Por André Guilherme Vieira | Valor Econômico
SÃO PAULO - Um dos pivôs da discórdia cada vez mais acentuada entre a Polícia Federal (PF) e o Ministério Público Federal (MPF) em Curitiba, a doleira Nelma Kodama fechou delação premiada com a Lava-Jato em Curitiba e aguarda a homologação de seu acordo, que está sobre a mesa do juiz Sergio Moro. A validação jurídica, no entanto, corre o risco de esbarrar em um aspecto prático: a falta de consenso no Judiciário sobre a legitimidade da polícia para fechar acordos de delação premiada sem a participação do Ministério Público.
Peça importante da engrenagem nacional de lavagem de dinheiro operada pelo doleiro Alberto Youssef, Nelma Kodama assinou sua delação exclusivamente com delegados que atuam e atuaram na Lava-Jato, e delatou supostos crimes que envolveriam empresas que atuam no mercado financeiro em São Paulo. Já condenada em segunda instância, Nelma está em prisão domiciliar.
A exclusão da PF das negociações para delações premiadas em Curitiba (definida como "banimento" pelos delegados) é o ponto central do embate entre PF e MPF, e abriu uma crise entre os órgãos a partir do final de 2015. A discórdia se agravou ao longo do ano passado e resultou, em maior ou menor medida, no desligamento de delegados que atuavam nas investigações relacionadas ao caso Petrobras desde o estágio embrionário da Lava-Jato - a operação foi deflagrada em 17 de março de 2014.
A posição do MPF é a de que apenas um órgão deve conduzir as tratativas para a delação. O argumento é o de que, se o investigado tiver a opção de escolher com quem negociar seu acordo, poderá submeter instituições do Estado à uma situação de barganha. "A dúvida quanto a confessar os crimes e poder atenuar a pena, ou permanecer em silêncio e correr o risco de ter seus malfeitos descobertos tem de ser do investigado. O dilema é do prisioneiro, e não do investigador", sustenta uma fonte ouvida pelo Valor.
A situação de desarmonia entre os órgãos em Curitiba chegou a tal ponto que demandou uma visita do diretor-geral, Leandro Daiello Coimbra, à superintendência paranaense da corporação, ocorrida na terça-feira.
Oficialmente, a visita de Daiello teve caráter de solidariedade e apoio institucionais, já que na madrugada da terça-feira um princípio de incêndio atingiu uma sala no subsolo da PF de Curitiba, que foi rapidamente controlado. As causas e circunstâncias do fogo ainda não foram esclarecidas.
Mas, nos bastidores, a visita de Daiello também foi interpretada como uma demonstração de autoridade do diretor-geral, que tem enfrentado críticas de entidades de classe da PF. Recentemente, a Associação Nacional dos Delegados de Polícia Federal (ADPF) pediu ao presidente Michel Temer que substitua o diretor-geral da instituição policial. A ADPF culpa Daiello pela saída de delegados que atuavam na Lava-Jato. No entanto, a decisão da entidade de pedir a substituição de Daiello envolveu um total de 295 votos, num universo de 2500 possíveis votantes associados à ADPF, entre policiais federais ativos e inativos. O Brasil tem ao todo quase 12 mil policiais federais. Daiello é diretor-geral da PF desde o início de 2011. O delegado é conhecido pela habilidade na interlocução política.
A direção-geral da PF não se manifestou sobre o fato de a ADPF querer a saída de Daiello. O Valor apurou que, em Brasília, a avaliação é que o pedido reflete a atuação de um "pequeno grupo que disputa acirradamente o poder na PF após a saída de Alexandre de Moraes do Ministério da Justiça". A PF é um órgão subordinado ao Executivo e a indicação de seu diretor-geral é atribuição do titular da Justiça.
O ponto alto da briga entre procuradores e delegados foi a delação dos 77 executivos da Odebrecht, que foi conduzida exclusivamente por procuradores que atuam em Curitiba e na Procuradoria Geral da República (PGR).
O desentendimento acabou traduzido na 35ª fase da Operação Lava-Jato, a "Omertà", que prendeu o ex-ministro Antonio Palocci - hoje réu por corrupção e lavagem de dinheiro - em setembro do ano passado.
Policiais que tiveram acesso às provas da Omertà defendiam que o acordo de delação premiada dos 77 executivos da Odebrecht não era fundamental para as investigações. Na época, os inquéritos policiais em curso já contavam com enorme quantidade de informações, obtidas com auxílio de delatores antigos e um sem-número de provas recolhidas em ações de busca.
Delegados também apontam ao menos duas delações premiadas em que os procuradores teriam sido "enganados" pelos delatores.
Eles se referem ao acusado de ser operador financeiro do governador de Minas Gerais, Fernando Pimentel (PT), o empresário Benedito Rodrigues, o "Bené".
A alegação é a de que ele teria omitido informações no acordo firmado com o Ministério Público na Operação Acrônimo.
A delação premiada da contadora de Bené, firmada com a PF, trouxe à tona fatos que obrigaram o empresário a rever seus depoimentos, sob risco de perder benefícios. Ele acabou reconhecendo que havia mentido nos depoimentos anteriores.
A delação premiada do senador cassado Delcídio do Amaral também é posta em xeque por integrantes da PF ouvidos pela reportagem. Eles dizem que o ex-parlamentar afirmou que Dilma Rousseff, o ministro do STF Ricardo Lewandovski e o ex-ministro da Justiça José Eduardo Cardozo se reuniram na cidade do Porto, em Portugal, em julho de 2015, para "tramar" contra a Lava-Jato.
"O Delcídio não participou daquela reunião. Como ele soube, então? E ele apresentou alguma evidência de que o encontro teve esse propósito? Me parece que não", afirma uma fonte.
A lei 12.850, que regulamenta a colaboração premiada, estabelece, de modo genérico, que representantes da Polícia e do Ministério Público podem participar das negociações para o acordo.
Procurado, o MPF em Curitiba não se manifestou sobre o tema.
A reportagem não conseguiu contato com os advogados da doleira Nelma Kodama
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