- Gramsci e o Brasil
Poucos eventos recentes mostram tão bem quão resistente é o clima de excitação improdutiva em que nos encontramos quanto o entrevero envolvendo o escritor Raduan Nassar e o ministro Roberto Freire, da Cultura, na entrega do Prêmio Camões, dia 16 p.p.
Os fatos são conhecidos, tamanha foi a repercussão que tiveram nas redes.
Um escritor é premiado. Comparece ao ato e em vez falar de sua obra, fazer uma reflexão sobre o estado do mundo, defender uma política para a cultura ou valorizar os intelectuais, resolve desancar o governo que lhe entregava o prêmio. Estava no seu direito, queria se mostrar engajado, convencido de que os “tempos são sombrios”, cheios de violências e arbitrariedades. Diz que não pode ficar calado diante do “golpe” que teria instituído um “governo opressor”, que é “contra o trabalhador, contra aposentadorias criteriosas, contra universidades federais de ensino gratuito, contra a diplomacia ativa e altiva de Celso Amorim”.
Fez uma intervenção curta e incisiva, juntando fatos em torno de uma narrativa que responsabiliza o governo Temer e particularmente seu ex-ministro da Justiça, Alexandre de Moraes. Juntou alhos com bugalhos. Mas estava no seu direito. Ninguém em sã consciência poderá criticá-lo por isso.
O ministro procurou reagir, defender o governo que representava na cerimônia. Começou ponderando que “pessoas da nossa geração sabem bem o que é um golpe efetivo” e que hoje, no Brasil, a democracia vigora plenamente, tanto que o governo estava ali premiando “um adversário político”, como nenhuma ditadura faria. Mencionou que acusam o governo de ser ilegítimo, mas não o vem como ilegítimo quando entrega um prêmio. A plateia presente não se conforma, passa a vaiar o ministro e a gritar “fora Temer”. O ministro se inflama, fugindo do script original e se deixando levar pela emoção. A plateia vai à loucura e busca impedi-lo de falar.
Fechem-se as cortinas.
Converter um ato simbólico, cultural e político (com “p” maiúsculo) em manifestação contra o governo serve para pouca coisa. Não há porque impedir ou condenar que se faça isso, mas é razoável que se procure indagar sobre a eficácia. Na melhor das hipóteses, atos assim dão vazão à indignação que alguns carregam no bolso e usam a qualquer pretexto. Raduan Nassar — um homem digno, discreto, silencioso — acabou envolvido em uma cena grotesca, típica de comédia pastelão. Era uma unanimidade. Com o episódio, perdeu alguns admiradores, ainda que também tenha ficado mais conhecido por outros. Nada que deslustre sua obra ou o rebaixe. De certa maneira, porém, entrou numa fria, acabando por protagonizar um episódio de ódio e irracionalidade, vazio da serenidade típica dos ambientes intelectuais, hoje muito em falta entre nós.
Pode-se criticar a reação do ministro, que no confronto com a plateia subiu desnecessariamente o tom. Isso, porém, não altera o contexto, só o torna mais visível. Assistindo ao vídeo com sua intervenção, fica evidente que não houve qualquer “ofensa” a Raduan, como foi vocalizado por alguns. Freire propôs-se a falar com calma, procurou contemporizar, deu voltas, aceitando o contraditório e a contestação, mas tentando por alguns pingos nos iis. Não censurou Raduan, nem sequer o criticou. Fez o que qualquer ministro faria: defendeu o governo de que participa. Pode não ter sido feliz em toda a fala, mas não atropelou nada. Para ele, “Raduan por sua obra merece plenamente a homenagem”. A plateia, porém, estava cega e enraivecida: vaiou, agrediu, tentou impedi-lo de falar.
Não vale a pena, a meu ver, entrar em pormenores ou lembrar a biografia de cada um dos dois envolvidos principais. Roberto Freire e Raduan Nassar são, cada um a seu modo, figuras que devem ser respeitadas, por mais imperfeições e defeitos possam ter. Em termos políticos, foi um fato menor, que só ganhou amplitude porque os dias que correm estão tortos demais.
Nos dias seguintes, a repercussão amplificou e distorceu o episódio. Raduan foi apresentado como “herói” político. Adversários do governo aproveitaram-se para derramar sobre Roberto Freire uma carga de fúria e ressentimento, acusando-o de ter “traído o PCB” e as esquerdas, de ser um “golpista” de primeira hora e um “canalha”.
Tudo está fora de foco nas manifestações que falam em “golpe” e em “fora Temer”. O slogan virou commodity que se oferece a qualquer preço e que, portanto, só serve para que vendedores de ilusões tentem se instalar no mercado. É um produto de má qualidade, porque lhe faltam atributos políticos, teóricos e conceituais.
A miséria das manifestações explica porque é que, hoje, nada incomoda o governo, a não ser suas próprias contradições internas, que não serão suficientes para pô-lo para “fora”. Se qualquer coisa vira pretexto para se atacar o governo, fica-se sem alvo claro e nenhum ataque surte efeito. Dissipa-se energia à toa. E a pretensa indignação dos protestantes se dilui, como um berro, perdendo-se pelo caminho, atravancando a dinâmica político-social e ajudando a empurrar o país para baixo.
Se o governo é de fato “ilegítimo”, como pregam alguns, há que se combatê-lo no plano político, com seus tempos e suas regras. Se não há como promover uma revolta social e traduzi-la em uma “revolução”, o jeito é educar os cidadãos e esperar pelas próximas eleições. A educação política dos cidadãos não se faz com slogans soltos ao léu, como pipas desgovernadas.
O quadro põe algumas interrogações dramáticas para as esquerdas e para os democratas coerentes. O clima atual, a cada dia mais polarizado e mais vazio de proposições progressistas razoáveis, atrapalha tudo. As pessoas pensam que ao agirem assim facilitarão o desgaste do governo, mas o que produzem é precisamente o contrário: agregam as forças governamentais, a classe média e todos aqueles que não aceitam que se faça política daquele jeito. Criado artificialmente, o clima só faz com que as esquerdas e os democratas permaneçam fora do jogo, com a cabeça enfiada na terra, ainda que esperneando.
O radicalismo retórico e performático é inimigo do avanço democrático. Não trabalha com a paciência, nem com a serenidade, não busca consensos nem se apoia numa teoria aprofundada, é pura emoção. Tem sido incapaz, no Brasil, de refletir criticamente sobre o processo que levou ao impeachment de Dilma, optando por associá-lo à imagem confortável de um “golpe”. Termina assim por funcionar como um biombo de proteção.
Como evoluirá esse radicalismo? Atingirá um ponto em que suas vertentes mais histriônicas e patológicas se esvaziarão e derivarão para nichos minoritários caricaturais e inexpressivos, abrindo espaço para a contestação democrática efetiva e o diálogo produtivo? Ou continuará a se deixar levar pelo arranjo socioeconômico prevalecente, que desmonta a vida organizada e cria um caos ideológico que alimenta a polarização improdutiva e se reproduz como moto contínuo?
Os progressistas (democratas liberais, comunistas, social-democratas, socialistas) sempre se dividiram muito. É da natureza deles. Somente à custa de muito empenho político conseguem caminhar de mãos dadas. Hoje esse traço está dilatado, a ponto de produzir imobilismo. Uma vertente radicalizada prevalece, sem qualquer densidade política ou teórica, impulsionada pelo frenesi das redes, dos tuites, dos celulares, da facilidade com que se dissemina ódio. O diálogo não avança, e se não avança não pode haver ação articulada.
Com isso, os governos — que precisam ser sempre combatidos, fiscalizados, controlados — permanecem inatingíveis, sendo penalizados tão-somente por suas próprias incongruências.
*Marco Aurélio Nogueira é professor titular de Teoria Política da Unesp.
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