- Folha de S. Paulo
"O governo brasileiro confia que serão preservadas e respeitadas as atribuições e prerrogativas constitucionais da nova Assembleia Nacional venezuelana e de seus membros." A nota do Itamaraty, precisa na linguagem e no tom, indica uma radical mudança de rumo do Brasil diante do regime chavista. É discutível se ela contribuirá para cercear a escalada autoritária de Caracas mas, certamente, oferece uma oportunidade histórica à esquerda brasileira. No passado, a esquerda europeia definiu sua natureza diante dos testes da URSS, da Hungria e da Tchecoslováquia. É esse o lugar que hoje ocupa a Venezuela, na América Latina.
"O Podemos tem que esclarecer de uma vez se defende a democracia na Venezuela", desafiou o jornal "El País" no 5 de janeiro. Há menos de três anos, Pablo Iglesias, que se tornaria o líder do novo partido de esquerda espanhol, celebrou o chavismo num ato convocado pela embaixada venezuelana em Madri. "Hugo Chávez era a democracia dos de baixo!", exclamou Iglesias um mês após a morte do caudilho. Mais tarde, confrontado com as urnas, ele trocou de registro, substituindo as referências à "revolução bolivariana" pelo elogio do modelo social-democrata dos países nórdicos, mas seu partido votou contra a resolução do Parlamento Europeu que pede a libertação dos presos políticos venezuelanos.
O Podemos não tem o direito de fingir que a história começa após a queda do Muro de Berlim –eis o sentido do repto do "El País". Na Europa, os partidos social-democratas completaram seu aprendizado democrático no entre-guerras, como fruto da experiência do stalinismo soviético. Depois, as invasões da Hungria (1956) e da Tchecoslováquia (1968) cindiram o movimento comunista, originando o eurocomunismo dos partidos italiano e espanhol, que declararam adesão ao princípio da democracia.
Na América Latina, por outro lado, a esquerda encontrou na Revolução Cubana um abrigo conveniente, isolando-se do debate de princípios que varria a Europa. Sob o teto de palha do castrismo, enfrentando regimes ditatoriais de direita, a esquerda latino-americana utilizou o antiamericanismo como um talismã capaz de silenciar os estrondos provenientes do Velho Mundo. Por aqui, magicamente, os intelectuais de esquerda conciliam a denúncia da ditadura de Pinochet com a apologia da ditadura de Castro. Mas a degradação autoritária da "revolução bolivariana" rompe o antigo encanto. Na hora do choque entre o regime chavista e a democracia representativa, as ruínas do século 20 amontoam-se diante de uma esquerda que teme olhar seu reflexo no espelho.
O presidente da Assembleia Nacional (AN) ordenou a remoção das imagens de Chávez que adornavam o plenário. A Venezuela testa o princípio da pluralidade: o conceito de que a nação não pertence a um movimento político. A maioria da AN empossou os três deputados ilegalmente impugnados por um tribunal servil à vontade do regime. A Venezuela testa o princípio da independência dos poderes: o conceito de que as prerrogativas do Executivo devem ser limitadas pelas instituições democráticas. A AN prepara-se para votar uma lei de anistia, libertando os oposicionistas encarcerados pelo regime. A Venezuela testa o princípio da liberdade política: o conceito de que a divergência de opinião é um direito sagrado dos cidadãos.
A prova de fogo ajudará a definir a natureza da esquerda brasileira. O PT nasceu da democracia, mas exibe uma alma dilacerada. De um lado, governou respeitando a Constituição e resistiu à tentação de buscar um terceiro mandato para Lula. De outro, acusa os críticos de representarem interesses estrangeiros, flerta com a censura e subordina as estatais aos interesses partidários. A nota do Itamaraty oferece ao partido a oportunidade de unificar intenção e gesto, jogando ao mar o lastro autoritário que o prende ao passado.
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