Valor / Cenários – Como desatar?
Nosso primeiro e grande desafio consiste em termos clareza da altura e profundidade da crise política, sob pena de incorrermos no erro de achar que basta remover alguns entraves e ela será resolvida. Apesar das aparências, dos lances vistosos da guerra congressual, ela se expressa plenamente na crueza dos fatos que impactam a população: desemprego, corrupção generalizada, recessão, volta da inflação, juros elevados, falta de credibilidade e confiança, só para citar alguns exemplos de nossa tremenda enrascada.
Em segundo lugar, é preciso grande esforço para, de alguma forma, criar uma superfície que nos sustente, a fim de não sermos tragados pela vertigem política para o poço sem fundo onde, todos os dias, vemos serem jogadas nossas esperanças. É fundamental encontrar pessoas, instituições, movimentos organizados ou autorais, setores e lideranças com ou sem partido nos mais diversos segmentos políticos, dispostos a pensar o país para além das próximas eleições.
Há dois trilhos sobre os quais é possível - se não um novo caminho, como diz o poeta Thiago de Mello - pelo menos tentar uma nova maneira de caminhar para sair da crise. O primeiro é o do total apoio ao combate à corrupção inédito, em profundidade e extensão, que vem sendo feito pelo Ministério Público, a Polícia Federal e a Justiça. O segundo deve ser um processo de articulação política às claras, em torno de uma agenda de transição, para gerar uma governança que traga alguma perspectiva de futuro para as políticas públicas, para os investimentos, para a vida das pessoas e o desenvolvimento da nação.
No trilho do combate à corrupção, é preciso não compactuar com movimentos erráticos, de salve-se-quem-puder, dos velhos atores acostumados a dominar o espaço da política com sua infindável capacidade de manobra, agora buscando novo polo de atração gravitacional, uma ponte para garantir seu futuro mudando as aparências sem alterar o status quo.
É preciso tomar cuidado para não permitir que, sob a oferta de um porto seguro na tempestade, fiquem ocultas as mesmas incompetências, privilégios, esquemas de corrupção e desejos inconfessos de frear os rumos das investigações.
É preciso evitar que as decisões e os recursos que pertencem a todos os brasileiros continuem sendo manejados no balcão de negócios e de interesses particulares em que se transformou - ressalvadas as honrosas e heroicas exceções de pessoas, lideranças, autoridades e instituições - uma boa parte do sistema político brasileiro.
Além do apoio às investigações, é preciso estabelecer medidas estruturantes que previnam a corrupção. Acabar com a quase certeza de impunidade já é um grande passo. Para isso, é fundamental abraçar as propostas do Ministério Público, consolidadas com a experiência da Operação Lava-Jato. Não se pode esperar solução para a crise vinda da parte degradada da política, cuja forma de agir e apego ao poder estão no alicerce da corrupção endêmica que é imperativo combater.
É igualmente importante romper com a velha servidão voluntária aos dogmas ideológicos, sempre indulgentes em perdoar de seus inimputáveis senhores aquilo que jamais poderia ser perdoado. Boa parte de nossa cultura política engajada tornou-se especialista em criticar, enfrentar, constranger, punir, execrar, até mesmo injustiçar. Em mobilizar para expurgar a incompetência, a corrupção e todos os pecados do espectro da direita, mas sequer foi alfabetizada, política e eticamente, para usar igual peso e medida para com os seus próprios erros, mesmo quando se tratam dos mais escabrosos pecados capitais.
Finalmente, é preciso também institucionalizar as conquistas, inclusive as alheias, encarar novos desafios no campo da democracia, da economia, da sociedade e do meio ambiente. A retomada dos investimentos depende de instituições sólidas, regras claras e estáveis e um Estado que funcione, do tamanho necessário para atender e regular as demandas da sociedade.
Estamos hoje entre um Estado provedor paternalista herdeiro da casa grande, e o Estado fiel depositário do espólio do feitor, que se limita a definir as regras que legitimem o chicote da competição predatória em favor do mercado.
Para quebrar produtivamente esse ciclo vicioso de estagnação e polarização estéril, será necessária muita inovação, sobretudo na política. A começar pela busca de novos significados, base sobre a qual se tornará possível estabelecer nova visão, novos processos e estruturas para assimilar as inúmeras oportunidades que emergem paralelas à crise.
E por que não substituir a velha polarização entre os espólios do senhor e do feitor pela força propulsora de um Estado Mobilizador, capaz de integrar as melhores contribuições de todos os setores da sociedade? Políticas públicas precisam resultar de negociação confiável e aberta para a tomada de decisões econômicas e sociais.
Essas são algumas pré-condições para a travessia para as próximas décadas que, espero, não sejam mais perdidas. Mas, para isso, precisamos olhar em volta e nos conectarmos verdadeiramente com as grandes transformações econômicas, sociais, comunicacionais, ambientais e políticas que estão ocorrendo no mundo, onde cada ser humano é potencialmente protagonista e gerador de informações para outros bilhões de pessoas, sem passar pelos canais tradicionais de poder e intermediação da informação. A era digital impacta também o mundo dos negócios, as dinâmicas urbanas, a forma como as empresas se relacionam com os consumidores e o trabalho se intensifica em conhecimento e se distancia dos processos manuais.
O grande enunciado da CoP-21 demonstra que, no âmbito de cada país, a transição para uma economia sustentável, geradora de novos empregos, produtos, materiais e serviços, onde o investimento volte a ocorrer, requer mais do que fórmulas bem desenhadas e planos, aqui fartamente apresentados nos últimos meses. Exige os meios de implementação, novas correlações de força, visão e ação política sustentadas pelo debate franco com a sociedade sobre as escolhas que teremos que fazer para superar a estagnação e os retrocessos econômicos e sociais que nos foram impostos. O momento não é o de saídas definitivas com respostas fechadas, mas o da transição. E quem sabe essa transição não se dê pela substituição do moribundo presidencialismo de coalizão, pelo de "proposição", onde a composição do governo e da maioria no Congresso se dá a partir de um programa pactuado com os mais diversos segmentos da sociedade.
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Marina Silva, ex-senadora e fundadora da Rede Sustentabilidade, foi ministra do Meio Ambiente e candidata ao Planalto em 2010 e em 2014.
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