Walter Pinheiro (PT-BA), hoje senador, à Mesa da Câmara, para que solicitasse oficialmente ao parlamento europeu cópia do relatório ali produzido sobre a existência do sistema. Em outra, o ex-deputado Paulo Delgado, hoje articulista de política externa do Correio, denunciava a existência do Echelon e apontava para as ameaças à privacidade dos cidadãos e à soberania das nações quando estivesse funcionando plenamente. Esse tempo chegou.
Hoje à tarde, o Senado instala a CPI da Espionagem. Water Pinheiro, um dos integrantes, reforça a importância do desenvolvimento de sistemas de segurança em e-mail para brasileiros, e do projeto de construção de um satélite nacional. Hoje, até dados militares estratégicos transitam por satélites controlados por empresas estrangeiras. Coisa impensável aqui ao lado, na Argentina, que nunca abdicou de seu satélite estatal.
Salvação pelo STF
A Câmara ficará devendo um enorme favor ao ministro do STF Luís Roberto Barroso. A maioria sensata recebeu com alívio a liminar que ele concedeu ontem ao PSDB, embargando a validade da sessão em que o plenário decidiu manter o mandato do deputado condenado Natan Donadon (sem partido-RO). Ela traz a saída para a situação vexatória e desmoralizante em que a Câmara se meteu, por obra de uma centena de ausentes e outra centena que votou a favor de Donadon. Confirmada a liminar pelo plenário do STF — e dificilmente isso deixará de acontecer —, a Mesa decretará a nulidade da sessão e expedirá o ato de perda automática do mandato. Ontem, ficou decidido que a Casa nem tentará, no plenário, derrubar a liminar de Barroso.
Descaso da interessada
Há 15 dias, todo mundo se lembra, os comandos do PMDB e do PT reuniram-se na residência oficial do Jaburu. Peemedebistas amargurados, diante do polido e contido vice-presidente da República, Michel Temer, criticaram duramente o desinteresse da presidente Dilma pelas negociações dos acordos eleitorais regionais, importantes para a reeleição. Para surpresa deles, o presidente do PT, Rui Falcão, admitiu que também enfrenta dificuldades para falar com ela. Ali, resolveram compor uma comissão de quatro integrantes, dois de cada lado, para tentarem se sentar com ela e tratar pelo menos das situações mais críticas, como a do Pará e a do Ceará. Até ontem, entretanto, não haviam conseguido marcar o encontro com Dilma. E agora, com a viagem dela para a Rússia, só na volta. Enquanto isso, o caldo vai azedando na aliança, apesar das boas notícias que ela vem colhendo na economia e dos sinais de que terá êxito com o Programa Mais Médicos.
Fonte: Correio Braziliense
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