sexta-feira, 5 de setembro de 2014

Maria Cristina Fernandes: Sem o voto de Bergoglio

• O papa Francisco é mais ousado que as candidatas

- Valor Econômico

Com o joelho no assento e o braço apoiado no encosto da poltrona do voo que o levou de volta a Roma, o papa Francisco falou aos jornalistas que embarcaram com ele no Rio e se sentaram ao fundo da cabine do avião: "Se alguém é gay, busca Deus e tem boa vontade quem sou eu para julgá-lo?"

A declaração correu o mundo. O papa pop que recusara as pompas do Vaticano tinha escolhido a viagem a um país cujo avanço evangélico ameaça a condição de maior população católica do mundo para mostrar que entrara na cruzada com outras armas.

Não poderia haver contraste maior com seu antecessor, Bento XVI, que, além de nunca se permitir o coloquial 'gay', considerava a homossexualidade coisa do diabo.

Jorge Bergoglio voltaria ao tema outras vezes. O problema, insistia, não eram os homossexuais, mas os lobbies. Parecia querer dizer que a igreja estava acima deles. Daí a abertura. No início deste ano, falaria a eclesiásticos de escolas católicas: "O educador deve se perguntar como anunciar Jesus Cristo a uma geração que muda".

O bispo de Guarulhos, d. Luiz Gonzaga Bergonzini, morreu em 2012, mas foi o furacão Bergoglio que levava a crer numa sucessão presidencial menos pautada pelo discurso religioso.

Em 2010 o bispo da segunda maior diocese do Estado de São Paulo, pregava no púlpito e em seu blog contra a 'ditadura gay', levantava dúvida sobre estupros sem consentimento para atacar o aborto legal e dizia que 'os verdadeiros cristãos' não podiam votar no PT.

Parecia acolhido por um papa que, às vésperas do segundo turno, pediu a bispos brasileiros que orientassem os fiéis a votar contra projetos políticos favoráveis a descriminalização do aborto. Naquela eleição, a campanha tucana tinha pregado em Dilma Rousseff a pecha de abortista.

Quatro anos depois, por razões opostas às de Joseph Ratzinger, Bergoglio deve ter pouca influência no segundo turno nas eleições brasileiras. As prováveis finalistas não estão a salvo dos lobbies nem parecem talhadas para falar a 'uma geração que muda'.

Marina Silva se apresenta como portadora dos dois predicados mas não precisou de um confessionário para se mostrar aquém de ambos. Tivesse se omitido no tema, como seus dois principais adversários, poderia ter mantido a postura ecumênica com a qual estreou este ano.

A predestinação de sua candidatura parecia tão eloquente que já não carecia de evocações bíblicas. É o recuo em seu programa de governo que ameaça encarcerá-la no nicho religioso.
Os marinistas acusam o PSB de prender sua candidata à 'velha política' mas o partido que a abrigou foi um dos mais engajados na tramitação do projeto da deputada Iara Bernardi (PT-SP) que equipara a discriminação contra gays ao preconceito racial.

Além de voltar atrás no projeto que criminaliza a homofobia, Marina negou apoio ao casamento gay dizendo-se favorável apenas à união civil entre pessoas do mesmo sexo. Respaldou-se no Supremo, que já garantiu a união civil, e disse acatar a Constituição no veto ao casamento. Deixou um grande número de eleitores na dúvida: se é para se deixar governar pelo Supremo, por que é preciso eleger uma presidente?

Marina não perdeu apenas a oportunidade de defender um Estado que protege direitos e condena a intolerância em troca do apoio de Marco Feliciano. Perdeu também a chance de se mostrar mais sintonizada com a mudança do que sua principal adversária.

Depois de atravessar uma campanha acuada pelo fundamentalismo religioso em 2010, Dilma não se arvorou a desafiá-lo. Em reação a Marina, agora diz apoiar a criminalização da homofobia, mas o projeto, depois de 13 anos de tramitação, foi arquivado no Senado graças a atuação de suas lideranças que chegaram a falar do risco de padres e pastores serem presos por suas pregações.

No afã de se contrapor a Marina, Dilma chegou a acenar com a urgência na tramitação na Lei Geral das Religiões, que é antes uma demanda das cúpulas religiosas que dos fiéis. Ou, para ficar no linguajar mais moderno de Bergoglio, atende aos lobbies.

O projeto faz uma faxina nos templos sem expulsar os vendilhões. Estende a todas as religiões os termos do acordo do Brasil com a Santa Sé, firmado no pontificado de Ratzinger com o governo Luiz Inácio Lula da Silva e ratificado pelo Congresso em 2009.

Relatado pelo deputado Eduardo Cunha (PMDB-RJ), o projeto da lei geral das religiões prevê reconhecimento imediato pelo Estado de igrejas; ensino religioso, como matéria facultativa, em escolas públicas; tempos religiosos isentos de tributos e mantidos pelo Estado; e igrejas imunes a obrigações trabalhistas.

O projeto é fortemente apoiado pelo lobby evangélico que se vê direito de reivindicar para outras denominações religiosas as regalias estabelecidas para a igreja católica. A reivindicação é legítima, o que não significa que deva ser acatada. A remediar o acordo com a Santa Sé, a candidata presidente prefere ampliá-lo.

Além de dar abrigo ao projeto, o governo Dilma, a exemplo do que foi feito como kit gay nas escolas, desbaratou uma campanha de combate a doenças sexualmente transmissíveis planejada pelo Ministério da Saúde.

O desempenho de Dilma no tema mostra que não é preciso eleger alguém de convicções religiosas como Marina para que o fundamentalismo encontre abrigo. Os quatro anos do governo Dilma e a estreia de Marina na campanha propagandeiem o atendimento de lobbies religiosos como defesa da cidadania.

É possível que ambas se guiem nessa estrada menos por suas convicções religiosas e mais por pesquisas como o último Ibope que mostram 53% de rejeição ao casamento gay. O apoio está em 40%. Não é uma maioria tão expressiva assim que não possa ser cativada pela política e pela ideia de que, sem um Estado laico, não é possível garantir liberdade religiosa.

Se o vento, de fato, é de mudança, diria um maldito comunista italiano, o velho está morrendo, mas ainda pode demorar um bocado para o novo aparecer. Talvez ainda não seja desta vez que os brasileiros vão poder usufruir de uma campanha eleitoral livre do que o papa um dia chamou de 'obsessões' do discurso religioso.

Francisco Bergoglio ousou na política na tentativa de recuperar terreno para sua religião. Os candidatos se deixam aparelhar pela obsessão religiosa para se apequenar na política.

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