• A política é crua e pode ser cínica: os crimes deixam de "existir" por uma única razão, o apoio parlamentar
Luís Francisco Carvalho Filho – Folha de S. Paulo
Ao cuidar da responsabilidade do presidente da República, a Constituição estabelece dois caminhos para o seu afastamento. É necessário o voto de dois terços da Câmara dos Deputados para que a acusação seja admitida: se o crime é comum, o julgamento se dá pelo Supremo Tribunal Federal; se o crime é de responsabilidade, o veredicto é do Senado. Nas duas hipóteses, com a instauração do processo, o presidente é afastado das funções. Se o julgamento não for concluído em 180 dias, o processo segue, mas o presidente retoma o governo.
No STF, o caso depende de critérios técnicos: acusação precisa, que permita a ampla defesa, justa causa, adequação exata da conduta ao tipo penal, prova da materialidade e das intenções etc. Por isso, juristas da mais alta corte decidem, primeiro, o recebimento da denúncia e, depois, o mérito da acusação.
O julgamento pelos senadores é político. Não são especialistas e decidem sem rigor jurídico. Collor renunciou em cima da hora para salvar os direitos políticos, mas foi cassado. Não seria condenado por crime comum e nem por isso se contesta a legitimidade do impeachment.
Ainda que um mesmo fato possa configurar crime comum e crime de responsabilidade, os processos são independentes e podem ter desfechos diferentes.
Não faltam razões para o impedimento de Dilma. Um conjunto de atos governamentais conspira contra o princípio da probidade na administração e as regras orçamentárias. Sua campanha é suspeita de drenar recursos da corrupção.
Além das mentiras, do descontrole e das pedaladas fiscais, das despesas não autorizadas, há uma gestão temerária ou fraudulenta que causou o colapso da economia brasileira. Seu governo minou decisivamente o valor e a imagem da Petrobras. Tudo isso ou cada um dos acontecimentos, mais ou menos graves, pode, em tese, indicar a configuração, para dois terços dos deputados, de um delito de responsabilidade bastante amplo e impreciso como o "proceder de modo incompatível com a dignidade, a honra e o decoro do cargo".
Os argumentos que a presidente desfila em sua defesa são frágeis. Outros governos fizeram o que ela fez? Pode ser, mas isso não a autorizaria a repetir o que a lei proíbe.
Sustenta, também, que não pode ser responsabilizada por fatos ocorridos no mandato anterior. Não é o que a Constituição diz: na vigência do mandato, o presidente só não pode ser responsabilizado por atos estranhos ao exercício de suas funções. O primeiro mandato soma-se ao segundo. A reeleição não gera o esquecimento do que se fez em 2014, por exemplo, principalmente se as ilegalidades tinham por objetivo alcançar, a qualquer custo, a vitória eleitoral.
Impeachment não é golpe. É a solução institucional prevista quando o presidente, além dos malfeitos, perde, pelo isolamento popular e congressual, condições de governar. É afastado do cargo por ações e omissões, mas, sobretudo, pela matemática dos votos.
A solução é extrema e parece drástica demais. Mas a política é crua e pode ser cínica, injusta: os crimes deixam de "existir" por uma única razão, o apoio parlamentar.
Dilma sabe disso e trabalha para ganhar tempo e, quem sabe, diluir a fraqueza que contamina o seu mandato. O futuro dirá.
Nenhum comentário:
Postar um comentário