Retrato de família. Os Jaras, com as filhas Manuela e Amanda
Andanças e lembranças de Joan, viúva de Víctor Jara, torturado e assassinado cinco dias após o golpe no Chile
Juliana Sayuri
Enquanto caminhava na Calle Huérfanos numa manhã fria de agosto, mal sabia eu que a rua, agora arborizada e colorida, entre grafites vibrantes e pichações envelhecidas, um dia abrigou um fervilhante Café São Paulo, onde se reuniam intelectuais e artistas ao redor de Violeta Parra para um café e um vinho embalados por histórias e canções folclóricas no fim da década de 1950. Foi nesse café, nessa rua trivial no centro, um dos diversos pontos na capital chilena de onde é possível apenas imaginar os contornos da cordilheira sob o céu azul, que a inquieta bailarina inglesa Joan Turner encontrou o músico Víctor Jara pela primeira vez, em fins de outubro de 1960. Já tinham se visto outras vezes, mas não assim, no prelúdio de uma primavera inesquecível. De volta à Calle Huérfanos, como faz dia sim dia não, Joan, passos vagarosos e vacilantes nos atuais 86 anos, relembra a própria história, interrompida como tantas outras pelo golpe de 11 de setembro de 1973.
Não por acaso escolheu esse endereço. Viúva de Víctor Jara, Joan mantém nessa mesma rua uma fundação em memória ao músico brutalmente assassinado nos primeiros dias da ditadura de Augusto Pinochet. Ali nos encontramos, diante de um galpão grafitado com retratos de seu marido, lembrado pelos cachos rebeldes, olhos expressivos e sorriso largo. Nos arredores da Plaza Brasil, a rua assiste atualmente ao vaivém de estudantes e bailarinos da companhia Espiral, fundada na década de 1980 como polo de resistência cultural a Pinochet, e da oficina da Universidad Academia de Humanismo Cristiano. Caminhamos quadra a quadra. A cada passo, um forte, outro manco, uma lembrança para Joan, senhora de olhos azuis, lábios finos e fios orgulhosamente brancos. Às vezes melancólica, mas vívida, lúcida e atilada.
Joan Alison Turner Roberts nasceu em Londres, em 1927. Apaixonou-se pela dança aos 5, talvez 6 anos, mas decidiu seu destino num dia de julho de 1944 ao assistir à coreografia A Mesa Verde da companhia alemã Ballet Jooss, pela primeira de muitas vezes. Queria ser bailarina. “Mas nunca gostei do balé clássico. Estraçalhava a sapatilha. Sempre preferi a dança contemporânea. Gosto da arte mais vital, impulsiva e dramática.” Em 1951, uniu-se à companhia, e logo interpretou o papel da guerrilheira de A Mesa Verde que tanto admirava.
No pós-guerra, entre turnês europeias e ensaios em Essen, lembrança de uma Alemanha fragmentada por um muro, Joan se apaixonou pelo bailarino chileno Patricio Bunster. Em outubro de 1953, casaram-se em Londres. Após o fim do Ballet Jooss, decidiram mudar para o Chile. Assim, num dia nublado de julho de 1954, Joan embarcou no S.S. Cuzco no porto de Liverpool, rumo a Santiago. Cruzou o Atlântico para reencontrar Patricio, que voltara meses antes. “Era uma gringa terrível, terrível. Extremamente inglesa. Ainda no navio, arrisquei aprender o castelhano, sem sucesso.” Mas uma vez firmada em território latino-americano, não tardou para dominar o idioma.
No Chile, Joan e Patricio logo se integraram ao Ballet Nacional. Ela, uma dançarina londrina que se aventurou numa terra distante, onde foi convidada a lapidar novos talentos. Ele, um bailarino que voltava para casa, onde se tornaria um dos principais coreógrafos do país. Ficaram juntos até 1960 – Joan, grávida pela primeira vez; Patricio, apaixonado por uma jovem ex-Miss Chile. “Nós nos separamos dolorosamente. Por que dolorosamente? Ora, dói, né?”
Manuela nasceu em maio de 1960. Sem Patricio, Joan passou a se sentir uma forasteira no país. Mergulhou numa depressão abissal, corpo e alma em frangalhos, tanto que nem imaginava voltar a dançar.
Caminhamos. Joan conheceu Víctor primeiro como estudante de teatro da Universidad de Chile, onde dava aulas de expressão corporal, por volta de 1957. “Era um excelente aluno, talentoso, expressivo e muito ágil. Tempos depois, disse-me que se apaixonou por mim ao me ver dançar pela primeira vez”, lembra.
Acaso feliz, quando foi visitar a recém-nascida Manuela, Patricio levou o amigo Víctor junto. Não muito tempo depois, Víctor, raminho de flores nas mãos, voltou a visitar Joan. Também a reencontrou fortuitamente no tal Café São Paulo, na Calle Huérfanos. E, assim, silenciosa e lentamente, o músico passou a invadir os pensamentos da bailarina.
Enquanto Joan se recuperava e voltava a dançar, Víctor embarcou numa primeira aventura além da cordilheira: com a companhia de teatro Cuncumén, fez uma turnê de quatro meses pelo Leste Europeu, época em que descobriu que a música era o que queria para sua vida. Além de cartas de amor, escreveu sua primeira canção pessoal durante a viagem – e a dedicou a Joan: Paloma Quiero Contarte. Em 1961, casaram-se em Santiago.
Entre 1961 e 1973, viveram felizes numa pequena casa no bairro alto da cidade, Las Condes – a mesma onde Joan vive até hoje. Em 1964, nasceu Amanda. “Mas Manuela era muito chiquitita quando Víctor e eu passamos a viver juntos. Manu sempre viu Víctor como seu papi, com todo o respeito a Patricio. E Víctor sempre dizia ter duas filhas”, diz Joan, voz branda num espanhol sem vestígios de sotaque britânico.
Nas férias faziam pequenas expedições Chile adentro, principalmente para os campos do sul, onde o verde ainda impressionava os olhos já não tão estrangeiros de Joan. No entanto, como a labuta cotidiana na capital lhes exigia muito tempo, as férias não eram tão frequentes. “Sempre pensávamos: depois teremos mais tempo.” Ainda assim, construíram um lar feliz, pois frequentes eram as declarações de amor de Víctor: “Você tem ideia da sorte que temos em nos amarmos tanto?”.
Nesses dez anos, Joan e Víctor também amadureceram suas ideias políticas, ao lado de suas carreiras artísticas. Ela, com o Ballet Popular, liderado por Patricio, que pretendia levar a dança a rincões não privilegiados da cidade. Ele, com o efervescente movimento Nueva Canción Chilena. Era uma época em que as artes, literatura e música passaram a se sintonizar mais intensamente com os bairros operários, os camponeses e as favelas. Em 1970, os Jaras militavam na Unidad Popular. A partir de uma música instrumental de Víctor, Joan fez a coreografia intitulada Venceremos, que se tornaria a assinatura do Ballet Popular na campanha de Salvador Allende, com quem brindariam a vitória em setembro.
Na casa dos Jaras, não passaram em branco as tensões políticas que paulatinamente se acirravam nos tempos de Allende. Era como se o ar estivesse ficando mais rarefeito, com a nebulosa atmosfera ideológica que se instaurava no país. Enquanto isso, Víctor já se tornara um dos principais músicos latino-americanos, famoso por suas canções revolucionárias.
No dia 11 de setembro de 1973 – uma manhã fria, melancólica e nublada, lembra Joan –, Víctor iria cantar na Universidad Técnica, na estreia de uma mostra sobre os horrores do fascismo. Ali, Allende iria discursar.
O discurso foi outro. No rádio, a partir do Palácio de La Moneda, o presidente literalmente se despediu do povo chileno. Minutos depois, o palácio foi tomado pelos militares. Ainda assim, Víctor decidiu ir à universidade – e se despediu de Joan.
Na universidade, Víctor foi preso e levado para o Estádio Chile, com outros 600 estudantes e professores. Os militares logo o reconheceram: Víctor Jara, o músico marxista, o comunista perigoso, mais um que seria subjugado a um militar lembrado como El Príncipe, posteriormente revelariam testemunhas. Víctor foi torturado por dias, ferido no corpo e no rosto, com toda sorte de instrumentos. “Toque violão agora, comunista de merda!”, dissera um dos oficiais, ao pisotear as mãos do músico de 40 anos. Quebraram-lhe os pulsos e esmagaram-lhe as mãos a pauladas, tanto que ficaram penduradas, quase amputadas. No dia 15, fuzilaram-no com mais de 44 tiros.
Só no dia 18, Joan voltaria a ver Víctor. Héctor, um jovem de 22 anos, tocou a campainha dos Jaras. “Sou da Juventude Comunista”, sussurrou, ao mostrar a carteira de identidade. Contou a Joan que Víctor estava no necrotério, onde um amigo, outro Héctor, de 19 anos, o vira.
Paramos. “Eram filas e filas de corpos, às vezes empilhados. Eram tantos que ocupavam os corredores, as salas administrativas, os lados todos do necrotério. Era Víctor”, lembra Joan, olhos marejados e fixos. “Era Víctor, meu amor. Ali morri também.
Quase um mês depois, Joan decidiu ir embora, levando as duas filhas e duas malas com discos e fitas. “Voltei para Londres no dia 16 de outubro de 1973. Mas não era como voltar ‘para casa’. Era para me refugiar. Santiago era minha casa.”
Ainda em 1973, 1974, foram realizados tributos a Víctor em São Francisco, Paris, Berlim. Nos anos seguintes, Joan visitou diversos países para contar o que se passava no Chile. Víctor tornara-se um símbolo, principalmente devido à brutalidade de sua morte. Joan, porém, queria resgatar sua vida – a história deles juntos.
Por volta de 1982, ainda sob Pinochet, voltou ao Chile. Queria rever a cordilheira, reencontrar amigos, reviver lembranças, queria escrever um livro in memoriam. “Para me inspirar para escrever, precisei voltar para casa”, conta. Depois, para datilografar suas memórias, precisou de perspectiva. Assim, publicou Canção Inacabada: A Vida e a Obra de Víctor Jara, em Londres, em 1983.
Tempos depois, Joan decidiu retornar a Santiago definitivamente. Em abril de 1993, criou a Fundación Víctor Jara para resgatar o legado do músico, que por muito tempo ficou na clandestinidade no país. No sobradinho marfim da Universidad Academia de Humanismo Cristiano, na Calle Huérfanos, visitamos a filha Manuela, e ali ficamos. “Chorei muito no passado. Mas é diferente lembrar Víctor agora. Gosto de recordar o caminho que trilhamos. Preservar sua memória é o que me mantém viva”, diz Joan, quebrando um momento de silêncio.
Voltamos a caminhar. Nos últimos tempos, Joan iniciou a campanha Justicia para Víctor, para esclarecer as circunstâncias de sua morte. Em dezembro de 2012, dois oficiais – Hugo Sánchez (preso) e Pedro Barrientos (refugiado na Flórida, tramita um pedido para sua extradição) – foram formalmente acusados de apertar o gatilho. Outros seis foram presos como cúmplices. El Príncipe não foi identificado até hoje.
Joan Jara vive sozinha em Las Condes. Detesta o bairro, agora emoldurado por arranha-céus e construções modernosas no lugar da vista para as montanhas dos Andes. “Mas não me mudarei dessa casa. Tudo que me lembra Víctor está aqui.” Também ex-bailarina, Manuela se casou com um músico “subversivo” como papi e teve quatro filhos. Amanda encontrou sua paz numa vila de pescadores perto de Valparaíso.
Diante do muro grafitado da fundação, Joan se senta num dos banquinhos da Plaza Brasil. Sorri com os olhos, tão claros e tão fixos, como que fascinada por algo no horizonte. Viúva desde os 46, Joan está apaixonada. “Sempre estive. Não sou religiosa, não é isso. Mas Víctor está sempre comigo. É o amor da minha vida. E, agora, sinto que minha missão está quase no fim.”
Fonte: O Estado de S. Paulo / Aliás
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