Por Heitor Ferraz – Valor Econômico / Eu & Fim de Semana
Em novembro de 1978, saía pela Avenir Editora um livrinho magro, mas estupendo. Era o quinto volume da coleção "Depoimentos" e se chamava "Uma Luz do Chão", de Ferreira Gullar. Na capa, um delicado desenho de Oscar Niemeyer representando uma arquitetônica mão segurando uma flor.
O livrinho reunia três artigos muito pessoais do poeta maranhense, nos quais ele retraçava seu itinerário poético e refletia sobre a íntima relação de sua poesia com a vida. "Quando digo que minha poesia se confunde com minha vida digo o que qualquer outro poeta diria de sua própria poesia", escrevia um já distante Gullar. Em cada linha desses escritos, havia uma vitalidade que até hoje impressiona. Era um poeta e seu ofício, muito longe de qualquer fardão acadêmico e de qualquer sonho de busto em praça pública.
Os tópicos dessa trajetória, até aquele momento, ele mesmo os definiu logo de saída na introdução, traçando um caminho de embate visceral com a linguagem poética: "Ateei fogo ao verbo, minhas vestes mortais, como se fosse meu corpo. Não era. E sobrevivi, sobrevivi, sobrevivi. Abati a poesia, calquei-a sob os pés, mijei nela. Lavei as mãos, virei concretista, neoconcretista, enterrei o poema numa casa da Gávea. E sepultei com ele a metafísica". Um itinerário de implosões e explosões que acabou pautando, de certa forma, as entrevistas de Gullar, detalhando cada um desses momentos de viragem dentro de sua obra.
Agora, um novo livro parece trazer a revisão dessa trajetória, mas num texto bem mais comportado, menos explosivo do que aqueles dos anos 70. Trata-se do recém-lançado "Autobiografia Poética e Outros textos". Na capa, uma foto do poeta em 1976. E no miolo uma reunião de textos: uma autobiografia, o "Manifesto Neoconcreto", que foi redigido por Gullar, duas entrevistas e três ensaios biográficos sobre Rimbaud, Fernando Pessoa e César Vallejo.
Claro que seu itinerário em nada mudou, apenas agregou outros momentos importantes vividos a partir de 1978. Mas num ponto esse texto-base da autobiografia parece comportar uma espécie de revisão de trajetória. Sabemos que Gullar se desentendeu com os concretistas de São Paulo e sua concepção de poesia era bem diferente da experiência "verbivocovisual" do trio formado por Décio Pignatari e os irmãos Haroldo e Augusto de Campos.
Se nos textos de 1978 esse rompimento não merecia nem bem uma linha, resumindo-se mesmo a uma postura diferente em relação ao trabalho com a linguagem na poesia, neste novo relato o capítulo ganha farta e minuciosa digressão de Gullar, até mesmo uma certa ponta de ressentimento.
Um dos pontos da querela é o do querer lembrar aos concretos que ele, Gullar, os havia apresentado à poesia de Oswald de Andrade. E também provocar dizendo que ele considerava o grupo paulista "irritante" e o programa poético deles "cheirava a charlatanice".
De certa maneira, sem querer entrar nos meandros de uma querela pessoal, ou acerto de contas, Ferreira Gullar parece apontar o tempo todo para o seu protagonismo na cena cultural brasileira contemporânea. Um desejo que enfraquece seu relato, já que desnecessário: para isso, bastaria ler sua obra, os altos e baixos de uma das mais importantes produções poéticas da segunda metade do século XX.
Apesar de frisar a importância da experiência e do embate (este, sim, concreto) com a vida e com a linguagem para a criação artística, seu novo autorretrato não tem a força gravitacional dos relatos de "Uma Luz do Chão", muito mais intensos e poéticos. De qualquer forma, Gullar é sempre Gullar, e tomar contato com sua oficina literária, como a passagem sobre a composição de "Poema Sujo", certamente sua melhor obra, é uma aula sobre essa luta corporal entre o sentimento e a linguagem.
Claro que caberia ainda, na edição, alguma nota explicativa sobre os objetivos que nortearam essa reunião de textos (e mesmo alguma indicação da data em que foi escrita essa nova "autobiografia"). Enfim, uma palavra dos organizadores justificando o material coletado para o livro.
"Autobiografia Poética e Outros Textos"
Ferreira Gullar Autêntica, 160 págs., R$ 44,90
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