- Valor Econômico
• Trump chega ao poder com poucas dívidas políticas
Donald Trump não será o chefe de Estado de estilo mais brutal que emergiu das urnas nos últimos tempos. Dificilmente superará as palavras e ações de Rodrigo Duterte, o apoiador de esquadrões da morte que governa as Filipinas, vencedor de eleições em julho. Trump mencionou a possibilidade de barrar a entrada de muçulmanos, Duterte a de comê-los vivos, em recado a uma corrente fundamentalista que age no país.
A interpretação de que o mundo caminha para uma única direção é tentadora, porque amparada em evidências que indicariam que há um processo que não começou com Trump e nem terminará com ele.
A questão é que não parece haver uma única corrente de ar, mas várias, para a construção da tempestade. A onda que vai do Brexit a Trump, passando pela Hungria, pelo resultado em alguns estados da Alemanha e que pode desembarcar na Normandia e levar Marine Le Pen à Presidência da França no próximo ano se alimenta de uma reação à globalização, da xenofobia, de uma aversão ao multiculturalismo e do fervor nacionalista.
Esta corrente apenas pontualmente passou pelo hemisfério sul. No caso de Duterte, o que alimentou sua eleição foi a proposta de se combater a criminalidade comum com ações de extermínio. Não se trata de um 'outsider', uma vez que foi prefeito de uma cidade importante por 22 anos. É a truculência fanfarrona e o nacionalismo que o aproximam de Trump.
Mais complicado ainda é estabelecer razões comuns para os fenômenos eleitorais do hemisfério norte e o resultado do plebiscito na Colômbia que rejeitou o acordo de paz com as FARC. É óbvio que ali houve uma vitória conservadora, que não se trata apenas do rechaço ao processo abençoado pelo papa e celebrado em Havana.
O presidente Juan Manuel Santos, ganhador do prêmio Nobel da Paz deste ano, não pactuou o acordo com seu antecessor, padrinho e atualmente arquirrival Alvaro Uribe, influente na zona rural do país, a mais afetada pelo conflito. O acordo de paz transformou-se em uma queda de braço doméstica. A questão se confundiu com a disputa política e Uribe levou a melhor: conseguiu convencer 19% dos colombianos a interpretar a negociação pela paz como uma anistia a terroristas. Outros 18% ficaram com Santos e 63% simplesmente não votaram.
Salvo o fato do resultado eleitoral ter frustrado as expectativas da intelectualidade progressista no mundo, é difícil estabelecer alguma outra conexão entre o plebiscito colombiano de outubro e o vendaval republicano de novembro.
Escândalos de corrupção e a falência de um modelo econômico levaram a centro-direita ao poder na Argentina e catalisaram nas ruas o impeachment no Brasil. Em algum momento, estes dois fatores provocarão a queda de Nicolás Maduro na Venezuela. Políticas sociais que se sustentaram, em grande parte, com commodities em alta, vão desestabilizando o mundo latino-americano. No nosso continente, o nacionalismo tende à esquerda e a reação nas ruas e nas urnas contra a globalização se deu entre meados dos anos 90 e a metade da década passada, com Lula, Kirchner e os bolivarianos. É um modelo que atravessa uma morte lenta e dolorosa desde a quebra do Lehman Brothers.
"É importante não confundir as ondas, mesmo que elas estejam levando à mesma direção", alerta o cientista político Matias Spektor, pesquisador da Fundação Getulio Vargas. O ponto que mais predomina entre elas, segundo o especialista, é o veio antissistema, muito mais do que o pensamento à direita. Aventureiros vindo do meio empresarial, da cartolagem do esporte, dos púlpitos podem se tornar personalidades mais sedutoras ao eleitor.
No Hemisfério Norte, Trump quer gravar seu nome na história. Se propõe, no plano externo, a fechar os Estados Unidos em si mesmo, reduzir o escopo de atuação do país, e quem sabe outorgar à Rússia e a China o protagonismo em novas zonas de influência que estes países não terão como administrar. "Trump quer diminuir o custo da sua liderança, em um ambiente doméstico de intolerância cultural crescente. O ordenamento do Ocidente enfrentará seu mais duro teste", comentou Spektor.
A questão agora é se ele terá como fazer isso. Seu conciliador discurso de vitória não é um indicativo, uma vez que é uma incógnita o comportamento do presidente eleito quando estiver sob pressão doméstica ou tendo que administrar crises externas.
Em vídeos disponíveis na rede social You Tube, produzidos há muitos anos, pode-se assistir Trump, nos seus tempos de celebridade televisiva, dissertando sobre a importância de se dominar a arte de negociar, de saber ser duro na hora certa e com o interlocutor certo e de se tornar "doce como uma torta", quando conveniente. É a capacidade de barganhar, e não a intransigência, segundo Trump em 2004, que proporciona dinheiro. Os vídeos do tempo em que cevava apenas seu narcisismo fazem o elogio do pragmatismo.
Mas o próprio material disponível na internet enfraquece a crença que o presidente eleito dos Estados Unidos pode migrar com força para uma posição moderada. Trump é enfático ao realçar a importância da lealdade. Afirma que, uma vez feito um acordo com alguém, é preciso cumpri-lo custe o que custar. Como lembra a cientista política Ariane Roder, da UFRJ, Trump assumiu compromissos de campanha em torno de uma plataforma radical.
Trump cercou-se na campanha de personalidades que estavam em baixa no meio republicano, como Rudolph Giuliani ou Newt Gingrich. Seguiu uma das regras de seu manual: teve poucos aliados, e portanto não se decepcionou com traições. Politicamente é um homem com poucas dívidas. Triunfou contra toda a cúpula de seu partido, o descrédito das pesquisas, o furor da mídia, o desprezo de Wall Street. Um dos raros créditos que tomou foi a defesa de uma plataforma. Não é razoável pensar que Trump não tentará implementá-la, ao menos parcialmente.
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