• Preso há seis meses, o engenheiro Léo Pinheiro, ex presidente da OAS, uma das empreiteiras envolvidas no escândalo da Petrobras, admite pela primeira vez a intenção de fazer acordo de delação premiada. Seu relato mostra o quanto ele era íntimo do presidente Lula.
Robson Bonin - Veja
O engenheiro Léo Pinheiro cumpre uma rotina de preso da Operação Lava-Jato que, por suas condições de saúde, é mais dura do que a dos demais empreiteiros em situação semelhante. Preso há seis meses por envolvimento no esquema do petrolão, o ex-presidente da OAS, uma das maiores construtoras do país, obedece às severas regras impostas aos detentos do Complexo Médico-Penal na região metropolitana de Curitiba. Usa o uniforme de preso, duas peças de algodão azul-claras. Tem direito a uma hora de banho de sol por dia, come "quentinhas" na própria cela e usa o chuveiro coletivo. Na cela, divide com outros presos o "boi", vaso sanitário rente ao piso e sem divisórias. Dez quilos mais magro, Pinheiro tem passado os últimos dias escrevendo. Um de seus hábitos conhecidos é redigir pequenas resenhas e anexá-las a cada livro lido. As anotações feitas são muito mais realistas e impactantes do que as literárias. Léo Pinheiro passa os dias montando a estrutura do que pode vir a ser seu depoimento de delação premiada à Justiça. Ele foi durante toda a década que passou o responsável pelas relações institucionais da OAS com as principais autoridades de Brasília. Um dos capítulos mais interessantes de seu relato trata justamente de uma relação muito especial — a amizade que o unia ao ex-presidente Lula.
De todos os empresários presos na Operação Lava-Jato, Léo Pinheiro é o único que se define como simpatizante do PT. O empreiteiro conheceu Lula ainda nos tempos de sindicalismo, contribuiu para suas primeiras campanhas e tornou-se um de seus mais íntimos amigos no poder. Culto, carismático e apreciador de boas bebidas, ele integrava um restrito grupo de pessoas que tinham acesso irrestrito ao Palácio do Planalto e ao Palácio da Alvorada. Era levado ao "chefe", como ele se referia a Lula, sempre que desejava. Não passava mais do que duas semanas sem manter contato com o presidente. Eles falavam sobre economia, futebol, pescaria e os rumos do país. Com o tempo, essa relação evoluiu para o patamar da extrema confiança — a ponto de Lula, ainda exercendo a Presidência e depois de deixá-la, recorrer ao amigo para se aconselhar sobre a melhor maneira de enfrentar determinados problemas pessoais. Como é da natureza do capitalismo de estado brasileiro, as relações amigáveis são ancoradas em interesses mútuos. Pinheiro se orgulhava de jamais dizer não aos pedidos de Lula.
Desde que deixou o governo, Lula costuma passar os fins de semana em um amplo sítio em Atibaia, no interior de São Paulo. O imóvel é equipado com piscina, churrasqueira, campo de futebol e tem um lago artificial para pescaria, um dos esportes preferidos do ex-presidente. Fora do poder, é lá que ele recebe os amigos e os políticos mais próximos. Em 2010, meses antes de terminar o mandato, Lula fez um daqueles pedidos a que Pinheiro tinha prazer em atender. Encomendou ao amigo da construtora uma reforma no sítio. Segundo conta um interlocutor que visitou Pinheiro na cadeia, esse pedido está cuidadosamente anotado nas memórias do cárcere que Pinheiro escreve.
Na semana passada, a reportagem de VEJA foi a Atibaia, região de belas montanhas entrecortadas por riachos e vegetação prístina. Fica ali o Sítio Santa Bárbara, cuja reforma chamou a atenção dos moradores da região. Era começo de 2011 e a intensa atividade nos 150 000 metros quadrados do sítio mudou a rotina da vizinhança. Originalmente, no Sítio Santa Bárbara havia duas casas, piscina e um pequeno lago. Quando a reforma terminou, a propriedade tinha mudado de padrão. As antigas moradias foram reduzidas aos pilares estruturais e completamente refeitas, um pavilhão foi erguido, a piscina foi ampliada e servida de uma área para a churrasqueira.
O que mais chamou atenção, além da rapidez dos trabalhos, é que tudo foi feito fora dos padrões convencionais. A reforma durou pouco mais de três meses. Alguns funcionários da obra chegavam de ônibus, ficavam em alojamentos separados e eram proibidos de falar com os operários contratados informalmente na região e orientados a não fazer perguntas. Os operários se revezavam em turnos de dia e de noite, incluindo os fins de semana. Eram pagos em dinheiro. "Ajudei a fazer uma das varandas da casa principal. Me prometeram 800 reais, mas me pagaram 2 000 reais a mais só para garantir que a gente fosse mesmo cumprir o prazo, tudo em dinheiro vivo", diz o servente de pedreiro Cláudio Santos. "Nessa época a gente ganhou dinheiro mesmo. Eu pedi 6 reais por metro cúbico de material transportado. Eles me pagaram o dobro para eu acabar dentro do prazo. Eram 20000 por vez. Traziam o pacotão, chamavam no canto para ninguém ver, pagavam e iam embora", conta o caminhoneiro Dário de Jesus. Quem fazia os pagamentos? "Só sei que era um engenheiro que esteve na obra do Itaquerão. Vi a foto dele no jornal", recorda-se Dário.
O arquiteto contratado para coordenar os trabalhos chama-se Igenes Irigaray Neto. Ele foi mandado de Dourados (MS) especialmente para tocar o projeto em Atibaia. Irigaray Neto foi encaminhado pelo empresário José Carlos Bumlai, que, a exemplo do empreiteiro da OAS, é amigo de Lula, cuida de seus assuntos pessoais e é personagem recorrente de várias histórias mal contadas que envolvem poder e dinheiro durante o governo petista. Bumlai apareceu até no escândalo do petrolão, em que é acusado de ter indicado um dos diretores corruptos da Petrobras.
Dono de uma loja de decoração, o empresário Matuzalem Clementoni conheceu Lula durante o trabalho de decoração do sítio. Matuzalem costuma tomar café com o "patrão", como ele se refere ao ex-presidente. O ex-governador de Mato Grosso do Sul Zeca do PT já até pescou no novo lago. "Eu que ensinei o Lula a pescar. Ele é bom de pesca, mas no sítio dele os peixes são criados para que só ele consiga fisgá-los." Lula encomendou ao amigo da OAS a reforma do sítio, que os amigos e políticos identificam como sendo do ex-presidente. No cartório da cidade, porém, a escritura de posse está em nome dos empresários Jonas Suassuna e Fernando Bittar — ambos sócios de Fábio Luís da Silva, o Lulinha, filho do ex-presidente. Suassuna e Bittar compraram o sítio em agosto de 2010, quatro meses antes de Lula deixar o cargo. Pagaram 1,5 milhão de reais pela propriedade. Lulinha mora em um prédio de luxo, localizado numa das áreas mais nobres de São Paulo, cujos apartamentos são avaliados em 6 milhões de reais. O apartamento onde Lulinha mora pertence a Suassuna. Procurados por VEJA, os empresários beneméritos da família Lula da Silva não quiseram se pronunciar.
Léo Pinheiro fez um segundo favor ao ex-presidente no ramo imobiliário. O empreiteiro conta que, a pedido do ainda presidente Lula, a OAS incorporou prédios inacabados da Cooperativa dos Bancários (Bancoop), entidade ligada ao PT que, em 2006, deu o golpe em 3 000 mutuários em São Paulo. Durante anos, dezenas de famílias que pagaram fielmente suas mensalidades à Bancoop tiveram seu suado dinheirinho desviado para as campanhas eleitorais do PT. Sem uma mãozinha da OAS, poderia dar cadeia o golpe da Bancoop, um ensaio geral para a roubança generalizada que marcaria mais tarde as gestões petistas. Cadeia para quem? Para João Vaccari Neto, tesoureiro do PT que, aliás, está preso por envolvimento no escândalo da Petrobras. Fiel ao amigo Lula, a OAS de Léo Pinheiro concluiu no início do ano o edifício Solaris, da Bancoop, que fica na praia do Guarujá. Por que o Solaris foi concluído, enquanto centenas de outros lesados pela Bancoop esperam em vão pela construção das unidades que compraram? Bem, o fato de Lula e Vaccari terem apartamentos no luxuoso Solaris explica as prioridades da OAS. Aos amigos, tudo. O tríplex de cobertura do ex-presidente no edifício Solaris, do Guarujá, tem 297 metros quadrados e elevador interno. O espaço é suficiente para construir quase cinqüenta celas iguais à que hoje serve de residência a Léo Pinheiro na penitenciária em Pinhais.
Em suas memórias do cárcere, o sócio da OAS anotou um terceiro favor feito a Lula, mas já na condição de ex-presidente. Em 2012, a Polícia Federal desmantelou uma quadrilha que vendia facilidades no governo. No topo da organização apareceu uma figura pouco conhecida. Ex-secretária de sindicato, Rosemary Noronha era chefe do escritório da Presidência da República em São Paulo. Os investigadores descobriram que ela aproximava autoridades de empresários em troca de propinas. A questão é que Rosemary não era uma corrupta qualquer. Amiga íntima de Lula desde os tempos das greves do ABC paulista, Rose era tratada no governo como uma primeira-dama informal. Em viagens internacionais, quando a primeira-dama não podia ir, ela era incluída na comitiva presidencial. Em viagem a Roma, hospedou-se na embaixada brasileira, que lhe reservou o melhor quarto do Palazzo Pamphili, a especialíssima sede da nossa representação diplomática na Itália. Caída em desgraça, e sentindo-se abandonada, Rose ameaçou revelar seus segredos. Léo Pinheiro entrou em cena para ajudar o amigo. "A gente precisa ajudar o Lula nisso", ouviu de um interlocutor. Logo, João Batista de Oliveira, marido de Rosemary, conseguiu um bom emprego. A ex-secretária teve à disposição uma banca de 38 advogados para defendê-la na Justiça. Procurada, Rosemary Noronha disse que não iria falar sobre isso.
Foi com base no conteúdo das anotações de Léo Pinheiro que VEJA pautou a reportagem que aparece nestas páginas. Foi possível confirmar a maior parte das suspeitas que as anotações do preso levantam. A reportagem fica como registro indelével no caso de Léo Pinheiro, eventualmente beneficiado por um habeas corpus do Supremo Tribunal Federal (STF), sair da cadeia, voltar a ser apenas o amigo de Lula, renegando o que anotou e contou. Diz um dos assessores mais próximos do empreiteiro: "A única coisa que impediu o Léo até agora de colaborar com a Justiça é a perspectiva de sua libertação, que alguns advogados asseguram que vai ocorrer em breve". Em situação semelhante encontra-se Ricardo Pessoa, da UTC, empreiteiro preso, que também deixou escapar pistas dos danos que pode causar a Lula e outros poderosos. Em troca de redução da pena, ele se compromete a revelar o esquema de financiamento de campanhas do PT e de políticos do partido.
Léo Pinheiro e Ricardo Pessoa estão colocados diante de um interessante dilema. Primeiro, se propuserem e for aceita sua delação premiada, eles receberão pena bem menor, como já aconteceu com Paulo Roberto Costa e o doleiro Alberto Youssef (veja a reportagem ©). Segundo, se optarem por não fazer a delação premiada, o mais certo é que recebam, em alguns casos, penas dilatadas de algumas dezenas de anos.
Ao optar por ser delator, porém, o preso renuncia ao direito de recorrer da pena e tem de começar a cumpri-la imediatamente. Ao optar por não delatar, a pena será altíssima, mas o preso tem direito a recorrer aos tribunais superiores em liberdade e só cumprir a pena quando vier a sentença definitiva, o que pode demorar até oito ou dez anos. E mais compensador começar a cumprir um ano em regime fechado e depois sair livre, caso do delator Paulo Roberto Costa? Ou não fazer delação, pegar uma pena gigantesca, mas não cumpri-la um único dia até que venha a condenação definitiva. Para um preso com 63 anos de idade e saúde frágil, como é o caso de Léo Pinheiro, talvez seja mais vantajoso pessoalmente esperar um habeas corpus que o tire da prisão preventiva dentro de alguns dias e, depois, seja qual for a sentença recebida, recorrer em liberdade, mesmo que com desonra. Se consultar sua consciência, porém, Pinheiro poderia optar por contar tudo o que sabe, cumprir um breve período na prisão como delator e deixar às gerações futuras de brasileiros um legado positivo, que ele sonegou à atual.
Com reportagem de Kalleo Coura e Hugo Marques
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