sexta-feira, 13 de novembro de 2015

César Felício: Nação partida

• Argentina deve renovar sua cisão nas eleições

- Valor Econômico

Não deixa de ser irônico, na eleição argentina que se resolverá no dia 22, que o maior adversário do kirchnerismo, Mauricio Macri, tenha em seu estilo algo em comum com a presidente Cristina Kirchner. O verticalismo na relação política, em que sempre se opta pelo risco maior de isolamento, caso a opção pela união implique em concessões relevantes aos aliados, é o traço de identificação mais marcante.

Normalmente identificado como conservador, Macri convergiu para o centro há muito tempo. Segundo um correspondente de um jornal americano em Buenos Aires, nos Estados Unidos seria um político democrata, e não republicano.

Há cerca de dois anos, em conversa com o Valor e "Folha de S.Paulo", Macri citou como referência nacional Arturo Frondizi, um presidente que combatia o peronismo e que foi derrubado pelos militares por não conseguir desarticulá-lo eleitoralmente, em 1962. Frondizi formou um partido chamado "União Cívica Radical Intransigente", cujo nome é autoexplicativo. A referência internacional que citou foi Fernando Henrique Cardoso.

A menção a FHC, em encontro com os jornalistas brasileiros, foi estudada: Macri parte do pressuposto que a política do continente se comporta como uma onda, e que um eventual triunfo seu irá impactar outras eleições, a começar da legislativa na Venezuela em dezembro. O ex-presidente brasileiro parece concordar.

Em entrevista ao "La Nacion" há duas semanas, FHC afirmou que o contágio de uma vitória oposicionista argentina na Venezuela seria "uma maravilha". Mas usou a entrevista para aconselhar Macri a ampliar alianças. "A habilidade de conseguir consensos é o que fará com que as pessoas confiem que Macri terá capacidade para governar a todos".

O prefeito de Buenos Aires conta com o apoio da União Cívica Radical e da deputada Elisa Carrió, duas forças antiperonistas tradicionais, que no espectro ideológico argentino equivaleriam, grosso modo, ao que era o PSDB no Brasil antes de Fernando Henrique chegar ao poder, em 1994. Assim que terminou o segundo turno, o candidato inaugurou uma estátua de Perón, em um aceno oblíquo aos dissidentes do peronismo.

Mas aos aliados Macri não cedeu a vaga de vice na chapa e nem o governo do estado mais populoso, a província de Buenos Aires, que reúne quase 40% do eleitorado. Os postos ficaram com duas políticas sem luz própria.

O prefeito de Buenos Aires nunca escondeu o seu desprezo por alianças. Para Macri, partidos e caciques políticos têm pouco valor. O que importa é construir uma imagem pública que estabeleça pontos de contato e atraia as mais díspares faixas do eleitorado. De acordo com Macri, os líderes partidários não controlam suas bases. É o que cansou de dizer em entrevistas a correspondentes internacionais todas as vezes em que era obrigado a responder como pretendia chegar à Presidência com tamanha soberba.

Macri nasceu na antipolítica. Filho de um plutocrata que enriqueceu no regime militar e no menemismo, ganhou notoriedade depois de ser vítima de um sequestro em 1991. Tornou-se cartola do Boca Juniors e elegeu-se prefeito de Buenos Aires, sucedendo a um desastroso governo da esquerda não peronista.

O kirchnerismo se apropriou do peronismo, mas ao eleger-se em 2003 o marido de Cristina, Nestor Kirchner, também era a seu modo um "outsider". Um governador da província de Santa Cruz chegar à Presidência era o equivalente ao governador do Amazonas conquistar o Palácio do Planalto.

Caberá a Macri, se eleito, administrar seu estilo personalista com um governo de minoria no Legislativo. Sua coalizão elegeu apenas 15 dos 72 senadores e 91 dos 257 deputados argentinos. Com muito a fazer: desde que ficou claro para Cristina que não haveria um terceiro mandato, a presidente argentina trabalhou para institucionalizar em lei diversas políticas que deixam seu sucessor engessado.

Entre elas, tornou obrigatória a autorização legislativa, com quórum de dois terços, para a diminuição da participação acionária do Estado em qualquer empresa. Os diretores do Banco Central ligados a corrente "La Campora", uma ala governista comandada pelo filho da presidente, contam com mandato até 2021.

Não é nada que não se possa modificar, dada a fluidez das instituições, mas o esforço para romper essas amarras deve reforçar o clima de confrontação.

O primeiro desafio terá nome e sobrenome: Alejandro Vanoli. É o presidente do Banco Central argentino, um kirchnerista empedernido, com mandato até 2019. A independência do BC argentino é relativa: o presidente tem mandato, mas pode ser destituído mediante consulta ao Legislativo. Em 2010, quando quis usar as reservas do BC para financiar gastos correntes, Cristina decidiu destituir o então presidente do banco, Martín Redrado, durante o recesso do Congresso. Redrado recorreu ao Judiciário, o impasse se arrastou e a presidente desmoralizou a institucionalidade argentina.

Caberá a Macri agora fazer o mesmo, se for eleito e realmente quiser mudar a política cambial e monetária do País. Um caminho para defenestrar Vanoli, como observou ontem o jornal "La Nacion", poderá ser o da judicialização. Pesa contra o atual presidente do BC denúncia de venda de contratos futuros de dólar com taxa cambial irregular.

No jogo eleitoral argentino, o conciliador por excelência é o rival de Macri, Daniel Scioli, que é o candidato apoiado por Cristina. O governador da província de Buenos Aires conseguiu prevalecer sobre rivais internos por ser o plano B de todos. Era assim, até o início da campanha. A dinâmica eleitoral o empurrou para as posições mais intransigentes. Scioli era favorito para levar no primeiro turno, mas ficou apenas três pontos percentuais à frente de Macri e agora tenta fazer a rejeição do rival subir demonizando-o.

É algo a que o Brasil já se acostumou. Em 1989, Collor estigmatizou Lula. Em 2006, Lula fez o mesmo com Alckmin. No ano passado, Dilma e Aécio levaram a radicalização ideológica a um nível estarrecedor. Na Argentina, jamais se disputou um segundo turno. Do mesmo modo, o país vizinho terá uma experiência inédita neste fim de semana, com o primeiro debate presidencial relevante da história. Scioli irá enfrentar Macri perante as câmeras em um clima de tudo ou nada. A Argentina já possui todo o instrumental para renovar sua cisão.

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