Revolver tumbas e mexer com esqueletos são formas de manipulação de algo putrefato, que exibem um tipo de prazer mórbido. Pior ainda, quando isto se faz sob a bandeira ideológica de uma suposta busca da verdade. Olado físico do cadáver toma o lugar do que deveria ser um modo simbólico de o país lidar com o seu próprio passado. A reelaboração cede o lugar à exploração dos esqueletos.
A exumação do cadáver do ex-presidente João Goulart está sendo a ocasião de toda uma narrativa que procura se sobrepor aos fatos. Desenterrar alguém é uma atividade dolorosa, que deveria ser evitada ao extremo, salvo se, bem fundada, fosse absolutamente necessária. Nada indica, segundo, mesmo, depoimentos de seus próximos, que o ex-presidente tenha sido envenenado. Foi construída toda uma "estória" que procura justificar tal ato com o objetivo explícito de exploração política, em uma nítida tentativa de reescritura da "história"
O país vive uma extraordinária fase de normalidade institucional, de estabilidade democrática e de fortalecimento das instituições, fruto de todo um processo negociado de transição política que culminou na Constituição de 1988. A nova Carta Maior tem demonstrado toda a sua vitalidade, inclusive em processos de mudança de vários de seus artigos, conforme procedimentos e regras que exibem toda a sua força.
Nunca é demais lembrar que a Lei da Anistia foi um instrumento central de todo esse processo, tendo como protagonistas a oposição liberal e de, encarnada por figuras notáveis como Ulysses Guimarães, Paulo Brossard, Teotônio Villela, Franco Montoro, Tancredo Neves, Mário Covas, entre outros; os dissidentes da Arena, que formaram o Partido da Frente Liberal; e os militares democráticos, que não só abriram esse caminho como o sustentaram.
A esquerda radical, derrotada, não tinha nada a dizer, senão reconhecer um processo de democratização de tipo liberal, levado a cabo contra as suas convicções. Na linguagem marxista, teve de se resignar à "democracia burguesa" pois o seu projeto socialista/comunista tinha fracassado.
O Brasil foi e é um exemplo político para o mundo. Exemplo de concórdia e de negociação, sabendo deixar as seqüelas do passado para trás, ciente de que o presente só vislumbra a esperança quando voltado para o futuro.
Ocorre que os derrotados estão, agora, tentando reescrever a história, procurando a vitória através da manipulação das ideias e de sua consequente exploração midiática.
Um episódio particularmente significativo ocorreu no reenterro do ex-presidente João Goulart com suas honras devidas. Havia parlamentares presentes e ministros. O Exército brasileiro esteve representado na figura do General Bolivar Goellner, comandante militar do Sul. Seguiu, enquanto soldado, o regulamento, conforme as determinações do Comando do Exército, subordinado à presidente da República. Atuou, portanto, enquanto militar constitucionalista que é.
Soube, no entanto, distinguir entre homenagem militar e suposto reconhecimento de um "erro histórico". Não havia nenhuma retratação em pauta, pela simples razão de que este não era o significado dessas honras fúnebres, tampouco cabendo a ele refazer a história. A história é constituída por fatos que não podem ser reescritos, embora, evidentemente, possam servir de aprendizado para as futuras gerações, não importando o lado atingido.
A ministra Maria do Rosário, irritada segundo a notícia, teria declarado que o assunto deveria ser levado ao Comando do Exército. Um outro parlamentar utilizou da ironia para dizer que nem sabia o nome do comandante militar do Sul e que este deveria apenas seguir o regulamento. Queria que ele o desrespeitasse? Trata-se de afrontas totalmente desnecessárias à instituição militar que, sim, garantiu a transição democrática e foi sua garantia em momentos difíceis.
Note-se que a exumação do cadáver para exames toxicológicos e outros deixou de ser a questão e o problema se deslocou para as honras militares do novo enterro. Já era um despropósito a exumação, que foi seguida de um espetáculo político, cada partido e político procurando extrair o máximo de benefícios. Foi uma forma canhestra de reescritura da história. O recato desapareceu em proveito da ideologia.
Já não se fala mais dos exames. Seus "resultados" conforme foi anunciando, podem demorar entre seis meses e um ano. Um dos especialistas, aliás, é um médico cubano, como se a ditadura comunista caribenha fosse um grande centro de medicina, contando com profissionais e laboratórios mundialmente renomados. Deveriam, isto sim, enterrar o seu próprio regime político, exemplo de abolição das liberdades e da democracia.
O problema tornou-se o "reenterro" como se a exposição do cadáver devesse ser seguida de atos de desrespeito à instituição militar, provocada na figura de seu representante. Sua resposta, contida e clara, mostra o amadurecimento do Exército, precisamente quando confrontado aos que procuram provocá-lo. Por que, aliás, a provocação?
É como se a exumação e o novo enterro tivessem como finalidade uma rees-critura histórica, que poderia levar à abolição da Lei da Anistia. Já não bastou a Comissão da Verdade ter se recusado a investigar os crimes da esquerda armada, em um comportamento evidentemente parcial. Tampouco é suficiente que os que propugnavam estabelecer no Brasil uma ditadura comunista sejam agora apresentados como "combatentes da liberdade" Não prezam a estabilidade institucional do país?
Parece não haver limites. Agora, outra reescritura entra em pauta, a da morte do ex-presidente Juscelino Kubitschek, apresentada como "assassinato político". Todos os especialistas que analisaram o fato se recusam a essa nova pantomima, reiterando o acidente que foi. Os cadáveres estão se tornando protagonistas políticos graças a esses criadores de "mortos-vivos"
Pensam que o país deve seguir o exemplo da Argentina que se enterra cada vez mais?
Denis Lerrer Rosenfield é professor de filosofia na Universidade Federal do Rio Grande do Sul
Fonte: O Globo
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